quinta-feira, 18 de abril de 2024

O DILEMA DAS REDES SOCIAIS

 

O DILEMA DAS REDES SOCIAIS

 

“Mídias sociais produzem geração ansiosa”. Este é o título de artigo publicado no jornal O Globo, edição de 13.04.2024, pelo jornalista Pablo Ortellado (1). O artigo trata de matéria sobre a qual eu tenho extensamente tratado em minhas crônicas. Começa citando um livro do psicólogo Jonathan Haidt, recém publicado nos EUA, “The anxious generation”, escrevendo que, no livro, “Haidt argumenta que o uso intensivo de mídias sociais rouba das crianças e dos jovens tempo de experimentação e convívio, causa imediata da atual epidemia de ansiedade e depressão”. E que “as raízes do problema estão nas mudanças culturais que levaram os pais da Geração X a superproteger os filhos”. Continuando, informa que o livro em questão começou como blog na plataforma Substack. Já naquele blog Haidt propôs a tese, então controversa, de que “o grande aumento nos indicadores de depressão, ansiedade, automutilação e suicídio entre os jovens nos anos 2010 estava ligado ao uso das mídias sociais”.

No blog, o psicólogo observa que a literatura anterior correlacionando a incidência de problemas mentais ao uso de telas pelos jovens apresentava evidências fracas e contraditórias. Ele propõe, então, que não considerássemos as telas em geral – incluindo televisão, computador e videogame – mas que focássemos apenas nas mídias sociais. Surge, então, uma correlação muito mais forte, especialmente, afirma ele, se os dados forem filtrados por gênero, apontando o tamanho do problema entre as meninas.

No livro, Haidt argumenta existir uma relação causal entre uso de mídias sociais nos smartphones e a epidemia de doenças mentais entre os jovens. O uso intensivo das mídias sociais limitaria as interações sociais presenciais produtoras de laços afetivos fortes e estimula comparações com padrões estéticos inalcançáveis, gerando ansiedade e depressão.

Segundo o artigo a segunda parte do livro tem como ponto de partida a inquietação explorada noutra obra de Haidt, escrita em parceria com Greg Lukianoff “The coddling of the Ameriacan Mind”. Aqui, Lukianoff fala de uma certa cultura universitária “segurista”: “a proibição nos campi de literatura acadêmica considerada ofensiva (por ser racista ou machista) e a criação de espaços seguros superprotegem os jovens, que não são mais expostos à diversidade e à pluralidade de pensamento”. Prosseguindo, Haidt constata que “a valorização de pequenas ofensas e microagressões pelos movimentos sociais funciona como uma espécie de terapia reversa – enquanto a função da terapia é minorar o trauma, os movimentos sociais terminam supervalorizando ofensas menores, e, involuntariamente, amplificam traumas.”

O psicólogo identifica uma significativa mudança cultural na forma com que os filhos foram criados: nos anos 1980 e 1990 as crianças, filhas dos pais da Geração X, foram criadas com muita liberdade, brincando livremente, sem supervisão, desde os 7 ou 8 anos. Em contrapartida os filhos desses pais são superprotegidos, permanecendo sob cuidadosa supervisão adulta praticamente até a adolescência. Como consequência, as crianças de hoje não desenvolvem a autonomia e não aprendem a lidar com riscos e perigos, habilidade essencial para enfrentar desafios maiores na vida adulta. Só podem brincar e se locomover sob a supervisão de um adulto, não mais saem às ruas sem essa supervisão, como faziam as crianças a partir da segunda infância para praticar jogos e brincadeiras. “O tempo que os adultos dedicam ao cuidado das crianças disparou na segunda metade dos anos 1990 (...) As mídias sociais viciantes que prendem os adolescentes à tela do celular e limitam suas interações sociais e afetivas são, para Haidt, apenas o apogeu da tendencia anterior e mais profunda de superproteção e fragilização das crianças.” Ao final do livro Haidt propõe um conjunto de ações ou reformas que poderiam minorar o problema: proibir o uso de smartphones nas escolas e de qualquer mídia social até os 16 anos, assim como a desafiadora proposta de deixarmos nossos filhos brincarem sem a supervisão adulta, como era feito até os anos 1980 e 1990.

Estou inteiramente de acordo com o texto que acabei de comentar. Ressalto apenas que vivemos outros tempos, bastante diferentes daqueles referidos por Haidt, anos 1980 e 1990. Que já eram diferentes dos anos 1950 quando vivi minha segunda infância. Eu brincava livremente pelas ruas, o único risco era de machucar-me jogando uma pelada, caindo da bicicleta, patinete, de uma árvore onde subira para catar frutos e coisas semelhantes. Não havia nada comparável à ameaçadora violência dos dias de hoje, por isso não se deve dispensar por completo a supervisão adulta. 

Passemos agora a um outro texto publicado no jornal O GLOBO, edição de 14.04.24, intitulado “O exílio da infância”, (2) escrito por Daniel Becker, descrito como Pediatra, Sanitarista, Palestrante e Escritor. E ainda como Ativista pela infância, saúde coletiva, e meio ambiente.

O foco é o mesmo do artigo anteriormente comentado: “os danos causados a crianças e adolescentes pelo excesso de telas – e a necessidade de retomarmos uma infância rica em experiencias no mundo real.” O articulista é de opinião de que um consenso estaria começando a surgir sobre o tema, e que “Pais, mães, educadores e até mesmo nossos jovens estão reconhecendo a importância desse movimento”, e traz a contribuição do já referido psicólogo social norte-americano Jonathan Haidt ao tema, com quem declara ter forte afinidade com seus pontos de vista. Segundo ele, Haidt, num livro publicado no corrente ano, mostra que a geração Z – os nascidos entre 1995 e 2010 – sofreram uma reprogramação cerebral inédita na história humana, com consequências nefastas para a sua saúde. E escreve:

“Eles foram abalroados pelos celulares em plena puberdade, um período decisivo no amadurecimento cerebral. Nessa fase há uma grande mudança no córtex pré-frontal, responsável pelas funções executivas, como tomada de decisão, foco, controle de impulsos, julgamento e resolução de problemas. Surgem novos neurônios, 40% das sinapses são eliminadas, e muitas outras são criadas. Capacidades fundamentais para a vida adulta se desenvolvem e hábitos e vícios formados nessa época tendem a se tornar arraigados.”

“Desde os primórdios da humanidade até em torno de 2010 as crianças entravam na puberdade se relacionando com o mundo real, com seu corpo, amigos e família. Foi então que a velocidade da internet aumenta, surge a Apple Store, e a câmera frontal, o Facebook cria o botão de like e os comentários (e com isso o algoritmo e seus direcionamentos), aparece o Instagram. Começa uma maciça migração dos adolescentes para o mundo virtual. Dez anos depois, estão online quase o tempo todo.”

O articulista segue fazendo considerações extremamente pertinentes sobre os efeitos desastrosos desse processo, terminando por assinalar que “a partir de 2012 as notas do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos] global, que subiram por décadas consecutivas, iniciam uma queda abrupta. No mesmo período, as curvas de automutilação, ansiedade, depressão e suicídio em crianças e adolescentes começam uma ascensão violente. A autolesão nos EUA aumenta cinco vezes em dez anos, a ansiedade e depressão quase triplicam. É realmente assustador.” Aqui é o momento de evocarmos a frase do filósofo Mario Sergio Cortella: “O mundo que vamos deixar para os nossos filhos depende dos filhos que vamos deixar para o nosso mundo.”

Finalizamos nossa crônica recomendando veementemente que assistam o documentário “O Dilema das Redes”, disponível no NETFLIX. O filme analisa o papel das redes sociais e os danos que elas causam à sociedade. Para uma análise do conteúdo de seu conteúdo, convido à leitura do texto do artigo no link (3), do qual extraí as seguintes partes:

“O filme conta com uma série de entrevistas de ex-funcionários das principais redes sociais e professores acadêmicos [o que demonstra o sólido embasamento de seu conteúdo]. Como o ex-especialista em ética de design do Google e cofundador do Center for Humane TechnologyTristan Harris; o cofundador do Center for Humane Technology Aza Raskin; o cofundador do Asana e co-criador do botão like do Facebook Justin Rosenstein; o professor da Universidade de Harvard Shoshana Zuboff; o ex-presidente do Pinterest Tim Kendall; a diretora de pesquisa de políticas da AI NowRashida Richardson; o diretor de pesquisa da Yonder Renee DiResta; a diretora do programa de bolsa de estudos da Universidade de StanfordAnna Lembke; e o pioneiro da realidade virtual Jaron Lanier. As entrevistas são ilustradas por dramatizações protagonizadas por Skyler GisondoKara Hayward e Vincent Kartheiser, que contam a história do vício de um adolescente nas redes sociais.”

Segundo o artigo, o foco do filme é explicitar a manipulação sofrida pelos usuários das redes sociais com o objetivo de propiciar ganhos financeiros às empresas. (...) O filme discute como cada elemento do design das redes pretende nutrir o vício do usuário, o uso para influenciar a política, o impacto na saúde mental (incluindo a saúde mental de adolescente e o aumento das taxas de suicídio entre eles) e seu papel na disseminação de teorias da conspiração facilitando a manipulação política.

Perfeito. O documentário expõe a possibilidade das pessoas se viciarem nas redes sociais de uma maneira comparável ao uso de drogas. Já do lado social, os sistemas de inteligência artificial podem ajudar na disseminação de notícias falsas e teorias da conspiração, facilitando a manipulação política, causando uma dramática polarização da sociedade, eliminadas quaisquer possibilidades de entendimento entre os dois lados do espectro político. E mais. Ao vermos a ultra complexa malha de equipamentos envolvida no processamento de informações pelas redes, trazemos a preocupação do cientista John Casti, ph.D, especialista nos estudos das teorias dos sistemas e da complexidade, em elencar um apagão na internet entre os onze eventos extremos que podem destruir a civilização a qualquer momento (“O Colapso de Tudo”, 2011, Editora Intrínseca Ltda.).

 

 Durante os créditos finais, os entrevistados recomendam uma série de contramedidas para se proteger contra os problemas das redes sociais. Recomendações:

(1)  Desligar ou reduzir o número de notificações que você recebe

(2)  Desinstalar aplicativos de redes sociais e notícias que desperdiçam seu tempo

(3)  Usar um buscador que não armazena o histórico de busca, como o Qwant

(4)  Usar extensões de navegador que bloqueiem recomendações

(5)  Checar fatos antes de compartilhar, curtir ou comentar

(6)  Obter fontes de informação com perspectivas diferentes, incluindo as que você poderia discordar

(7)  Não dê aparelhos celulares ou tablets para as crianças

(8)  Nunca aceite recomendações de vídeos no Youtube, Facebook ou outros lugares

(9)  Evite acessar qualquer material caça-cliques

 

Enfim, para ilustrar o assustador poder de bisbilhotagem das redes sobre nossos dados, sobre nossas vidas, didaticamente demonstrado no filme, conto o seguinte episódio. Uma prezada amiga conversou por voz, via WhatsApp, com uma filha que vive nos Estados Unidos. Sua filha contou que cultivava uma pequena horta em sua residência, na qual havia couve em abundancia, e que não sabia o que fazer com a hortaliça. Minha amiga retrucou que havia muitas receitas, e lhe passou uma delas. Pasmem: não demorou muito e, ao entrar no google, foi surpreendida com receitas de couve! Big Brother is watching you, profetizou George Orwell em seu icônico e profético livro “1984”.

 

 

José Antonio C. Silva

17/04/2024

 

https://oglobo.globo.com/opiniao/pablo-ortellado/coluna/2024/04/midias-sociais-produzem-geracao-ansiosa.ghtml  

https://oglobo.globo.com/blogs/daniel-becker/post/2024/04/o-exilio-da-infancia.ghtml 

https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Social_Dilemma  

 

9 comentários:

  1. Incrível! Em lendo seu artigo senti meus pensamentos sendo verbalizados! Parabens amigo, faço das suas as minhas conclusões! Que crianças estejamos deixando para o mundo? Gostei muito do artigo!

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  2. Comentário acima de Rosa Ghelman.

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  3. José Antonio de Carvalho e Silva, mais uma vez, nos brinda, por meio do seu excelente texto, com a lúcida abordagem de um tema de grande atualidade e importância e alerta para o grande risco que correm as
    crianças e adolescentes, com as redes sociais e sua influência sobre essas mentes, ainda em formação.
    Parabéns, caro amigo, brilhando sempre.

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  4. Perfeito, como sempre. Vou compartilhar para que mais pessoas possam ter o prazer de uma leitura inteligente e reflexiva.

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  5. Querido, amigo! Ficou muito clara a fotografia dos grandes problemas trazidos pelo abuso da utilização das redes sociais por nossas crianças e adolescentes. O algoritmo é realmente um aprisionamento. Seja pelo controle que petrende nos impor, e também pelo vício que nos encarcera e muda nosso cérebro. Obrigada pelo seu texto. Elenos faz pensar diante desses automatismos. Bravo!

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  6. Inexplicavelmente todos os comentários feitos até o momento não indicam o autor, aparecem como feitos por "Anônimo".

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  7. O nobre amigo José Antônio expõe de forma clara os malefícios causados pelo uso intensivo das redes sociais em nosso mundo contemporâneo.
    Não posso deixar de lembrar-me do conteúdo do livro 1984 do Orweel, podendo fazer uma analogia com o sistema político colocado em prática hoje em nosso País, onde vejo claramente a intenção de vivermos em um estado totalitário, pretendendo ter um controle absoluto sobre qualquer crítica feita pelas pessoas, manipulando informações, reprimindo a liberdade de expressão e monitorando constantemente o que é feito e dito pela população.
    Essa realidade distópica pode ser analogamente comparada ao uso intensivo das redes sociais hoje e seus malefícios, que podem prejudicar a educação e formação de nossos filhos e netos.
    Parabéns ao José Antônio pela coragem de postar esta crônica.

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  8. Parabéns! 👏👏👏Uma preciosidade o seu relato, principalmente sobre as doenças e transtormos psicológicos e emocionais que todos nós estamos expostos. Seu artigo é um alerta para começarmos imediatamente a prática da desconexão digital, e para lutarmos por uma regulamentação decente sobre o tema.

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  9. Fiquei perplexa com o que ocorreu no FB😮😠 É a evidência/comprovação de tudo que você escreveu - toda essa manipulação e privação de liberdade que estão fazendo conosco.

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