JOÃO PENALHO
João Penalho acordou
cansado. João Penalho sempre acordava cansado. Completamente esbagaçado,
esperou que a corda do despertador chegasse ao fim e levantou-se viscosamente
da cama. Eram seis horas da manhã e, se não se apressasse, acabaria chegando
tarde ao trabalho.
Lavando o rosto com água
fria, operação que teria que repetir após ter se vestido, para consolidação de
seu despertar, Penalho mais uma vez lamentou a absurda situação de um homem
sendo violentado pela campainha de um despertador, sem a bênção de um acordar
em sintonia com sua natureza.
Mas, não adiantava. Há
muitos anos era a mesma coisa, e ele já compreendera que seria sempre assim,
que ele jamais conseguiria livrar-se da vida sistemática à qual se atrelara.
Apenas, com o passar dos anos, iria se sentir cada vez mais cansado, até transformar-se
numa bolha inerte.
Não dispunha de muito
tempo. Sua decisão de sempre protelar ao máximo possível o seu período de sono
o obrigava, uma vez de pé, a agir o mais rapidamente possível. Não conseguiu
comer mais do que um cotoco de pão e engolir alguns goles de café. Sentia o que
ele próprio chamava de uma sensação de gravidez, o que se deveria entender como
um estado de prodigiosa flatulência que escarnecia de suas tentativas de
combatê-la com um bem equipado arsenal de comprimidos, cujo único esvaziamento
que acabava por provocar era o de seu próprio bolso.
Saiu finalmente de casa.
Ao chegar em frente ao edifício de escritórios da Companhia Deletéria, João
saltou do táxi e dirigiu-se rapidamente ao elevador. Sua sala ficava no quinto
andar e, para atingi-la, Penalho tinha que se expor aos olhares de diversos
colegas de trabalho que, sempre chegando no horário, lhe passavam uma sensação
de cobrança, uma desagradável impressão de que seus minutos de atraso estariam
de alguma forma sendo contabilizados. Conseguiu finalmente esgueirar-se através
da porta do biombo que separava sua saleta da dos demais funcionários de seção
e jogou-se em sua cadeira.
Todo o dia a mesma coisa.
Enquanto houvesse algum trabalho para fazer, a situação ainda era suportável. O
pior era quando vinham aqueles dias em que o serviço acabava e não restava nada
a fazer senão continuar afetando atitude de solene concentração, de soslaio
vigiando a porta, a adivinhar a entrada súbita de algum chefe, o que o
obrigaria a dar uma rápida agitada em papéis sempre deixados sobre a mesa, para
dar uma impressão de grande atividade. Não havia então muitas opções para matar
o tempo. Do banheiro ao bebedouro, do bebedouro a mais um gole do horrendo café
da garrafa térmica, gastava-se apenas alguns segundos e, então, de volta ao
rabo na cadeira. O rabo sempre na cadeira. O saco permanentemente cheio, a
girar em seco, era agora mais que uma metáfora. Sentia literalmente os
testículos cheios, inchados, um calor e um formigamento que eram a justa medida
de seu enfado.
Mas, hoje algo diferente
iria acontecer na vida de Penalho. Já há alguns dias lera num jornal a notícia
de que havia sido instituído um concurso literário, um concurso de contos
destinado a escritores inéditos. Penalho era um homem de 41 anos. Desde os 20
sonhava em ser um grande escritor, uma grande celebridade a deixar sua marca.
No entanto sua vida seguira em sentido oposto. Um promissor sucesso em sua
carreira de assalariado de uma grande empresa ia insidiosamente empurrando
Penalho para uma vida dada vez mais calculada e previsível. Prostituindo sua
alma, Penalho aceitara, ainda muito jovem, o emprego que lhe garantiria
conforto material, enquanto aguardava que seu formidável destino se cumprisse.
Costumava, em suas conversas, traçar paralelos entre esse destino e o de
grandes artistas que, como ele, cumpriam existências monótonas, até serem
invadidos pela iluminação. Quando vieram os primeiros sinais de impaciência, o
início da suspeita de que sua realização implicava em mobilização, lembrou-se
da leitura de O Poderoso Chefão,
livro de Mario Puzzo que conta a saga do personagem central, Dom Vito Corleone
e de sua família, dominante na máfia nova-iorquina. Dom Corleone somente aos 25
anos conseguiu conciliar-se com seu destino. Mas, para isso, fora necessário
matar Fanucci, seu gangster esfinge. Morto Fanucci, catalisou-se a
transformação.
Matar Fanucci. Penalho
começou a perceber que, de alguma forma, também teria que matar o seu Fanucci,
caso pretendesse explodir a sua personalidade. O tempo passa e passam seus 25
anos. Penalho não mata e nem sequer descobre o seu Fanucci. Vai empurrando seu
sonho para a frente. Seus paralelos com novos personagens e com novos artistas
vão sendo ultrapassados pela realidade. Na virada dos 30 anos, faz um sentido
balanço de sua vida e descobre que não há mais tantos paralelos assim pela sua
frente. Resta-lhe, dentro de suas admirações, a imagem de um Henry Miller, que
somente após os trinta transporta suas mulheres da cama para os livros que lhe
darão glória imorredoura. Restava-lhe ainda Paul Gauguin, a abandonar, aos
trinta e cinco anos, o seu trono de conforto e a sofrer o seu prazer pintando,
amando e morrendo em uma ilha dos mares do sul, junto às suas amadas nativas.
Passam-se seus 35 anos e com eles as taitianas doces, oferecidas, a sorrir para
Penalho, o homem do falo de papel.
Penalho era um burocrata.
Escrevia cartas, memorandos, preparava relatórios. Relatórios que garantiam um
confortável salário no fim do mês e uma ficha no cadastro do nada. Relatórios
extensos, monstruosos, que ocupavam sua vida relatando idiotices tão espetacularmente
fastidiosas quanto supérfluas. Mas hoje ele escreveria o seu conto. Começaria
ali mesmo, no escritório, era preciso apenas que não lhe dessem qualquer
trabalho para fazer. Puxa um bloco e tenta empurrar 41 anos de espera nas
linhas do papel. Reluta. Não sabe como começar. Sempre imaginara que quando seu
dia chegasse a inspiração surgiria límpida, inestancável, que o processo
criativo fosse um transe mediúnico do qual se emergisse tão somente para
contemplar a grande obra terminada, preparada por um gênio da lâmpada.
Não, não parece ser assim. Descobre, assustado, que está
muito mais à vontade sob a proteção de seus relatórios. Sente certa vergonha de
si mesmo. Por instantes, acha que tudo aquilo não passa de uma tresloucada
insensatez. Não era positivamente coisa própria de um homem sério estar ali a
usar o seu sagrado tempo de trabalho para tais disparates. Não tem tempo de
colocar-se em guarda quando uma sombra cristaliza-se à sua frente, na figura de
seu chefe. Sumárias explicações e um novo relatório prodigioso deveria ser
produzido “para ainda hoje”. Penalho levanta-se e vai ao banheiro. Dá uma
mijada e volta à sua cadeira. Começa então a escrever: “João Penalho acordou
cansado...”.
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