sexta-feira, 22 de julho de 2022

O Feitiço da Técnica

                                                O Feitiço da Técnica 

     Duas matérias recém publicadas em jornal me fizeram retornar a um tema extremamente recorrente em meus escritos: o feitiço exercido pela Técnica sobre o homem. Começaremos pelo artigo do jornalista Leo Aversa, intitulado “5G? Prefiro o meu Nokia de volta” (1). 

     Em um artigo inteligente e bem humorado, Aversa começa por ironizar a propaganda em torno da chegada ao Rio do 5G, e que seria chegada a hora de trocar o celular. “Além da supervelocidade – como vivi antes dela, me pergunto -, ao que parece o 5G vai conectar as coisas. Todas as coisas. Elas vão conversar entre si e resolver seus problemas de forma objetiva”. “Boa sorte para as coisas”, ironiza. E prossegue citando os alardeados benefícios trazidos pelo 5G. “Os filmes, as músicas, as mensagens terão um download mais rápido, avisam os reclames. Comunicação instantânea, exultam”. E, então, faz uma crítica extremamente percuciente: o problema nos dias atuais não é a falta de comunicação, mas, sim, o excesso! E se permite preferir que voltássemos ao 3G, ao 2G, ao G original. Já seria bastante para falar com quem se precisa e mandar mensagem para quem se quer. Sustenta, mesmo, que se poderia voltar para o Nokia tijolão que, especula, seria ½ G, mais do que suficiente para situações de emergência. Curiosamente, diversas vezes me surpreendi fazendo esse mesmo discurso. O tijolão, que os homens podiam exibir expostos, atados ao cinto, sem qualquer preocupação com o risco de assalto, foi útil para que meus filhos, na época frequentadores das baladas, pudessem pedir socorro a mim ou a minha esposa em caso de sufoco, ou simplesmente dar notícia sobre seu paradeiro. Em galopante transformação, o tijolão foi sendo substituído por artefatos de alta tecnologia, através dos quais se pode fazer quase tudo. Literalmente condensam praticamente toda a informação sobre as nossas vidas, fazendo com que eles se tornem o objeto preferido de bandidos cada vez mais ousados.

     Prosseguindo, Aversa se pergunta se não deveria deixar de reclamar da tecnologia, pois se estivesse escrevendo seu texto à máquina teria muito mais trabalho e gastaria muito mais tempo, ainda que o tec-tec-tec do batucar das teclas fosse inspirador e memorável a cena de arrancar o papel da máquina para conferir o texto. Neste ponto, parece que o articulista travou algum contato com uma apreciação do filósofo Martin Heidegger, como veremos a seguir. 

    Assim, recorrerei a Heidegger, que se preocupou com as alterações na vida cotidiana trazidas pelo uso das inovações tecnológicas. Zimmerman, em seu livro “O Confronto de Heidegger com a Modernidade” (2) toma como exemplo a máquina de escrever, que poderia ser considerada apenas um modo mais eficiente de escrever-se, mas que, no entanto, o filósofo considerava a eficiência como sendo uma medida errada para usar-se em matéria de avaliação da escrita. Para ele, escrever era essencialmente escrita à mão:
    
     Sabia [Heidegger] por experiência própria que o seu pensamento ocorria através da mão, enquanto escrevia. A escrita à máquina minou tanto o pensamento como a linguagem, porquanto a palavra já não vai e vem através da escrita e da mão que age automaticamente, mas antes da pressão mecânica que ela exerce [nas teclas da máquina]. A máquina de escrever separa a escrita do domínio essencial da mão, e, acrescente-se, da palavra (1990, p.308)                                                                                                                                                            
     Para Heidegger, conforme Zimmerman, as máquinas de escrever tinham a sua utilidade, por exemplo, para reproduzir e preservar coisas já escritas à mão, mas que não havia lugar para escrita à máquina em se tratando de correspondência pessoal. O filósofo considerava que, quando as máquinas de escrever apareceram, as pessoas sentiram-se insultadas por receberem cartas datilografadas. “A escrita à máquina esconde o caráter pessoal do autor da carta, contribuindo dessa forma para a homogeneização da humanidade” (HEIDEGGER apud ZIMMERMANN, 1990, p. 308). Neste ponto eu me permito dar o meu testemunho. Coleciono em meus guardados muitas dezenas de cartas à mão escritas há muitas décadas por velhos amigos e antigas namoradas, e em todas recebo mais do que as palavras em si. O tipo de papel usado, o formato das letras, os riscados, a firmeza ou a tibieza do traço, os erros ortográficos não capturados por um corretor de textos inexistente na época, tudo isso complementa a emoção que uma carta pessoal transmitia.

     O comentador escreve que a objeção de Heidegger à prática da escrita de cartas pessoais à máquina era compartilhada por muitos dos seus contemporâneos, e que, embora a máquina de escrever seja um sintoma da era tecnológica, o filósofo concede (apud ZIMMERMAN, 1990, p.308) “que ela não é ainda uma máquina no sentido estrito de tecnologia moderna, antes é um intermediário entre a ferramenta e a máquina, um mecanismo. A sua produção, todavia, é condicionada pela tecnologia de máquinas”.

     A máquina de escrever, por sua vez, foi substituída pelo processador de textos, este um lídimo produto da tecnologia moderna, um gigantesco passo além da escrita à máquina, que já representara um considerável avanço em relação à escrita à mão. Estamos mais uma vez diante de uma radical mudança de conceito de escrever, pois até mesmo o termo “processador de texto” sugere, conforme Zimmerman (1990, p.308), “um massagear, um moldar, uma gestão de palavras, como se elas fossem matéria prima - plástica”. Embora reconhecendo as inegáveis vantagens do processador de texto sobre a escrita à mão e a escrita à máquina (com o que estou de inteiro acordo, ainda que compreendendo as considerações de Heidegger) esse autor assinala que:

 Na medida em que as palavras produzidas pelo monitor não são ainda coisa alguma de permanente, antes meros padrões de elétrons, alguns utilizadores de processador de texto alegam sentir-se menos ansiosos ao escreverem nele, por sentirem-se menos comprometidos às palavras que apenas “processaram” (ZIMMERMAN, 1990, p.308).

     Retornando ao texto de Aversa, ele deixa claro que a sua queixa do telefone é sua onipresença, quando ele virou uma prótese do corpo humano. E o 5G somente aumentará o vício, a subjugação à técnica. E quais seriam as vantagens? Fakenews se espalhando mais rapidamente, vídeos sem graça do WhatsApp circulando mais lépidos, tretas rolando frenéticas pelas reses socias, exemplifica. Eu acrescentaria as tentativas de golpe, as teorias da conspiração e o patrulhamento do politicamente correto entre os fenômenos que ganharão velocidade de transmissão. E aponto para o WhatsApp como a grande ferramenta de veloz propagação de irreflexões de toda ordem, em completa distorção de uma utilização sadia, como alternativa à mídia tradicional frequentemente bastante comprometida.

     A segunda recente matéria que me me caiu aos olhos foi “Alexa, Siri, quem foi às compras sem eu pedir?” (3). A matéria trata de uma questão bastante preocupante, assustadora, mesmo, com o subtítulo “Crescem relatos de encomendas feitas por assistentes virtuais sem o aval dos clientes. Falha preocupa especialistas”. 

    Agora vamos tratar de problemas causados pelo uso de assistentes virtuais como a Alexa, da Amazon, a Siri, da Apple e o Google Assistant. Afinal, o que são esses assistentes virtuais? Alexa, por exemplo? Vamos recorrer ao link (4)

     “Alexa é o nome da assistente virtual da Amazon, introduzida em 2014 com a Echo, sua primeira caixa de som inteligente. Diferente do que Apple, Google e Microsoft faziam até então, com Siri, Google Assistente e Cortana, a Alexa já nasceu com foco em atender o usuário nas tarefas do dia a dia, principalmente se forem compras na loja.

     Assim como suas concorrentes a Alexa é uma assistente conversacional, capaz de entender contexto até certo ponto e executar tarefas simples, como configurar alarmes, informar a situação do trânsito ou a previsão do tempo, executar uma lista de músicas ou reproduzir podcasts. 

    Mas, por não estar atrelada a um sistema operacional, a Alexa é compatível com iPhone, Android, Windows e até consoles de videogame, além de ser capaz de se conectar a uma vasta gama de dispositivos de terceiros.

     Como funciona a Alexa?

     Basicamente, é necessária uma palavra de ativação para despertar a assistente e depois pedir o comando. Essa palavra de ativação pode ser configurada para “Alexa”, “Amazon” ou “Echo”. Assim, os microfones ficam sempre atentos para ouvir se o usuário vai executar um comando.

     Então, como nas demais assistentes virtuais, quando a palavra de ativação é dita, basta prosseguir com a solicitação. Exemplo: Alexa, defina um alarme para amanhã, às 3 da tarde. 

    Esses pedidos são gravados e enviados para os servidores da Amazon, nos quais é feito o processamento da solicitação e, depois, devolvidos ao usuário. Tudo acontece rapidamente. 

    O que a assistente da Amazon consegue fazer? A Alexa pode interagir com dispositivos tais como geladeiras, lâmpadas inteligentes, micro-ondas, fechaduras, termostatos, controles remotos, TVs, sensores de movimento, interruptores, entre outros. Tanto por comandos de voz ditos pelos usuários quanto por interação com os aplicativos dedicados à automação de tarefas, como o IFTTT.

     Falando na Amazon, a Alexa é capaz de fazer pedidos de compras: caso o usuário mantenha dados financeiros em sua conta, ele pode usar comandos de voz e pedir que a assistente compre produtos cotidianos. Em 2017, ela passou a aceitar pedidos de comida em redes como Starbucks, Domino’s Pizza e Pizza Hut, entre outras.

     Além disso, no app, é possível usar algumas habilidades criadas por terceiros — as chamadas skills –, aumentando a gama de funções disponíveis nos dispositivos Echo.” Enfim, dentre muitas outras coisas, 

    Alexa é capaz de fazer pedidos de compras. E foi o que ela fez, segundo a referida matéria publicada no jornal, só que o fez por conta própria, sem ter sido solicitada pelo seu usuário. Estão relatados diversos casos dessa independência desses assistentes virtuais. Uma senhora, em mudança do Rio para São Paulo, relata ter recorrido à Siri para organizar as compras para o novo endereço. Dois meses depois foi surpreendida com uma compra repetida de pratos, copos e outros apetrechos para a casa cobrada em seu cartão. Duas semanas mais tarde, nova surpresa: a compra de uma passagem aérea para o Rio, sem que ela houvesse comandado a compra. Outro caso reportado foi o ocorrido com um estrategista digital dono de duas Alexas, uma TV Smart, tablet e smartphone de última geração. Sua paixão pela tecnologia digital o levou a fazer compras pela Alexa, até que o assistente virtual assinou um pacote de TV anual confundindo sua solicitação de pesquisa sobre aplicativos de streaming. Após esta ocorrência, desistiu de fazer compras virtuais. 

    A questão é séria. Está reportado que uma pesquisa recente elaborada pelo grupo americano de investimento Loup Ventures mostrou que as assistentes virtuais não compreendem parte dos comandos. Submetidas a um teste de 800 perguntas, a Google Assistant respondeu a 88% das perguntas, a Siri a 75% e, por fim, a Alexa a 72%. Quando as assistentes virtuais passam a tomar decisões por conta própria fica muito clara a necessidade de reforçar seus sistemas de segurança. Mas, ao que tudo indica, a prioridade do avanço tecnológico é com a velocidade.

     Finalizando. São considerações de obscurantistas? De luditas? Sou eu mesmo um ludita? Se sou, estou em boa companhia. John Casti, ph.D. especializado nos estudos das teorias dos sistemas e da complexidade, e que relaciona em seu livro “O Colapso de tudo” (5) UM APAGÃO NA INTERNET entre onze alarmantes – e prováveis – situações que podem arrastar o mundo para uma idade das trevas; Martin Rees, ex-Presidente da associação Britânica para o Avanço da Ciência, e autor de um livro com um título assustador: “Our Final Century” (6) (Nosso derradeiro século); Jaron Lanier, filósofo da computação, e um dos precursores da internet e da realidade virtual, autor do livro “Dez razões para você deletar agora as suas redes sociais” (7), naturalmente um exagero polêmico, no intuito de dramatizar a dependência da internet, de darmos um tempo para reflexão. O que estará acontecendo? Uma resposta muito bem estruturada eu a encontrei no livro do escritor norte-americano Nicholas Carr (8) objeto de uma crônica postada aqui neste blog intitulada “Ninguém mais lê e-mails” (ressalte-se que Carr é um homem absolutamente afinado com o desenvolvimento da informática, um ativo usuário das mais atualizadas ferramentas que ela coloca à disposição da sociedade). O que ele faz ao longo do livro é uma crítica ao uso abusivo da internet, o que ele mesmo fazia, até se dar conta e fazer uma desintoxicação muito bem planejada, com uma desconexão quase completa por um período de alguns meses, seguido de um retorno em bases equilibradas. E, temos, obviamente Martin Heidegger, que, embora veemente crítico do abuso da tecnologia, afirmava que podemos ter uma outra relação com os objetos técnicos, que podemos utilizá-los e, ao utilizá-los, permanecer ao mesmo tempo livres deles, de forma que possamos a qualquer momento larga-los, utilizá-los como devem ser utilizados: 

     Podemos dizer “sim” à utilização inevitável dos objetos técnicos e podemos ao mesmo tempo dizer “não”, impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa natureza (Wesen). SERENIDADE (9) 

     A esta atitude de deixar os objetos técnicos entrarem em nosso mundo cotidiano e, ao mesmo tempo, deixá-los fora, do sim e do não em relação a eles, o filósofo designa como a serenidade para com as coisas. Trata-se de usufruir da tecnologia sem ficar-se restrito, dominado por ela. Simples assim, se me permitem o anglicismo.

 ----------------------------------------------------------------------------------------------------------                     (1) O GLOBO. Edição de 19/07/2022. Segundo Caderno, Pag. 6. (2) ZIMMERMAN, Michael E. Confronto de Heidegger com a Modernidade – Tecnologia/Política/ Arte. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. Pag.307 (3) O GLOBO. Edição de 17/07/2022. Caderno Economia, Pag.22. (4) https://tecnoblog.net/responde/o-que-e-a-alexa-ou-melhor-quem-e/ (5) CASTI, John. O Colapso de Tudo. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca ltda, 2012. (6) REES, Martin. Our Final Century. United Kingdon: Arrow Books,2004 (7) LANIER, Jaron. Dez Argumentos para você deletar agora as suas redes sociais. (8) CARR, Nicholas. O que a internet está fazendo com os nossos cérebros – A Geração Superficial: AGIR, Rio de Janeiro, 2011 (9) HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959. Pag.23

 José Antonio C. Silva 22/07/2022

3 comentários:

  1. Querido, amigo;
    Como sempre um texto muito bem construído e com uma provocação importante sobre o risco de desumanização que o mau uso da técnica pode trazer. Adorei! Obrigada!

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  2. Mais uma vez, o autor nos brinda com um excelente texto, sobre um tema atualíssimo, fazendo-o de maneira brilhante, como sempre o faz.
    Parabéns, caro Jose Antonio, continue a nos presentear com seus excelentes textos.

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  3. Zé, excelente texto e bastante complexo também, parabéns! Sou muito atenta a tudo isso e, ao mesmo tempo, cada vez mais indignada e triste ao ver as mudanças negativas no funcionamento da sociedade. A privação da interação física e real desproporcional, assim como qualquer desequilíbrio, não deixa de ser uma patologia, e a falha da tecnologia é a prova de que ela não é infalível como julgamos.

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