terça-feira, 25 de novembro de 2025

JOÃO PENALHO

 

                                                        JOÃO PENALHO 

João Penalho acordou cansado. João Penalho sempre acordava cansado. Completamente esbagaçado, esperou que a corda do despertador chegasse ao fim e levantou-se viscosamente da cama. Eram seis horas da manhã e, se não se apressasse, acabaria chegando tarde ao trabalho.

Lavando o rosto com água fria, operação que teria que repetir após ter se vestido, para consolidação de seu despertar, Penalho mais uma vez lamentou a absurda situação de um homem sendo violentado pela campainha de um despertador, sem a bênção de um acordar em sintonia com sua natureza.

Mas, não adiantava. Há muitos anos era a mesma coisa, e ele já compreendera que seria sempre assim, que ele jamais conseguiria livrar-se da vida sistemática à qual se atrelara. Apenas, com o passar dos anos, iria se sentir cada vez mais cansado, até transformar-se numa bolha inerte.

Não dispunha de muito tempo. Sua decisão de sempre protelar ao máximo possível o seu período de sono o obrigava, uma vez de pé, a agir o mais rapidamente possível. Não conseguiu comer mais do que um cotoco de pão e engolir alguns goles de café. Sentia o que ele próprio chamava de uma sensação de gravidez, o que se deveria entender como um estado de prodigiosa flatulência que escarnecia de suas tentativas de combatê-la com um bem equipado arsenal de comprimidos, cujo único esvaziamento que acabava por provocar era o de seu próprio bolso.

Saiu finalmente de casa. Ao chegar em frente ao edifício de escritórios da Companhia Deletéria, João saltou do táxi e dirigiu-se rapidamente ao elevador. Sua sala ficava no quinto andar e, para atingi-la, Penalho tinha que se expor aos olhares de diversos colegas de trabalho que, sempre chegando no horário, lhe passavam uma sensação de cobrança, uma desagradável impressão de que seus minutos de atraso estariam de alguma forma sendo contabilizados. Conseguiu finalmente esgueirar-se através da porta do biombo que separava sua saleta da dos demais funcionários de seção e jogou-se em sua cadeira.

Todo o dia a mesma coisa. Enquanto houvesse algum trabalho para fazer, a situação ainda era suportável. O pior era quando vinham aqueles dias em que o serviço acabava e não restava nada a fazer senão continuar afetando atitude de solene concentração, de soslaio vigiando a porta, a adivinhar a entrada súbita de algum chefe, o que o obrigaria a dar uma rápida agitada em papéis sempre deixados sobre a mesa, para dar uma impressão de grande atividade. Não havia então muitas opções para matar o tempo. Do banheiro ao bebedouro, do bebedouro a mais um gole do horrendo café da garrafa térmica, gastava-se apenas alguns segundos e, então, de volta ao rabo na cadeira. O rabo sempre na cadeira. O saco permanentemente cheio, a girar em seco, era agora mais que uma metáfora. Sentia literalmente os testículos cheios, inchados, um calor e um formigamento que eram a justa medida de seu enfado.

Mas, hoje algo diferente iria acontecer na vida de Penalho. Já há alguns dias lera num jornal a notícia de que havia sido instituído um concurso literário, um concurso de contos destinado a escritores inéditos. Penalho era um homem de 41 anos. Desde os 20 sonhava em ser um grande escritor, uma grande celebridade a deixar sua marca. No entanto sua vida seguira em sentido oposto. Um promissor sucesso em sua carreira de assalariado de uma grande empresa ia insidiosamente empurrando Penalho para uma vida dada vez mais calculada e previsível. Prostituindo sua alma, Penalho aceitara, ainda muito jovem, o emprego que lhe garantiria conforto material, enquanto aguardava que seu formidável destino se cumprisse. Costumava, em suas conversas, traçar paralelos entre esse destino e o de grandes artistas que, como ele, cumpriam existências monótonas, até serem invadidos pela iluminação. Quando vieram os primeiros sinais de impaciência, o início da suspeita de que sua realização implicava em mobilização, lembrou-se da leitura de O Poderoso Chefão, livro de Mario Puzzo que conta a saga do personagem central, Dom Vito Corleone e de sua família, dominante na máfia nova-iorquina. Dom Corleone somente aos 25 anos conseguiu conciliar-se com seu destino. Mas, para isso, fora necessário matar Fanucci, seu gangster esfinge. Morto Fanucci, catalisou-se a transformação.

Matar Fanucci. Penalho começou a perceber que, de alguma forma, também teria que matar o seu Fanucci, caso pretendesse explodir a sua personalidade. O tempo passa e passam seus 25 anos. Penalho não mata e nem sequer descobre o seu Fanucci. Vai empurrando seu sonho para a frente. Seus paralelos com novos personagens e com novos artistas vão sendo ultrapassados pela realidade. Na virada dos 30 anos, faz um sentido balanço de sua vida e descobre que não há mais tantos paralelos assim pela sua frente. Resta-lhe, dentro de suas admirações, a imagem de um Henry Miller, que somente após os trinta transporta suas mulheres da cama para os livros que lhe darão glória imorredoura. Restava-lhe ainda Paul Gauguin, a abandonar, aos trinta e cinco anos, o seu trono de conforto e a sofrer o seu prazer pintando, amando e morrendo em uma ilha dos mares do sul, junto às suas amadas nativas. Passam-se seus 35 anos e com eles as taitianas doces, oferecidas, a sorrir para Penalho, o homem do falo de papel.

Penalho era um burocrata. Escrevia cartas, memorandos, preparava relatórios. Relatórios que garantiam um confortável salário no fim do mês e uma ficha no cadastro do nada. Relatórios extensos, monstruosos, que ocupavam sua vida relatando idiotices tão espetacularmente fastidiosas quanto supérfluas. Mas hoje ele escreveria o seu conto. Começaria ali mesmo, no escritório, era preciso apenas que não lhe dessem qualquer trabalho para fazer. Puxa um bloco e tenta empurrar 41 anos de espera nas linhas do papel. Reluta. Não sabe como começar. Sempre imaginara que quando seu dia chegasse a inspiração surgiria límpida, inestancável, que o processo criativo fosse um transe mediúnico do qual se emergisse tão somente para contemplar a grande obra terminada, preparada por um gênio da lâmpada.

          Não, não parece ser assim. Descobre, assustado, que está muito mais à vontade sob a proteção de seus relatórios. Sente certa vergonha de si mesmo. Por instantes, acha que tudo aquilo não passa de uma tresloucada insensatez. Não era positivamente coisa própria de um homem sério estar ali a usar o seu sagrado tempo de trabalho para tais disparates. Não tem tempo de colocar-se em guarda quando uma sombra cristaliza-se à sua frente, na figura de seu chefe. Sumárias explicações e um novo relatório prodigioso deveria ser produzido “para ainda hoje”. Penalho levanta-se e vai ao banheiro. Dá uma mijada e volta à sua cadeira. Começa então a escrever: “João Penalho acordou cansado...”.


 

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