O Celular em Tempos de Pandemia
Um aparelhinho extremamente portátil,
minúsculo, leve, cabe facilmente no bolso de uma calça. O celular, também
referido como smartphone, assume enorme protagonismo nesse período da
quarentena causada pela Peste (como Albert Camus chamaria a atual pandemia
causada pelo COVID-19). Originariamente
concebido para ser um telefone, tinha o formato de um tijolinho, envolto em uma
capinha que lhe permitia ser ajustado ao cinto de uma calça, e portado com toda
a visibilidade. Bons tempos, ninguém assaltava ou matava por um celular. Eram
os anos da década de 1990.
Com o tempo, o aparelhinho foi
evoluindo, em formato e, muito principalmente, em possibilidades tecnológicas.
De um simples transmissor/receptor de voz, outros recursos foram sendo
incorporados. Mensagens de texto – SMS, conhecidos como torpedos -, e na
sequência, a comunicação por textos ampliada extraordinariamente com a
incorporação do e-mail, do WhatsApp, do Facebook, do Messenger, do Instagram.
Junto aos textos também passou a ser possível o envio de fotos, vídeos, áudios.
Aplicativos são usados para orientação sobre o trânsito. O google, como
instrumento de recepção de notícias e de pesquisa sobre os mais diversos
assuntos, praticamente decretou a obsolescência dos dicionários impressos, enquanto
as volumosas enciclopédias foram substituídas pela Wikipédia. Pelo celular
passou a ser possível escutar música, ver filmes, escolhidos em aplicativos
como o Netflix e o Now, pelo Youtube, na própria telinha do aparelho ou
projetando na tela de um televisor. A combinação da voz com a imagem passou a
ser possível através das ligações por meio de vídeo, conectando duas ou mais
pessoas, como nas Lives, em locais distantes. Em tempos de quarentena,
esse recurso presta um enorme serviço à comunicação, o que, em contrapartida,
agravou um novo tipo de dependência, descrito pelo termo nomofobia, abreviação, do inglês, para no-mobile-phone
phobia criado para descrever o pavor de estar sem o telefone celular
disponível. E ele poderá se tornar indisponível por diversas razões: perda,
roubo, quebra, imersão em água, desconfiguração etc. Sobre outros riscos envolvidos
no abuso do celular comentaremos ainda neste texto.
Mas o aparelhinho tem ainda diversas
outras funções. Possui câmera fotográfica, calculadora eletrônica, agenda, calendário,
bloco de anotações, despertador, e outras facilidades mais. Dentre essas,
sobressai a possibilidade de acesso ilimitado às contas bancárias do usuário.
Através do celular, com o aplicativo iToken instalado, é possível
executar literalmente todas as operações financeiras, o que não seria possível
fazer mesmo através de um computador.
É, então, o celular uma verdadeira
maravilha? Sim, e não, como todos os objetos da técnica, como já antecipava
Martin Heidegger, um dos filósofos essenciais do Século XX, notadamente em seu
texto “A questão da técnica” (escrito em 1959!), preocupava a Heidegger o feitiço
lançado pelos objetos da técnica sobre os seus próprios criadores. Já escrevi
diversas vezes sobre essa questão. A respeito do abuso do celular e a
progressiva dependência das pessoas ao seu uso, tratei particularmente em meu
texto, postado aqui neste blog em 08/06/19, denominado “Eu
quero Mammy”, com foco no uso abusivo do aplicativo WhatsApp, e do qual
reproduzo alguns trechos, por oportuno, na presente fase de confinamento ocasionado
por uma pandemia que aumentou exponencialmente aquele efeito sobre os usuários
de celular. Escrito bem antes da pandemia, centra-se muito especialmente numa
avaliação crítica do uso abusivo do celular.
(...) “Basta lançarmos um olhar ao
redor e veremos que, em toda a parte, uma grande quantidade de pessoas está
lendo ou escrevendo mensagens via WhatsApp. No metrô, nos ônibus, nos
restaurantes, na plateia de cinemas, teatros e de shows, nas salas de aulas,
caminhando nas ruas, no interior dos lares, em qualquer lugar. Crescentes
alertas quanto a esse abuso parecem relegados ao total descaso. A postura
corporal exigida no uso do aplicativo causa problemas na coluna vertebral. O
desperdício de precioso tempo em consultar e responder mensagens tantas vezes
irrelevantes, redundantes, notadamente de extensos grupos de contatos. O
surgimento do estresse, da ansiedade. O risco incorrido ao dirigir teclando o
WhatsApp, uma postura ainda mais perigosa e irresponsável do que falar ao
celular. A atenção posta no aplicativo em locais públicos, notadamente nas
ruas, expõe o usuário à um ponderável risco de assalto, queda,
atropelamento. E a escrita? Muito mais
do que no moribundo e-mail, a escrita no WhatsApp dolorosamente maltrata o
vernáculo. Não se trata aqui de pretender que seus usuários sejam um Machado de
Assis ou um Carlos Drummond de Andrade, mas, sim, que redijam com um mínimo de
consistência, para se fazer entender corretamente pelo interlocutor (...)”
E a referida crônica aborda outras
questões:
(...) Desencontros presenciais
E há o problema do desencontro.
Curiosamente, os aplicativos feitos para aproximar as pessoas, utilíssimos para
aquelas fisicamente distantes, acaba por afastar as muito próximas, até mesmo
literalmente ao lado. Tente falar alguma coisa com um dependente do WhatsApp
enquanto ele checa ou digita suas mensagens. Você terá a nítida impressão de
estar falando para as paredes, de que suas palavras simplesmente não são
captadas, respostas “hum...hum... aham...aham...” ao seu pedido de confirmação
de escuta não lhe darão nenhuma garantia de recepção (...)
(...) Prejuízo ao armazenamento na
memória
Para que se tenha a memória de um
momento é necessário que ele seja vivenciado, a pessoa precisa estar presente,
com seus sentidos em alerta. Como poderá alguém reter na memória aquilo que
sequer foi captado pelos sentidos, no caso ilustrado, pela audição? Como
escreve a psicóloga Linda Davidoff (MAKRON Books,1980), “perceber, estar
consciente, aprender, falar e resolver problemas, tudo isso requer aptidão para
armazenar informações...”. Ler mais em (*).
(...) Dependência do telefone móvel
Nomofobia: a
dependência do telefone celular. Este é o seu caso?
Cada vez mais as pessoas não
conseguem desgrudar do smartphone e esse hábito pode trazer consequências
físicas e psicológicas. Ler mais em (*).
(...) Riscos à saúde mental e
física
O texto referido no parágrafo acima informa
que “Em nível neurobiológico, sabemos que existe um “sistema de recompensa
cerebral” (SRC) que tem como função estimular comportamentos que colaboram com
a manutenção da vida (como sexo, alimentação e proteção). Quando o SRC é
ativado, com a liberação do neurotransmissor dopamina, isto proporciona
imediatas sensações de prazer e satisfação. Tal qual para as drogas de abuso,
as dependências comportamentais (incluindo a nomofobia), são capazes de levar a uma hiperatividade do constante
SRC, podendo causar alteração no funcionamento cerebral.” Ressalva-se que,
“Entretanto, as consequências de longo prazo do funcionamento alterado pelo
excesso do uso do celular ainda são incertas. Além disso, as pessoas que
apresentam uso abusivo do celular têm maior chance de
desenvolver transtornos psiquiátricos como ansiedade, depressão e sintomas de
impulsividade, embora a relação de causa-efeito nem sempre seja fácil de ser
estabelecida.” Problemas físicos frequentemente ocorrem, incluindo fadiga,
patologia ocular, dores musculares, tendinites, cefaleia, distúrbios do sono e
sedentarismo. Além disso, é evidente a maior propensão em se envolver em um
acidente automobilístico e de sofrerem quedas ao andar.”
(...) Para filhos, pais ficam
muito tempo no celular
Este é o título de mais um texto
sobre o tema. Como subtítulo temos: “Pesquisa aponta que quatro em cada dez
adolescentes consideram que responsáveis fazem uso excessivo dos celulares. E
28% dos adultos entrevistados avaliam que vício na telinha prejudica o
relacionamento familiar.” Ler mais em (*)
A simples
perda de um celular já é um grande transtorno. No caso de roubo, a implicação é
a de um enorme risco de uso criminoso das preciosas informações pessoais nele
contidas. Mesmo fora dessas situações extremas, o dono de um celular tem em
suas caixas de arquivos uma série de mensagens, vídeos etc. que ele não
gostaria que fossem visualizadas por ninguém mais, por mais íntimo que seja.
Sobre isso, há alguns dias assisti um filme francês, “Nada a esconder”, que de maneira
jocosa, e ao mesmo tempo dramática, aborda essa questão. Nove amigos – quatro
casais e um solteirão, se reúnem para jantar na casa de um deles. A mesa é
farta, comida sofisticada, como convém à mesa de uma refeição francesa, o vinho
é generoso e de muito boa qualidade. Estão todos alegres, se divertindo, até
que alguém sugere o que seria uma brincadeira, uma espécie de jogo da verdade.
Todos colocariam seus celulares sobre a mesa, continuariam a comer, beber e
conversar. Sempre que algum celular tocasse, o dono deveria atender viva-voz,
de modo a que todos pudessem escutar a conversa. Fora o solteirão, eram todos
casais, não haveria o que temer, argumentou-se. A relutância de um ou outro foi
vencida e o jogo começou. Foi uma sucessão de chamadas que deixaram a todos
chocados, revelando segredos mantidos no completo desconhecimento do parceiro
ou da parceira que atendia ao chamado. Lembrei-me de Nelson Rodrigues,
dramaturgo, romancista, cronista, dentre outras artes literárias, e que
afirmava: “Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém
cumprimentaria ninguém.” Nelson, um notável frasista, era um profundo
observador do comportamento das pessoas, notadamente no tocante aos hábitos
sexuais. Era bombástico, frequentemente exagerado, mas em geral havia sempre um
toque de verdade em suas colocações. Claro, a frase citada contém um evidente
exagero, mas há pensamentos e exteriorizações de pensamentos que melhor seria
permanecerem recônditos.
Falamos na obsolescência dos
dicionários e das enciclopédias com o advento do google. É compreensível que
tal aconteça. Mas a dependência do celular, o enorme tempo gasto em sua
utilização descontrolada, o consumo de informações desenfreadas ofertadas para
um consumo rápido, como num fastfood virtual, tem um lado bastante
perverso. Juntamente com a obsolescência da leitura dos dicionários e das
enciclopédias no formato tradicional, também está sendo descartada a leitura de
LIVROS, impressos ou até mesmo e-books, especialmente aqueles que tratam
de questões mais profundas, que exigem tempo, concentração, reflexão, para
absorção de seu conteúdo.
Qual será o futuro da internet e de
seus instrumentos, do nosso aparelhinho? Nada se pode afirmar. A falada
nuvem não existe. É apenas uma metáfora. Todo o sistema de transmissão
apoia-se numa rede de cabos submarinos em fibra óptica, e o armazenamento
ocorre em enormes prédios que abrigam os servidores, situados em diversos
países. São verdadeiras fortalezas, com vários níveis de segurança. Mas não
deixa de ser uma inquietante fragilidade para um sistema do qual passou, e
passa a depender cada vez mais, de forma acelerada, a humanidade. Com ou sem
pandemia.
(*) Postagem “Eu quero Mammy”, de
08/06/19
José Antonio C. Silva
21/08/20
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQuerido amigo, seu texto apresenta inúmeras questões que passam desapercebidas em nosso uso automático do celular e da tecnologia. Esta pequena máquina é algo realmente inquietante para mentes reflexivas e estudiosas como a sua. Obrigada por compartilhar suas reflexões e nos oferecer a possibilidade de mergulhar nestas questões. A propósito, também vi o filme NADA A PERDER que nos oferece reflexões psicológicas e socias. Adorei seu texto! Continue nos presenteando com seus escritos.
ResponderExcluirCorrigindo: o filme NADA A ESCONDER.
ResponderExcluirA descrição cotidiana da nossa relação com o objeto tecnológico celular me conduziu a uma reflexão, pois me senti filmada em alguns momentos! Sua forma literária privilegia a beleza do simples, que é admirável!
ResponderExcluirStella, tb me senti da mesma forma! No dia dia nem nos damos conta de como somos dependentes desse pequeno aparelhos.
ResponderExcluirJosé Antonio, não há o que acrescentar em seu texto sobre o aparelhinho chamado celular, ou "celulite" como você costuma chamá-lo. Após ler suas observações, tive a certeza que sou nomofóbico como tantos outros devem também ser e me questiono se devo urgentemente procurar alguém que resolva minha provável crise de abstinência caso perca o aparelhinho.
ResponderExcluirAcho que com o inevitável aperfeiçoamento destes aparelhos, ficaremos cada vez mais dependentes.