O DILEMA DAS REDES
SOCIAIS
“Mídias sociais produzem geração
ansiosa”. Este é o título de artigo publicado no jornal O Globo, edição de
13.04.2024, pelo jornalista Pablo Ortellado (1). O artigo trata de matéria
sobre a qual eu tenho extensamente tratado em minhas crônicas. Começa citando
um livro do psicólogo Jonathan Haidt, recém publicado nos EUA, “The anxious
generation”, escrevendo que, no livro, “Haidt argumenta que o uso intensivo de mídias
sociais rouba das crianças e dos jovens tempo de experimentação e convívio,
causa imediata da atual epidemia de ansiedade e depressão”. E que “as raízes do
problema estão nas mudanças culturais que levaram os pais da Geração X a
superproteger os filhos”. Continuando, informa que o livro em questão começou
como blog na plataforma Substack. Já naquele blog Haidt propôs a tese, então
controversa, de que “o grande aumento nos indicadores de depressão, ansiedade,
automutilação e suicídio entre os jovens nos anos 2010 estava ligado ao uso das
mídias sociais”.
No blog, o psicólogo observa que a
literatura anterior correlacionando a incidência de problemas mentais ao uso de
telas pelos jovens apresentava evidências fracas e contraditórias. Ele propõe,
então, que não considerássemos as telas em geral – incluindo televisão,
computador e videogame – mas que focássemos apenas nas mídias sociais. Surge,
então, uma correlação muito mais forte, especialmente, afirma ele, se os dados
forem filtrados por gênero, apontando o tamanho do problema entre as meninas.
No livro, Haidt argumenta existir uma
relação causal entre uso de mídias sociais nos smartphones e a epidemia de
doenças mentais entre os jovens. O uso intensivo das mídias sociais limitaria
as interações sociais presenciais produtoras de laços afetivos fortes e
estimula comparações com padrões estéticos inalcançáveis, gerando ansiedade e
depressão.
Segundo o artigo a segunda parte do
livro tem como ponto de partida a inquietação explorada noutra obra de Haidt,
escrita em parceria com Greg Lukianoff “The coddling of the Ameriacan Mind”.
Aqui, Lukianoff fala de uma certa cultura universitária “segurista”: “a
proibição nos campi de literatura acadêmica considerada ofensiva (por ser
racista ou machista) e a criação de espaços seguros superprotegem os jovens,
que não são mais expostos à diversidade e à pluralidade de pensamento”.
Prosseguindo, Haidt constata que “a valorização de pequenas ofensas e microagressões
pelos movimentos sociais funciona como uma espécie de terapia reversa –
enquanto a função da terapia é minorar o trauma, os movimentos sociais terminam
supervalorizando ofensas menores, e, involuntariamente, amplificam traumas.”
O psicólogo identifica uma
significativa mudança cultural na forma com que os filhos foram criados: nos
anos 1980 e 1990 as crianças, filhas dos pais da Geração X, foram criadas com
muita liberdade, brincando livremente, sem supervisão, desde os 7 ou 8 anos. Em
contrapartida os filhos desses pais são superprotegidos, permanecendo sob
cuidadosa supervisão adulta praticamente até a adolescência. Como consequência,
as crianças de hoje não desenvolvem a autonomia e não aprendem a lidar com
riscos e perigos, habilidade essencial para enfrentar desafios maiores na vida
adulta. Só podem brincar e se locomover sob a supervisão de um adulto, não mais
saem às ruas sem essa supervisão, como faziam as crianças a partir da segunda
infância para praticar jogos e brincadeiras. “O tempo que os adultos dedicam ao
cuidado das crianças disparou na segunda metade dos anos 1990 (...) As mídias
sociais viciantes que prendem os adolescentes à tela do celular e limitam suas
interações sociais e afetivas são, para Haidt, apenas o apogeu da tendencia
anterior e mais profunda de superproteção e fragilização das crianças.” Ao
final do livro Haidt propõe um conjunto de ações ou reformas que poderiam
minorar o problema: proibir o uso de smartphones nas escolas e de qualquer
mídia social até os 16 anos, assim como a desafiadora proposta de deixarmos
nossos filhos brincarem sem a supervisão adulta, como era feito até os anos
1980 e 1990.
Estou inteiramente de acordo com o
texto que acabei de comentar. Ressalto apenas que vivemos outros tempos,
bastante diferentes daqueles referidos por Haidt, anos 1980 e 1990. Que já eram
diferentes dos anos 1950 quando vivi minha segunda infância. Eu brincava
livremente pelas ruas, o único risco era de machucar-me jogando uma pelada,
caindo da bicicleta, patinete, de uma árvore onde subira para catar frutos e
coisas semelhantes. Não havia nada comparável à ameaçadora violência dos dias
de hoje, por isso não se deve dispensar por completo a supervisão adulta.
Passemos agora a um outro texto
publicado no jornal O GLOBO, edição de 14.04.24, intitulado “O exílio da
infância”, (2) escrito por Daniel Becker, descrito como Pediatra, Sanitarista,
Palestrante e Escritor. E ainda como Ativista pela infância, saúde coletiva, e
meio ambiente.
O foco é o mesmo do artigo
anteriormente comentado: “os danos causados a crianças e adolescentes pelo
excesso de telas – e a necessidade de retomarmos uma infância rica em
experiencias no mundo real.” O articulista é de opinião de que um consenso
estaria começando a surgir sobre o tema, e que “Pais, mães, educadores e até
mesmo nossos jovens estão reconhecendo a importância desse movimento”, e traz a
contribuição do já referido psicólogo social norte-americano Jonathan Haidt ao
tema, com quem declara ter forte afinidade com seus pontos de vista. Segundo
ele, Haidt, num livro publicado no corrente ano, mostra que a geração Z – os
nascidos entre 1995 e 2010 – sofreram uma reprogramação cerebral inédita na
história humana, com consequências nefastas para a sua saúde. E escreve:
“Eles foram abalroados pelos
celulares em plena puberdade, um período decisivo no amadurecimento cerebral.
Nessa fase há uma grande mudança no córtex pré-frontal, responsável pelas
funções executivas, como tomada de decisão, foco, controle de impulsos,
julgamento e resolução de problemas. Surgem novos neurônios, 40% das sinapses
são eliminadas, e muitas outras são criadas. Capacidades fundamentais para a vida
adulta se desenvolvem e hábitos e vícios formados nessa época tendem a se
tornar arraigados.”
“Desde os primórdios da humanidade
até em torno de 2010 as crianças entravam na puberdade se relacionando com o
mundo real, com seu corpo, amigos e família. Foi então que a velocidade da
internet aumenta, surge a Apple Store, e a câmera frontal, o Facebook cria o
botão de like e os comentários (e com isso o algoritmo e seus direcionamentos),
aparece o Instagram. Começa uma maciça migração dos adolescentes para o mundo
virtual. Dez anos depois, estão online quase o tempo todo.”
O articulista segue fazendo
considerações extremamente pertinentes sobre os efeitos desastrosos desse
processo, terminando por assinalar que “a partir de 2012 as notas do PISA
[Programa Internacional de Avaliação de Alunos] global, que subiram por décadas
consecutivas, iniciam uma queda abrupta. No mesmo período, as curvas de
automutilação, ansiedade, depressão e suicídio em crianças e adolescentes
começam uma ascensão violente. A autolesão nos EUA aumenta cinco vezes em dez
anos, a ansiedade e depressão quase triplicam. É realmente assustador.” Aqui é
o momento de evocarmos a frase do filósofo Mario Sergio Cortella: “O mundo que
vamos deixar para os nossos filhos depende dos filhos que vamos deixar para o
nosso mundo.”
Finalizamos nossa crônica
recomendando veementemente que assistam o documentário “O Dilema das Redes”,
disponível no NETFLIX. O filme analisa o papel das redes sociais e os danos que
elas causam à sociedade. Para uma análise do conteúdo de seu conteúdo, convido
à leitura do texto do artigo no link (3), do qual extraí as seguintes partes:
“O filme conta com uma série de
entrevistas de ex-funcionários das principais redes sociais e professores
acadêmicos [o que demonstra o sólido embasamento de seu conteúdo]. Como o
ex-especialista em ética de design do Google e cofundador do Center for Humane Technology, Tristan Harris; o cofundador do Center for Humane Technology Aza Raskin; o cofundador do Asana e co-criador do botão like do Facebook Justin Rosenstein; o professor da Universidade
de Harvard Shoshana Zuboff; o ex-presidente do Pinterest Tim Kendall; a diretora de pesquisa de políticas da AI Now, Rashida Richardson; o diretor de pesquisa da Yonder Renee DiResta; a diretora do programa de bolsa de estudos da Universidade de Stanford, Anna Lembke; e o pioneiro da realidade virtual Jaron Lanier. As entrevistas são ilustradas por
dramatizações protagonizadas por Skyler Gisondo, Kara Hayward e Vincent
Kartheiser, que
contam a história do vício de um adolescente nas redes sociais.”
Segundo o artigo, o foco do filme é explicitar
a manipulação sofrida pelos usuários das redes sociais com o objetivo de
propiciar ganhos financeiros às empresas. (...) O filme discute como cada elemento
do design das redes pretende nutrir o vício do usuário, o uso para influenciar
a política, o impacto na saúde mental (incluindo a saúde mental de adolescente
e o aumento das taxas de suicídio entre eles) e seu papel na disseminação de
teorias da conspiração facilitando a manipulação política.
Perfeito. O documentário expõe
a possibilidade das pessoas se viciarem nas redes sociais de uma
maneira comparável ao uso de drogas. Já do lado social, os sistemas de
inteligência artificial podem ajudar na disseminação de notícias falsas e teorias
da conspiração, facilitando a manipulação política, causando uma dramática
polarização da sociedade, eliminadas quaisquer possibilidades de entendimento
entre os dois lados do espectro político. E mais. Ao vermos a ultra complexa malha
de equipamentos envolvida no processamento de informações pelas redes, trazemos
a preocupação do cientista John Casti, ph.D, especialista nos estudos das
teorias dos sistemas e da complexidade, em elencar um apagão na internet entre
os onze eventos extremos que podem destruir a civilização a qualquer momento (“O
Colapso de Tudo”, 2011, Editora Intrínseca Ltda.).
Durante os créditos finais, os entrevistados
recomendam uma série de contramedidas para se proteger contra os problemas das
redes sociais. Recomendações:
(1) Desligar ou reduzir o número de
notificações que você recebe
(2) Desinstalar aplicativos de redes
sociais e notícias que desperdiçam seu tempo
(3) Usar um buscador que não armazena o histórico
de busca, como o Qwant
(4) Usar extensões de navegador que
bloqueiem recomendações
(5) Checar fatos antes de compartilhar,
curtir ou comentar
(6) Obter fontes de informação com
perspectivas diferentes, incluindo as que você poderia discordar
(7) Não dê aparelhos celulares ou tablets
para as crianças
(8) Nunca aceite recomendações de vídeos
no Youtube, Facebook ou outros lugares
(9) Evite acessar qualquer material
caça-cliques
Enfim, para ilustrar o assustador
poder de bisbilhotagem das redes sobre nossos dados, sobre nossas vidas, didaticamente
demonstrado no filme, conto o seguinte episódio. Uma prezada amiga conversou
por voz, via WhatsApp, com uma filha que vive nos Estados Unidos. Sua filha
contou que cultivava uma pequena horta em sua residência, na qual havia couve
em abundancia, e que não sabia o que fazer com a hortaliça. Minha amiga
retrucou que havia muitas receitas, e lhe passou uma delas. Pasmem: não demorou
muito e, ao entrar no google, foi surpreendida com receitas de couve! Big
Brother is watching you, profetizou George Orwell em seu icônico e
profético livro “1984”.
José Antonio C. Silva
17/04/2024
https://oglobo.globo.com/blogs/daniel-becker/post/2024/04/o-exilio-da-infancia.ghtml
https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Social_Dilemma