sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O Celular em Tempos de Pandemia

 

O Celular em Tempos de Pandemia

 

Um aparelhinho extremamente portátil, minúsculo, leve, cabe facilmente no bolso de uma calça. O celular, também referido como smartphone, assume enorme protagonismo nesse período da quarentena causada pela Peste (como Albert Camus chamaria a atual pandemia causada pelo  COVID-19). Originariamente concebido para ser um telefone, tinha o formato de um tijolinho, envolto em uma capinha que lhe permitia ser ajustado ao cinto de uma calça, e portado com toda a visibilidade. Bons tempos, ninguém assaltava ou matava por um celular. Eram os anos da década de 1990.

Com o tempo, o aparelhinho foi evoluindo, em formato e, muito principalmente, em possibilidades tecnológicas. De um simples transmissor/receptor de voz, outros recursos foram sendo incorporados. Mensagens de texto – SMS, conhecidos como torpedos -, e na sequência, a comunicação por textos ampliada extraordinariamente com a incorporação do e-mail, do WhatsApp, do Facebook, do Messenger, do Instagram. Junto aos textos também passou a ser possível o envio de fotos, vídeos, áudios. Aplicativos são usados para orientação sobre o trânsito. O google, como instrumento de recepção de notícias e de pesquisa sobre os mais diversos assuntos, praticamente decretou a obsolescência dos dicionários impressos, enquanto as volumosas enciclopédias foram substituídas pela Wikipédia. Pelo celular passou a ser possível escutar música, ver filmes, escolhidos em aplicativos como o Netflix e o Now, pelo Youtube, na própria telinha do aparelho ou projetando na tela de um televisor. A combinação da voz com a imagem passou a ser possível através das ligações por meio de vídeo, conectando duas ou mais pessoas, como nas Lives, em locais distantes. Em tempos de quarentena, esse recurso presta um enorme serviço à comunicação, o que, em contrapartida, agravou um novo tipo de dependência, descrito pelo termo nomofobia, abreviação, do inglês, para no-mobile-phone phobia criado para descrever o pavor de estar sem o telefone celular disponível. E ele poderá se tornar indisponível por diversas razões: perda, roubo, quebra, imersão em água, desconfiguração etc. Sobre outros riscos envolvidos no abuso do celular comentaremos ainda neste texto.

Mas o aparelhinho tem ainda diversas outras funções. Possui câmera fotográfica, calculadora eletrônica, agenda, calendário, bloco de anotações, despertador, e outras facilidades mais. Dentre essas, sobressai a possibilidade de acesso ilimitado às contas bancárias do usuário. Através do celular, com o aplicativo iToken instalado, é possível executar literalmente todas as operações financeiras, o que não seria possível fazer mesmo através de um computador.

É, então, o celular uma verdadeira maravilha? Sim, e não, como todos os objetos da técnica, como já antecipava Martin Heidegger, um dos filósofos essenciais do Século XX, notadamente em seu texto “A questão da técnica” (escrito em 1959!), preocupava a Heidegger o feitiço lançado pelos objetos da técnica sobre os seus próprios criadores. Já escrevi diversas vezes sobre essa questão. A respeito do abuso do celular e a progressiva dependência das pessoas ao seu uso, tratei particularmente em meu texto, postado aqui neste blog em 08/06/19, denominado “Eu quero Mammy”, com foco no uso abusivo do aplicativo WhatsApp, e do qual reproduzo alguns trechos, por oportuno, na presente fase de confinamento ocasionado por uma pandemia que aumentou exponencialmente aquele efeito sobre os usuários de celular. Escrito bem antes da pandemia, centra-se muito especialmente numa avaliação crítica do uso abusivo do celular.

(...) “Basta lançarmos um olhar ao redor e veremos que, em toda a parte, uma grande quantidade de pessoas está lendo ou escrevendo mensagens via WhatsApp. No metrô, nos ônibus, nos restaurantes, na plateia de cinemas, teatros e de shows, nas salas de aulas, caminhando nas ruas, no interior dos lares, em qualquer lugar. Crescentes alertas quanto a esse abuso parecem relegados ao total descaso. A postura corporal exigida no uso do aplicativo causa problemas na coluna vertebral. O desperdício de precioso tempo em consultar e responder mensagens tantas vezes irrelevantes, redundantes, notadamente de extensos grupos de contatos. O surgimento do estresse, da ansiedade. O risco incorrido ao dirigir teclando o WhatsApp, uma postura ainda mais perigosa e irresponsável do que falar ao celular. A atenção posta no aplicativo em locais públicos, notadamente nas ruas, expõe o usuário à um ponderável risco de assalto, queda, atropelamento.  E a escrita? Muito mais do que no moribundo e-mail, a escrita no WhatsApp dolorosamente maltrata o vernáculo. Não se trata aqui de pretender que seus usuários sejam um Machado de Assis ou um Carlos Drummond de Andrade, mas, sim, que redijam com um mínimo de consistência, para se fazer entender corretamente pelo interlocutor (...)”

 

E a referida crônica aborda outras questões:

(...) Desencontros presenciais

E há o problema do desencontro. Curiosamente, os aplicativos feitos para aproximar as pessoas, utilíssimos para aquelas fisicamente distantes, acaba por afastar as muito próximas, até mesmo literalmente ao lado. Tente falar alguma coisa com um dependente do WhatsApp enquanto ele checa ou digita suas mensagens. Você terá a nítida impressão de estar falando para as paredes, de que suas palavras simplesmente não são captadas, respostas “hum...hum... aham...aham...” ao seu pedido de confirmação de escuta não lhe darão nenhuma garantia de recepção (...)

(...) Prejuízo ao armazenamento na memória

Para que se tenha a memória de um momento é necessário que ele seja vivenciado, a pessoa precisa estar presente, com seus sentidos em alerta. Como poderá alguém reter na memória aquilo que sequer foi captado pelos sentidos, no caso ilustrado, pela audição? Como escreve a psicóloga Linda Davidoff (MAKRON Books,1980), “perceber, estar consciente, aprender, falar e resolver problemas, tudo isso requer aptidão para armazenar informações...”. Ler mais em (*).

(...) Dependência do telefone móvel

Nomofobia: a dependência do telefone celular. Este é o seu caso?

Cada vez mais as pessoas não conseguem desgrudar do smartphone e esse hábito pode trazer consequências físicas e psicológicas. Ler mais em (*).

(...) Riscos à saúde mental e física

O texto referido no parágrafo acima informa que “Em nível neurobiológico, sabemos que existe um “sistema de recompensa cerebral” (SRC) que tem como função estimular comportamentos que colaboram com a manutenção da vida (como sexo, alimentação e proteção). Quando o SRC é ativado, com a liberação do neurotransmissor dopamina, isto proporciona imediatas sensações de prazer e satisfação. Tal qual para as drogas de abuso, as dependências comportamentais (incluindo a nomofobia), são capazes de levar a uma hiperatividade do constante SRC, podendo causar alteração no funcionamento cerebral.” Ressalva-se que, “Entretanto, as consequências de longo prazo do funcionamento alterado pelo excesso do uso do celular ainda são incertas. Além disso, as pessoas que apresentam uso abusivo do celular têm maior chance de desenvolver transtornos psiquiátricos como ansiedade, depressão e sintomas de impulsividade, embora a relação de causa-efeito nem sempre seja fácil de ser estabelecida.” Problemas físicos frequentemente ocorrem, incluindo fadiga, patologia ocular, dores musculares, tendinites, cefaleia, distúrbios do sono e sedentarismo. Além disso, é evidente a maior propensão em se envolver em um acidente automobilístico e de sofrerem quedas ao andar.”

(...) Para filhos, pais ficam muito tempo no celular

Este é o título de mais um texto sobre o tema. Como subtítulo temos: “Pesquisa aponta que quatro em cada dez adolescentes consideram que responsáveis fazem uso excessivo dos celulares. E 28% dos adultos entrevistados avaliam que vício na telinha prejudica o relacionamento familiar.” Ler mais em (*)

            A simples perda de um celular já é um grande transtorno. No caso de roubo, a implicação é a de um enorme risco de uso criminoso das preciosas informações pessoais nele contidas. Mesmo fora dessas situações extremas, o dono de um celular tem em suas caixas de arquivos uma série de mensagens, vídeos etc. que ele não gostaria que fossem visualizadas por ninguém mais, por mais íntimo que seja. Sobre isso, há alguns dias assisti um filme francês, “Nada a esconder”, que de maneira jocosa, e ao mesmo tempo dramática, aborda essa questão. Nove amigos – quatro casais e um solteirão, se reúnem para jantar na casa de um deles. A mesa é farta, comida sofisticada, como convém à mesa de uma refeição francesa, o vinho é generoso e de muito boa qualidade. Estão todos alegres, se divertindo, até que alguém sugere o que seria uma brincadeira, uma espécie de jogo da verdade. Todos colocariam seus celulares sobre a mesa, continuariam a comer, beber e conversar. Sempre que algum celular tocasse, o dono deveria atender viva-voz, de modo a que todos pudessem escutar a conversa. Fora o solteirão, eram todos casais, não haveria o que temer, argumentou-se. A relutância de um ou outro foi vencida e o jogo começou. Foi uma sucessão de chamadas que deixaram a todos chocados, revelando segredos mantidos no completo desconhecimento do parceiro ou da parceira que atendia ao chamado. Lembrei-me de Nelson Rodrigues, dramaturgo, romancista, cronista, dentre outras artes literárias, e que afirmava: “Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém.” Nelson, um notável frasista, era um profundo observador do comportamento das pessoas, notadamente no tocante aos hábitos sexuais. Era bombástico, frequentemente exagerado, mas em geral havia sempre um toque de verdade em suas colocações. Claro, a frase citada contém um evidente exagero, mas há pensamentos e exteriorizações de pensamentos que melhor seria permanecerem recônditos.

Falamos na obsolescência dos dicionários e das enciclopédias com o advento do google. É compreensível que tal aconteça. Mas a dependência do celular, o enorme tempo gasto em sua utilização descontrolada, o consumo de informações desenfreadas ofertadas para um consumo rápido, como num fastfood virtual, tem um lado bastante perverso. Juntamente com a obsolescência da leitura dos dicionários e das enciclopédias no formato tradicional, também está sendo descartada a leitura de LIVROS, impressos ou até mesmo e-books, especialmente aqueles que tratam de questões mais profundas, que exigem tempo, concentração, reflexão, para absorção de seu conteúdo. 

Qual será o futuro da internet e de seus instrumentos, do nosso aparelhinho? Nada se pode afirmar. A falada nuvem não existe. É apenas uma metáfora. Todo o sistema de transmissão apoia-se numa rede de cabos submarinos em fibra óptica, e o armazenamento ocorre em enormes prédios que abrigam os servidores, situados em diversos países. São verdadeiras fortalezas, com vários níveis de segurança. Mas não deixa de ser uma inquietante fragilidade para um sistema do qual passou, e passa a depender cada vez mais, de forma acelerada, a humanidade. Com ou sem pandemia.

(*) Postagem “Eu quero Mammy”, de 08/06/19

 

José Antonio C. Silva

21/08/20

6 comentários:

  1. Querido amigo, seu texto apresenta inúmeras questões que passam desapercebidas em nosso uso automático do celular e da tecnologia. Esta pequena máquina é algo realmente inquietante para mentes reflexivas e estudiosas como a sua. Obrigada por compartilhar suas reflexões e nos oferecer a possibilidade de mergulhar nestas questões. A propósito, também vi o filme NADA A PERDER que nos oferece reflexões psicológicas e socias. Adorei seu texto! Continue nos presenteando com seus escritos.

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  2. A descrição cotidiana da nossa relação com o objeto tecnológico celular me conduziu a uma reflexão, pois me senti filmada em alguns momentos! Sua forma literária privilegia a beleza do simples, que é admirável!

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  3. Stella, tb me senti da mesma forma! No dia dia nem nos damos conta de como somos dependentes desse pequeno aparelhos.

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  4. José Antonio, não há o que acrescentar em seu texto sobre o aparelhinho chamado celular, ou "celulite" como você costuma chamá-lo. Após ler suas observações, tive a certeza que sou nomofóbico como tantos outros devem também ser e me questiono se devo urgentemente procurar alguém que resolva minha provável crise de abstinência caso perca o aparelhinho.
    Acho que com o inevitável aperfeiçoamento destes aparelhos, ficaremos cada vez mais dependentes.

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