terça-feira, 19 de abril de 2022

Atenção: Desliguem o celular!

Atenção: Desliguem o celular! "Não se pode pisar duas vezes no mesmo rio." (Heráclito) O progressivo uso do celular, do smartphone e congêneres no espaço público vem provocando crescente discussão na sociedade. A Revista O GLOBO, edição de 15/09/2013, sob o título As vantagens e desvantagens da febre contemporânea de se registrar shows, peças e até jogos com smartphones, trata desse incômodo costume que vem se arraigando entre nós. Incômodo para a grande maioria dos espectadores, mas que encontra seus defensores. A matéria começa relatando o ocorrido durante um recente show realizado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro no dia 29 de agosto deste ano, aniversário do cantor, compositor e instrumentista Edu Lobo, que celebrava a data. Na última canção, antes do bis, Edu Lobo fez uma homenagem a Vinicius de Moraes com uma versão emocionada de “Canto Triste”. Sendo um dos momentos mais marcantes do espetáculo, era de se esperar que a plateia recebesse a execução em atencioso e concentrado silêncio. Entretanto, o que se viu foi uma enorme quantidade de espectadores brandindo seus celulares para registrar aquele delicado momento. Feixes de luz surgiam de aparelhos ao longo de todo o majestoso teatro, a interpretação do cantor podia ser vista numa telinha mesmo por quem não possuía o gadjet: bastava olhar para o smartphone de alguém sentado numa poltrona ao seu lado “Fiquei impressionada, principalmente por ser no Teatro Municipal. Está acontecendo em todo tipo de show. As pessoas estão mudando a relação delas com a arte. Não há mais uma entrega à emoção do espetáculo, a preocupação é ´em deixar rastro` nas redes sociais” ― conforme observação da diretora Gabriela Gastal, que dirigia o DVD do show que o artista fazia naquela noite. Mais adiante o artigo menciona o ocorrido no último show que realizou no Circo Voador, Rio de Janeiro, em fevereiro deste ano, o músico norte-americano Mayer Hawthorne (neo soul music), que pediu encarecidamente à plateia que desligasse os telefones e prestasse atenção à apresentação. Está cada vez mais difícil não ter a experiência de assistir-se a um show sem ser perturbado por usuários de smartphones e tablets: eles estão obcecados em registrar tudo o que veem para guardar ou compartilhar em redes sociais. E o fenômeno é mundial, conforme ilustrado por comportamento semelhante na citação de shows realizados em países tão dessemelhantes como os Estado Unidos, o Japão e a Polônia. Em abril deste ano, em Nova York, a banda (de Rock) americana Yeah Yeah Yeahs colou um cartaz na entrada de uma sala de concertos: “Por favor, não assista ao show através da tela do seu smartphone. Larguem esta m----, como um gesto de cortesia com a pessoa que está atrás e conosco. Muito amor e muito obrigado.” Na Polônia, os organizadores de um festival de música (Unsound), na Cracóvia, tomaram a decisão radical de proibir o público de registrar os shows, com a justificativa oficial de que “as pessoas estão cada vez mais interessadas em exteriorizar a experiência, não em interiorizá-la.” É importante frisar que os três espetáculos citados ―o festival Unsound e os shows de Hawthorne e da banda Yeah Yeah Yeahs― foram protagonizados por artistas jovens, executando música para plateias jovens, e, que, mesmo num ambiente descontraído, exigiram concentração para o seu trabalho. Sintonizado com o problema, o fotógrafo carioca Rafael Lopes, 27 anos, especializado em espetáculos, desabafa: “As fotos e vídeos ficam ruins, a luz da câmera incomoda quem está em volta, o flash perturba o artista no palco. Além disso, as pessoas vão apagar as imagens na primeira oportunidade, ao perceber que a memória do telefone está cheia. Muitos nem olham as fotos depois, E ainda atrapalha quem está fazendo os registros profissionalmente.” Mas, ao contrário, há quem defenda a prática. A matéria da Revista apresenta argumentos daqueles que defendem a importância de se ter um registro dos shows, mesmo que de forma amadora, para a criação de uma memória. E a diretora de seus vídeos e shows Priscila Brasil é citada como uma entusiasta da prática. Ela considera que “quando alguém puxa o celular para filmar o show é porque algo o moveu. Vejo como um ato de amor ao artista (...) É engraçado pensar que elas simplesmente não estão prestando atenção como deveriam. Eu acho simplesmente o contrário." É curiosa essa argumentação. É lícito afirmar que sacar um celular para filmar o show, ou momentos do show, é um ato de amor ao artista? Primeiramente, é certo, que essa prática envolve um ato de desamor ao próximo, o espectador que sente-se perturbado, distraído em sua atenção. Ele pagou para estar ali e gozar o espetáculo ao vivo, uma experiência real, presencial, única, irreprodutível. Se alguém prefere diferir esse gozo para assistir ao espetáculo a posteriori, filmado, deve fazê-lo comprando uma gravação (e o show, gravado, será um outro show, já não é o mesmo rio) feita por um profissional qualificado e devidamente autorizado pela produção. Não tem o direito de perturbar terceiros. E certamente também será um completo desrespeito ao artista sempre que sua performance exigir concentração, entrega, atenção plena, como na ópera, no drama, no balé, na música clássica, e em tantas outras manifestações de arte ― erudita ou popular. Finalmente, a reportagem apresenta um terceiro posicionamento em relação ao tema. É o daqueles que, embora reconhecendo que o barulho e os flashes de smartphones de fato atrapalham a concentração do artista, argumentam na linha do “não se pode frear a tecnologia” ou “não dá para fugir do futuro”. Ou seja, devemos aceitar deterministicamente os efeitos colaterais do avanço tecnológico, por piores que sejam. Nega-se ao homem o poder da liberdade de aperfeiçoar suas relações com a técnica e seus objetos. O abuso do celular vem causando grande desconforto também em salas de cinema, de teatro, academias de ginástica e de fisioterapia, e em outros lugares públicos, como elevadores, bares e restaurantes, veículos de transporte coletivo etc. (pode-se imaginar o horror que será estar confinado por onze, doze horas dentro de um avião se algum dia a proibição do uso de celular vier a ser revogada). Os inconformados com tal abuso já começam a reagir de forma indignada quando sua atenção é desviada da tela de um cinema pelo ronco ou pelo flash de um celular não desligado, em desobediência ao aviso que precede cada exibição de um filme: “desliguem os celulares”. A sala de aula é outro candente exemplo da invasão do celular, os alunos sempre de prontidão a atender telefonemas e a checar suas caixas postais eletrônicas, em detrimento da atenção necessária à apreensão do conteúdo didático que os professores tentam lhes transmitir. O celular, o smartphone, o tablet tornam-se uma extensão do corpo humano, cria-se uma dependência que em estados mais avançados pode tornar-se uma verdadeira compulsão. Foi longa a campanha de proibição de fumar em ambientes fechados. Apesar das incontestáveis evidências de graves malefícios a fumantes, ativos e passivos, levou muito tempo para que o fumo viesse a ser, por lei, terminantemente proibido em lugares fechados, e que a lei “pegasse”. Pelo visto, ainda há um longo caminho de confrontações entre aqueles que não desgrudam de seus celulares e aqueles que querem simplesmente ser deixados em paz. Outubro/2013

3 comentários:

  1. Mais um excelente texto, do misto de escritor e cronista de costumes, José Antonio de Carvalho e Silva, abordando um assunto da maior importância e atualidade.
    Da maneira que lhe é peculiar, numa linguagem de fácil compreensão,o Autor nos brinda com sua primorosa interpretação de assuntos sempre interessam a todos.
    Parabéns,caro Jose Antônio.
    Continue a nos brindar com suas "pérolas" literárias.5

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  2. Tema atual e relevante, pois o uso demasiado e, principalmente, a preocupação excessiva com curtidas e compartilhamento de fotos e selfies o tempo todo é um transtorno que deve ser alertado. O que você faz muito bem nessa crônica de narrativa simples, cotidiana, mantendo seu estilo próprio de enviar a mensagem de forma agradável e sempre com bom humor. Parabéns, amigo! Sou sua fã!

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  3. Adorei! Não sou de publicar quase nada em rede social e as poucas vezes que filmei algum grande show, acho que nunca mais assisti, fiquei apenas com a emoção do momento. Vou lembrar do seu texto em um próximo espetáculo. bjs

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