sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Só faltam duas semanas

 

Só faltam duas semanas

Faltam duas semanas para que nos digam que faltam duas semanas para nos dizerem que faltam duas semanas para a quarentena acabar.

 

É minha terceira crônica sobre a pandemia, a qual me refiro como A Peste, em homenagem à Albert Camus, cujo livro com esse título foi abordado em minha crônica anterior, “A Toca, de Franz Kafka, e o Covid-19”, da qual reproduzo alguns trechos. O prólogo é um chiste que circula pelas redes e bem representa o momento em que estamos mergulhados em incertezas. E quanto à duração da peste essa é uma das dúvidas mais angustiantes.

A mídia em geral – os jornais e os canais de televisão – parecem regozijar-se com tragédias, sejam elas de que natureza for, e onde quer que elas ocorram. É fastidioso acompanhar o macabro noticiário sobre as estatísticas dos contaminados e dos óbitos. Recorremos, então, às redes sociais, que estão excitadas como nunca. A peste é assunto onipresente. E, como não poderia faltar, há uma avalanche de fake news, algumas tão óbvias que causa espanto a intenção de sua criação. Fake news é um tema recorrente nos meus escritos. Para citar apenas um, recente, percorre as redes um vídeo em que uma voz feminina informa que médicos italianos descobriram, após exumação de cadáveres e autópsia de vítimas do COVID-19, que a causa da morte não havia sido um vírus, mas, sim, uma bactéria!!! E que aquelas pessoas poderiam ter sido salvas simplesmente através de tratamento com aspirina e antibióticos. Simples assim... Mesmo certo de que se tratava de uma notícia falsa, consultei um médico italiano, casado com minha sobrinha, residentes na Itália, que respondeu de imediato: fake. O grave nisso tudo é que divulgação de falsas notícias pode induzir os crédulos a sérios erros.

Somos soterrados por mensagens que vão desde a minimização do problema até a paranoia. Cada um tem a sua verdade, quando de fato ninguém tem uma rigorosa comprovação científica de coisa alguma. Recebemos uma enorme quantidade de mensagens - textos e vídeos – de médicos e de outras autoridades na área da saúde, cada um mais douto que o outro, atestando a eficácia de tratamentos os mais variados, baseados na utilização de drogas há muito conhecidas e aplicadas com diversas finalidades. Elas seriam muito efetivas no combate à infecção, e até mesmo na prevenção da contaminação pelo vírus. Argumentos contrários à essas indicações são refutados como tendenciosos: como são medicamentos de baixo custo, a indústria farmacêutica não tem interesse na enorme ampliação de seu uso, gananciosamente trabalham na pesquisa de alguma vacina que lhe proporcionará um lucro em escala monumental.

A propósito da vacina, a Organização Mundial da Saúde (OMS) advertiu (03/ 08/2020) que talvez nunca exista uma "solução" contra o coronavírus, apesar da corrida contra o tempo de laboratórios e países para obter uma vacina. "Não há solução e talvez nunca exista", afirmou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em uma entrevista coletiva virtual.... - Veja mais em (*). Entretanto, a OMS tem sido habitual em mudar de posição a respeito da pandemia com uma surpreendente velocidade, não creio que mereça credibilidade no tocante ao tema. De qualquer modo, não faltam mensagens inquietantes afirmando que mesmo aqueles que já contraíram e se curaram da doença não estarão permanentemente imunizados, uma vez que o vírus é mutante, surgirá em novas formas. Horror que angustiaria o nosso Camus.

Na data em que começo a escrever estas linhas, 06/08/2020, a quarentena completa cerca de 5 meses de sua implantação em nosso país. Embora houvesse quem, de início, resistisse, muitos outros a acataram, especialmente os idosos e/ou portadores de outros fatores de risco. E foram muitas as razões para tal isolamento. Na contramão dos que minimizavam a ameaça do vírus estavam aqueles que reconheciam o risco e tomavam suas cautelas, e também aqueles que são tomados pelo pânico, vendo o fantasma do vírus espreitando em toda parte. Escrevem protocolos para entrada e saída de casa. As ruas, as calçadas, os bancos das praças estão contaminados. Os elevadores e as escadas dos edifícios ocultam o vírus da Peste. Os sapatos e as roupas são transmissores, ao chegar da rua, para onde não deveriam ter ousado ir, devem separar e providenciar a pronta esterilização dessas peças de vestuário. Os pneus do carro, ao rolar sobre as ruas infectadas, e a própria chave de ignição, são outros solertes introdutores da peste em nossas moradias. Os alimentos e outros itens que adquirimos nos mercados estão igualmente contaminados. Nem pensar em sacar dinheiro para fazer pagamentos, deve-se usar o cartão de débito ou de crédito, e desinfetá-los imediatamente após o uso, e não receber o comprovante de pagamento emitido pela maquininha sinistra.

A peste igualmente penetra em nossa toca através dos correios, do entregador do jornal, dos serviços de delivery. Dentro de nossas casas é essencial estarmos atentos a cada esconderijo do vírus. Ele está em nossos celulares, em nossos computadores, em nossos aparelhos de telefonia fixa. Nos aparelhos eletroeletrônicos, na fiação e em seus controles, nos interruptores de luz. Na louça e nos utensílios de cozinha. Nas maçanetas das portas e em suas chaves, nas torneiras, nas tampas dos sanitários. Em nossas roupas, em nossa pele, em nossos cabelos. Ele é onipresente. A cada instante temos que lavar as mãos com sabão, com álcool gel. O contágio se faz pelo ar. Dentro deste quadro seria praticamente impossível escapar. Na angústia de saber se está contaminada, sem apresentar ainda os sinistros sinais da doença, muitas pessoas recorrem aos testes, cuja confiabilidade está longe de ser absoluta. Assim sendo um teste pode apresentar um resultado falso positivo ou falso negativo.  Circula nas redes, inclusive, um vídeo de uma intitulada autoridade médica afirmando categoricamente a inutilidade dos testes.

Trancafiados em casa, mesmo que em ambientes confortáveis, o que não é, em absoluto, o padrão residencial em nosso país, os confinados começam a imaginar outros perigos à espreita. Risco de quedas com fraturas (acontecem, sou testemunha), queimaduras graves, cortes profundos, insurgência de alguma doença que os obriguem a recorrer a um atendimento emergencial que os exporiam ao risco do contágio. Corre-se o risco de, na toca, contrair-se um vírus muito mais danoso que o COVID-19: o vírus da loucura. Mas há aqueles que procuram banalizar as condições de confinamento, dizendo ser uma boa ocasião para ler, escrever, escutar música, etc. Tal argumentação a mim não se aplica, em absoluto. As mencionadas atividades sempre encontraram espaço em minha vida; pelo prazer e pela importância que a elas atribuo, não necessito estar confinado para exercê-las. Inversamente, o estresse do confinamento tem efeito contrário à minha criatividade. Existe a alternativa de assistir-se filmes, extensivamente utilizada, e as Lives. Juntar pessoas diante de uma tela de televisão, de um computador, ou de um celular é, inegavelmente, de grande valor quando elas estão fisicamente separadas por grandes distancias, em cidades ou mesmo países distintos, e que, mesmo antes da peste, raramente, ou nunca, teriam a oportunidade de um congraçamento presencial. É igualmente muito útil para divulgação de conhecimentos sobre temas variados, aulas, tele atendimento médico e psicológico (ambos com limitações), reuniões de trabalho e tantas outras atividades. Entretanto, é um pobre substituto para aqueles que têm por hábito encontrar-se fisicamente, curtir uma ida ao cinema, a um show, a um bar, à praia, um passeio. Nada no mundo virtual pode substituir o olho no olho, o toque, o aperto de mão, o abraço, o beijo.

Mas, as pessoas estão se cansando do isolamento. De fato, é muito chato suportar um longo isolamento, interrompido apenas por saídas furtivas, por necessidade ou meramente para quebrar a rotina do confinamento. Sem uma evidência insofismável de que a ameaça do vírus se afasta, começaram a ser implementadas medidas de abertura nos municípios, cada um deles seguindo critérios próprios. A frequência às praias, shopping centers, clubes, academias, bares e muitos outros locais vem sendo liberada, guardadas as restrições próprias a cada caso. Na Zona Sul da Cidade do Rio de Janeiro e na Região Oceânica de Niterói, lugares onde eu fisicamente posso constatar, as máscaras começam a cair, e as pessoas a buscar maior socialização. Esperemos que seja um movimento sem volta, que estejamos de fato em uma estabilização, ou mesmo decréscimo na curva que demonstra a evolução da peste.  Seja lá quando efetivamente a peste refluir de maneira insofismável, quando não ocorrer qualquer movimento pendular de retração, e a figura do mascarado começar a ser apenas uma lembrança incorporada ao imaginário de nossas cidades, assim como o uso do alcoolgel.

Finalizo lamentando que a questão do vírus tenha sido contaminada pelo partidarismo político. Na busca de bodes expiatórios travam-se acerbas discussões onde todos se julgam donos da verdade. As estatísticas de contágio e de fatalidades estariam falseadas, para mais ou para menos, com objetivos escusos, criminosos. Teorias da conspiração são construídas para se ajustar à inclinação ideológica de cada um. O vírus desconhece ideologias, ele contamina, faz adoecer e mata seres humanos independentemente de raça, credo, cor ou convicção política. O mais sensato seria usarmos o nosso discernimento para julgar com isenção o turbilhão de mensagens que nos assola, cuidando de fazer com autenticidade as nossas escolhas quanto a como proceder diante de tamanho quadro de incertezas.

 

(*) https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/08/03/oms-afirma-que-talvez-nunca-se-descubra-uma-solucao-contra-o-coronavirus.htm?cmpid=copiaecola

 

José Antonio C. Silva

07/08/2020

5 comentários:

  1. Amigo, seu texto é impactante. Você compartilha seus sentimentos neste nosso momento tão difícil. É realista e nos faz refletir sobre nossas posições. Uma maravilha de texto!!!

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  2. Você tem um estilo único!Objetividade e realidade sem passividade (o que mais admiro!), e sempre nos arrancando da inércia para construção de conhecimento e de atitudes.

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  3. Cada parágrafo do seu belo texto, descreve com exatidão todas as mazelas que atingem em cheio uma população mundial hoje de 7,8 bilhões de pessoas e finaliza alertando para as incertezas que nos esperam, tornando difícil prever o que nossos filhos e netos encontrarão em um futuro próximo.
    Vivemos hoje na era do "paradoxo socrático" em que muitos não fazem o mal voluntariamente, mas por ignorância, pois a sabedoria e a virtude são inseparáveis, enquanto outros fazem o mal propositalmente, trazendo consequências irrecuperáveis para a humanidade, cito como exemplo as pandemias, os atentados, a política perversa e etc. Apesar destes tempos difíceis temos que ser otimistas, continuar fazendo algo para que seja digno o tempo que nos resta.

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  4. Muito bom texto. Passamos juntos a maior parte do tempo no inicio da quarentena, me ajudou muito a manter a sanidade mental estar com pessoas amadas.

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  5. Muito bom texto. Passamos juntos a maior parte do tempo no inicio da quarentena, me ajudou muito a manter a sanidade mental estar com pessoas amadas.

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