quarta-feira, 31 de maio de 2023

Bombom de cereja com licor

 

Bombom de Cereja com Licor

 

Tinha a forte tendência a acreditar que, dentre as inúmeras causas para o país não funcionar estava o excesso de leis. Mas, afinal, o que é uma lei? Resolveu se aprofundar um pouco no tema. E pesquisou:

 “No sentido jurídico, a lei é uma norma, uma ordem, uma regra geral de conduta, que exprime a vontade imperativa de um Estado e à qual todos os seus cidadãos devem se submeter, podendo mesmo ser punidos em caso contrário. Ainda que você desconheça uma lei, isso não lhe dá o direito de desobedece-la. Precisamente por isso, vale a pena ter alguma noção do que é o ordenamento jurídico brasileiro – ou seja, o conjunto de leis que normatizam nossas vidas. Conhecê-las é o oficio dos advogados, mas ter um conhecimento mínimo delas é o que permite a qualquer um o bom exercício da cidadania.” (1)

Continuou lendo: “Naturalmente, não se trata de uma questão simples, mesmo porque o ordenamento jurídico em vigor, segundo estudo do ministro Ives Gandra Filho, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), é composto por 34 mil regras legais. São 10.204 leis ordinárias, 105 leis complementares, 5.834 medidas provisórias, 13 leis delegadas, 11.680 decretos-leis, 322 decretos do governo provisório e 5.840 decretos do poder Legislativo.”

Estremeceu. Mas, sabia que isso não era tudo. O texto prosseguia. “Obscuridade e contradições – Para piorar, é um consenso entre os juristas que se trata de milhares de textos obscuros, muitos inconsistentes, vários repetitivos ou contraditórios, com o agravante de existirem polêmicas sobre o que ainda está ou não em vigor, porque os legisladores costumam abusar do célebre “revogam-se as disposições em contrário” ao encerrar o texto de uma lei. É também em função disso que nossa Justiça é lenta e certas causas podem-se arrastar nos tribunais durante décadas. Sem falar nas diversas brechas que existem nesse ordenamento desordenado, as quais acabam possibilitando a impunidade, um dos mais graves problemas brasileiros. A solução para tudo isso só pode ocorrer gradualmente, com reformas e aperfeiçoamento da legislação.”

Impunidade. Criar dificuldades para vender facilidades. Isso particularmente o indignava. Juízes, advogados, peritos, fiscais, policiais etc. muito frequentemente utilizavam-se dessas brechas no cipoal de leis para absolver criminosos ou, pior ainda, para condenar e prender inocentes de acordo com a sua conveniência. Um notório advogado declarou certa feita que preferia defender um culpado do que um inocente. Isso porque o culpado aceitaria uma versão preparada por ele, advogado, e que, embora forjada, pareceria verossímil ao julgador, resultando na absolvição do réu. Já o inocente insistiria em manter a sua versão, verdadeira, mas que pareceria inverossímil ao julgador, resultando em sua condenação. Ou seja, um advogado que julgava seu compromisso com o cliente acima do compromisso com a sociedade.

Postura radicalmente inversa daquela adotada pelo advogado Heráclito Sobral Pinto, ícone da advocacia nacional, nos idos de 1944, quando lhe foi pedido pelo então famoso poeta, e seu amigo, Augusto Frederico Shmidt que o defendesse em uma causa. Surpreso pela condição imposta pelo amigo para aceitar a causa - examinar antes todo o processo -, o poeta retrucou: “Advogado não é juiz!” ao que o grande advogado respondeu: “O primeiro e mais fundamental dever do advogado é ser o juiz inicial da causa que lhe levam para patrocinar. Incumbe-lhe, antes de tudo, examinar minuciosamente a hipótese para ver se ela é realmente defensável em face dos preceitos da justiça. Só depois de que eu me convenço de que a justiça está com a parte que me procura é que me ponho à sua disposição.” (...) (2).

Tudo isso o horrorizava, justamente ele que procurara sempre pautar a sua conduta na obediência às leis, por mais difícil que fosse não afrontar alguma delas por simples desconhecimento.

Eis que foi promulgada a chamada “Lei Seca”, o que lhe pareceu mais do que justo, algum freio teria que ser imposto aos bêbados ao volante ameaçando vidas. A letra da lei era dura, ele decidiu que a partir de então ele não tomaria uma taça de vinho sequer em dia em que fosse conduzir o seu carro, não importa quantas horas após. Em um delírio, imaginava que um guarda de trânsito havia sido especificamente designado para fiscalizá-lo, aonde quer que ele se dirigisse. Era paranoia, evidentemente, mas que o mantinha a salvo dos rigores da lei. E assim decorreram os anos, sem que uma vez sequer ele fossa parado nas centenas de blitzes montadas aleatoriamente nas ruas para flagrar infratores.

Dirigia com todo o cuidado. O trânsito, como de resto praticamente tudo no país, estava infernal, bêbados ou não, em alarmante proporção, os condutores de veículos desrespeitavam as mais elementares regras de trânsito. Eis que, para sua enorme surpresa, foi parado, pela primeira vez na vida, numa blitz da Lei Seca. Estava absolutamente, tranquilo, sua última ingestão de álcool se dera na véspera, duas taças de vinho. O policial lhe explicou que era seu direito recusar-se a fazer o teste do chamado bafômetro, mas que, neste caso, ele teria sua CNH confiscada por um ano e pagaria pesada multa. Mas, caso decidisse fazer o teste, e este desse positivo, ele seria preso. Não teve dúvidas em soprar o bafômetro. Quase teve um colapso. Seu teste deu positivo! Como era possível? Argumentou com os policiais que não ingerira qualquer bebida alcoólica naquele dia. A única coisa que continha álcool que ele comera antes de sair com o carro fora um Bombom de cereja com licor! Bradou. Os guardas se entreolharam, em deles sentenciou: “Foi aí que o senhor se deu mal. Devia saber que o teor de álcool permitido para exercer a direção é praticamente zero!”, e já foi sacando as algemas para prender o delinquente.

------------------------------------------------------------------------------------------Nota: Bombom, assim como a trufa, nada mais é que um doce composto por um recheio que é envolto por uma camada de chocolate. No caso do bombom de licor, esse recheio contém algum tipo de licor, uma bebida alcoólica que geralmente tem ervas ou frutas em sua composição (...)

A ligação entre bombom de licor e lei seca está justamente no fato de o doce possuir essa bebida alcoólica em seu recheio. O problema é que a legislação quanto à bebida + direção é tão rigorosa que não permite que o motorista seja flagrado com nenhum vestígio de álcool em seu organismo.

Isso começou com a Lei Nº 11.705/2008, que alterou os artigos 165 e 276 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). (...) Leia mais em (3)

 

(1)  https://educacao.uol.com.br/disciplinas/cidadania/legislacao-mais-de-34-mil-leis-ordenam-a-vida-dos-brasileiros.htm 

 

(2)  https://luizberto.com/as-soberbas-licoes-de-sobral-pinto/

 

(3)https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2013/01/bombom-de-licor-provoca-teor-de-embriaguez-em-teste-feito-em-natal.html

 

José Antonio C. Silva

28/05/2023

7 comentários:

  1. Excelente!!!!
    Mostra, de maneira didática e muito esclarecedora, os malefícios do excesso de leis, decretos, portarias, etc.
    Alerta também, para os excessos da Lei Seca, tudo apresentado com muita propriedade e com a qualidade sempre presentes, nos textos do excelente escritor e cronista, José Antonio de Carvalho e Silva.

    ResponderExcluir
  2. Amigo, seu texto faz uma crítica muito bem sacada das formas como lidamos com as leis. Genial!!! Humor fino. Adorei!!!!

    ResponderExcluir
  3. Muito bom meu amigo, o final de seu texto com as algemas já colocadas no cidadão que cometeu o terrível crime de comer um bombom com licor, permite uma reflexão sobre a total bagunça jurídica existente no Brasil de hoje.
    Cidadãos que cometem os piores crimes são inocentados por advogados criminalistas que aproveitam os meandros jurídicos para inocentá-los e os que cometeram delitos leves são condenados por não serem assistidos por causídicos que conhecem bem os labirintos dos subterrâneos do mal do mundo jurídico brasileiro.
    Cada vez mais com esta infinidade de leis e jurisprudências de toda ordem, estamos fadados a continuar mergulhados na total desordem encontrada no dia a dia de nosso País.
    Está difícil encontrarmos hoje em dia juristas de notório saber e ilibada conduta, como no exemplo citado por você em relação ao Sobral Pinto.
    Salve-se quem puder e o último a sair apague a luz.

    ResponderExcluir
  4. De fato, o emaranhado, a multiplicidade, a incoerência, a subjetividade e a incompetência das leis brasileiras produzem efeitos deletérios à moral e à justiça. Mantendo o estilo sarcástico, ter como base o episódio do bombom de licor, foi genial!

    ResponderExcluir
  5. Um texto bem posto e bem escrito! A verdade verdadeira, meu amigo de sempre, é que, na minha singela opinião, a infinidade de leis com seus decretos e normas, por vezes até conflitantes, nao conseguem interagir com o dia a dia da sociedade. E, porquê? Porque a educação fica postergada a um segundo plano! Naturalmente no caso tão bem apresentado houve um descabido exagero!Mas, apesar dos pesares, muitas vidas foram e serão poupadas, no cumprimento das leis. Parabens pelo texto!

    ResponderExcluir
  6. Maravilha de texto!!! É o que vemos todos dias no Brasil, absurdos e uso tendencioso das leis para livrar e condenar. Logo meu chocolate preferido entrou na história, para mostrar de uma forma didática a situação!! Vou pensar bastante antes de consumí-lo!!!!

    ResponderExcluir