Bombom de Cereja com Licor
Tinha a forte tendência a acreditar
que, dentre as inúmeras causas para o país não funcionar estava o excesso de
leis. Mas, afinal, o que é uma lei? Resolveu se aprofundar um pouco no tema. E pesquisou:
“No sentido jurídico, a lei é uma norma, uma
ordem, uma regra geral de conduta, que exprime a vontade imperativa de um
Estado e à qual todos os seus cidadãos devem se submeter, podendo mesmo ser
punidos em caso contrário. Ainda que você desconheça uma lei, isso não lhe dá o
direito de desobedece-la. Precisamente por isso, vale a pena ter alguma noção
do que é o ordenamento jurídico brasileiro – ou seja, o conjunto de leis que
normatizam nossas vidas. Conhecê-las é o oficio dos advogados, mas ter um
conhecimento mínimo delas é o que permite a qualquer um o bom exercício da
cidadania.” (1)
Continuou lendo: “Naturalmente, não
se trata de uma questão simples, mesmo porque o ordenamento jurídico em vigor,
segundo estudo do ministro Ives Gandra Filho, do Tribunal Superior do Trabalho
(TST), é composto por 34 mil regras legais. São 10.204 leis ordinárias, 105
leis complementares, 5.834 medidas provisórias, 13 leis delegadas, 11.680
decretos-leis, 322 decretos do governo provisório e 5.840 decretos do poder
Legislativo.”
Estremeceu. Mas, sabia que isso não
era tudo. O texto prosseguia. “Obscuridade e contradições – Para piorar, é um
consenso entre os juristas que se trata de milhares de textos obscuros, muitos
inconsistentes, vários repetitivos ou contraditórios, com o agravante de
existirem polêmicas sobre o que ainda está ou não em vigor, porque os
legisladores costumam abusar do célebre “revogam-se as disposições em contrário”
ao encerrar o texto de uma lei. É também em função disso que nossa Justiça é
lenta e certas causas podem-se arrastar nos tribunais durante décadas. Sem falar
nas diversas brechas que existem nesse ordenamento desordenado, as quais acabam
possibilitando a impunidade, um dos mais graves problemas brasileiros. A
solução para tudo isso só pode ocorrer gradualmente, com reformas e
aperfeiçoamento da legislação.”
Impunidade. Criar dificuldades para
vender facilidades. Isso particularmente o indignava. Juízes, advogados,
peritos, fiscais, policiais etc. muito frequentemente utilizavam-se dessas
brechas no cipoal de leis para absolver criminosos ou, pior ainda, para
condenar e prender inocentes de acordo com a sua conveniência. Um notório
advogado declarou certa feita que preferia defender um culpado do que um
inocente. Isso porque o culpado aceitaria uma versão preparada por ele,
advogado, e que, embora forjada, pareceria verossímil ao julgador, resultando
na absolvição do réu. Já o inocente insistiria em manter a sua versão,
verdadeira, mas que pareceria inverossímil ao julgador, resultando em sua
condenação. Ou seja, um advogado que julgava seu compromisso com o cliente
acima do compromisso com a sociedade.
Postura radicalmente inversa daquela
adotada pelo advogado Heráclito Sobral Pinto, ícone da advocacia nacional, nos
idos de 1944, quando lhe foi pedido pelo então famoso poeta, e seu amigo,
Augusto Frederico Shmidt que o defendesse em uma causa. Surpreso pela condição
imposta pelo amigo para aceitar a causa - examinar antes todo o processo -, o
poeta retrucou: “Advogado não é juiz!” ao que o grande advogado respondeu: “O
primeiro e mais fundamental dever do advogado é ser o juiz inicial da causa que
lhe levam para patrocinar. Incumbe-lhe, antes de tudo, examinar minuciosamente
a hipótese para ver se ela é realmente defensável em face dos preceitos da
justiça. Só depois de que eu me convenço de que a justiça está com a parte que
me procura é que me ponho à sua disposição.” (...) (2).
Tudo isso o horrorizava, justamente
ele que procurara sempre pautar a sua conduta na obediência às leis, por mais
difícil que fosse não afrontar alguma delas por simples desconhecimento.
Eis que foi promulgada a chamada “Lei
Seca”, o que lhe pareceu mais do que justo, algum freio teria que ser imposto
aos bêbados ao volante ameaçando vidas. A letra da lei era dura, ele decidiu
que a partir de então ele não tomaria uma taça de vinho sequer em dia em que
fosse conduzir o seu carro, não importa quantas horas após. Em um delírio,
imaginava que um guarda de trânsito havia sido especificamente designado para
fiscalizá-lo, aonde quer que ele se dirigisse. Era paranoia, evidentemente, mas
que o mantinha a salvo dos rigores da lei. E assim decorreram os anos, sem que
uma vez sequer ele fossa parado nas centenas de blitzes montadas aleatoriamente
nas ruas para flagrar infratores.
Dirigia com todo o cuidado. O
trânsito, como de resto praticamente tudo no país, estava infernal, bêbados ou
não, em alarmante proporção, os condutores de veículos desrespeitavam as mais
elementares regras de trânsito. Eis que, para sua enorme surpresa, foi parado,
pela primeira vez na vida, numa blitz da Lei Seca. Estava absolutamente,
tranquilo, sua última ingestão de álcool se dera na véspera, duas taças de
vinho. O policial lhe explicou que era seu direito recusar-se a fazer o teste
do chamado bafômetro, mas que, neste caso, ele teria sua CNH confiscada por um
ano e pagaria pesada multa. Mas, caso decidisse fazer o teste, e este desse
positivo, ele seria preso. Não teve dúvidas em soprar o bafômetro. Quase teve
um colapso. Seu teste deu positivo! Como era possível? Argumentou com os
policiais que não ingerira qualquer bebida alcoólica naquele dia. A única coisa
que continha álcool que ele comera antes de sair com o carro fora um Bombom de
cereja com licor! Bradou. Os guardas se entreolharam, em deles sentenciou: “Foi
aí que o senhor se deu mal. Devia saber que o teor de álcool permitido para
exercer a direção é praticamente zero!”, e já foi sacando as algemas para
prender o delinquente.
------------------------------------------------------------------------------------------Nota:
Bombom, assim como a trufa, nada mais é que um doce composto por um recheio
que é envolto por uma camada de chocolate. No caso do bombom de licor, esse
recheio contém algum tipo de licor, uma bebida alcoólica que
geralmente tem ervas ou frutas em sua composição (...)
A ligação entre bombom de licor e lei
seca está justamente no fato de o doce possuir essa bebida alcoólica em seu
recheio. O problema é que a legislação quanto à bebida + direção é tão rigorosa
que não permite que o motorista seja flagrado com nenhum vestígio de álcool em
seu organismo.
Isso começou com a Lei Nº
11.705/2008,
que alterou os artigos 165 e 276 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). (...)
Leia mais em (3)
(2)
https://luizberto.com/as-soberbas-licoes-de-sobral-pinto/
José Antonio
C. Silva
28/05/2023
Excelente!!!!
ResponderExcluirMostra, de maneira didática e muito esclarecedora, os malefícios do excesso de leis, decretos, portarias, etc.
Alerta também, para os excessos da Lei Seca, tudo apresentado com muita propriedade e com a qualidade sempre presentes, nos textos do excelente escritor e cronista, José Antonio de Carvalho e Silva.
Amigo, seu texto faz uma crítica muito bem sacada das formas como lidamos com as leis. Genial!!! Humor fino. Adorei!!!!
ResponderExcluirMuito bom meu amigo, o final de seu texto com as algemas já colocadas no cidadão que cometeu o terrível crime de comer um bombom com licor, permite uma reflexão sobre a total bagunça jurídica existente no Brasil de hoje.
ResponderExcluirCidadãos que cometem os piores crimes são inocentados por advogados criminalistas que aproveitam os meandros jurídicos para inocentá-los e os que cometeram delitos leves são condenados por não serem assistidos por causídicos que conhecem bem os labirintos dos subterrâneos do mal do mundo jurídico brasileiro.
Cada vez mais com esta infinidade de leis e jurisprudências de toda ordem, estamos fadados a continuar mergulhados na total desordem encontrada no dia a dia de nosso País.
Está difícil encontrarmos hoje em dia juristas de notório saber e ilibada conduta, como no exemplo citado por você em relação ao Sobral Pinto.
Salve-se quem puder e o último a sair apague a luz.
De fato, o emaranhado, a multiplicidade, a incoerência, a subjetividade e a incompetência das leis brasileiras produzem efeitos deletérios à moral e à justiça. Mantendo o estilo sarcástico, ter como base o episódio do bombom de licor, foi genial!
ResponderExcluirPostado por Stella
ExcluirUm texto bem posto e bem escrito! A verdade verdadeira, meu amigo de sempre, é que, na minha singela opinião, a infinidade de leis com seus decretos e normas, por vezes até conflitantes, nao conseguem interagir com o dia a dia da sociedade. E, porquê? Porque a educação fica postergada a um segundo plano! Naturalmente no caso tão bem apresentado houve um descabido exagero!Mas, apesar dos pesares, muitas vidas foram e serão poupadas, no cumprimento das leis. Parabens pelo texto!
ResponderExcluirMaravilha de texto!!! É o que vemos todos dias no Brasil, absurdos e uso tendencioso das leis para livrar e condenar. Logo meu chocolate preferido entrou na história, para mostrar de uma forma didática a situação!! Vou pensar bastante antes de consumí-lo!!!!
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