AS
INTERMITÊNCIAS DA MORTE
No
dia seguinte, ninguém morreu. Assim começa a narrativa do escritor português
José Saramago[1]
de um fato absolutamente insólito: em um determinado país, a partir do primeiro
instante do Ano Novo, a morte suspendeu as suas atividades. O fato, como
assinala o narrador, “Por ser absolutamente contrário às normas da vida, causou
nos espíritos uma perturbação enorme” (p.2). E temos uma detalhada descrição de
uma série dessas perturbações de ordem social, econômica, política, filosófica,
moral e religiosa que se seguiram a um primeiro momento de grande felicidade
pelo atingimento da imortalidade.
Os primeiros a reclamar, por sentirem-se
diretamente afetados em suas atividades, foram aqueles ligados ao setor
funerário. Claro está que, não havendo mais defuntos, perdiam eles a matéria
prima fundamental de seu negócio. Acenando ao governo com a perspectiva de
iminente falência, e consequente desemprego em massa, pediram, no que foram
atendidos, medidas compensatórias. Tais medidas se consubstanciavam na
obrigatoriedade de enterrar-se, com todas as pompas funerárias que
anteriormente eram devidas aos seres humanos, todo e qualquer animal de
estimação; gato, cachorro, papagaio, seja lá o que fosse.
Não
morrendo ninguém, os hospitais logo ficariam superlotados com pacientes em
estado terminal, e que não morreriam nunca, pelo que os diretores daquelas
instituições levaram esta dramática condição às autoridades públicas. Estas
determinaram que pacientes sem possibilidade de recuperação deveriam ser
devolvidos às suas respectivas famílias, e que os hospitais continuariam a lhes
prestar assistência como se internados ainda estivessem.
Idênticos
problemas de superlotação sofreriam os asilos para idosos, chamados de Lares do
Feliz Ocaso. Em termos especialmente dramáticos os diretores dessas
instituições alertaram as autoridades das consequências do viver infinito sobre
os Lares: “o que aí nos vem em cima é o pior dos pesadelos que alguma vez um
ser humano pôde haver sonhado, nem mesmo nas escuras cavernas, quando tudo era
terror e tremor, se terá visto semelhante cousa...” (p.32).
Novamente
o fator econômico: o presidente da Federação das Companhias Seguradoras
comunicou ao governo que as filiadas estavam recebendo uma avalanche de cartas
de seus segurados pedindo o cancelamento de suas apólices de seguro de vida. É
claro, se ninguém vai morrer, não faz mais sentido continuar-se pagando prêmio
de seguro de vida.
Mas
os problemas não se limitavam aos de ordem econômica. A religião perderia sua
razão de ser, pois ela precisava da morte, da certeza da morte e da
ressurreição para justificar-se. A morte era absolutamente essencial para a
realização do reino de Deus. A religião católica, majoritária no país, tinha
aguda consciência da questão, e propunha redobradas orações para o
restabelecimento da morte.
E a questão moral. As famílias começaram a se
cansar de seus moribundos, de familiares que no limiar da passagem, em
condições de completa irreversibilidade em sua condição de saúde, restariam
prostrados para sempre em seu leito de outrora morte. Era preciso livrar-se
deles, de alguma maneira, sem sentir remorsos. Descobriu-se, então, que em um
país limítrofe, a morte continuava a operar normalmente. Uma família teve então
a ideia de para lá transportar, clandestinamente, um avozinho, que queria
morrer, e uma criança da família, ambos sem qualquer possibilidade de cura. O
plano deu certo: ambos morreram no exato momento em que a fronteira foi cruzada,
sendo enterrados naquele país vizinho. A notícia vazou, a família dos falecidos
se viu alvo de exacerbadas críticas por sua desumanidade, mas logo outras
famílias adotavam idêntico procedimento, até que os governos dos três países
limítrofes protestaram, o que obrigou o chefe de governo do país onde ninguém
morria anunciar que colocaria as forças armadas nas fronteiras para coibir a prática.
Mas o
pronunciamento do chefe de governo foi puramente de fachada, pois, no fundo o
governo não via inteiramente com maus olhos um procedimento que ajudava o país
a conter a crescente pressão demográfica. Atravessamentos de fronteira
continuaram a ocorrer, apenas num fluxo mais lento, com a conivência dos
vigilantes que o governo encarregou de decidirem caso a caso sobre quem poderia
ser transportado para o além. Foi quando surgiu uma organização criminosa, a
máphia (grafada propositalmente com ph, para diferenciá-la da máfia que todos
conhecemos) a impor-se às famílias como intermediária das operações de
transporte de seus moribundos para os países vizinhos. Em tal condição a máphia
conseguiu pressionando o governo através de sucessivos e brutais atentados aos
vigilantes, que só não morreram do efeito de tais agressões por razões óbvias.
O governo foi então forçado a fazer um trato com a máphia, que passaria a
controlar uma expressiva parcela do contingente de vigilantes.
E
assim as coisas foram seguindo. A ambiguidade das pessoas em relação à situação
absolutamente fora de qualquer normalidade é bem expressa pelo narrador ao
descrever a tentativa de golpe da oposição contra o regime, “aproveitando-se da
perturbação em que o país mal vivia, dividido como estava entre a vaidade de
saber-se único em todo o planeta e o desassossego de não ser como toda a gente”
(p.82).
Eis
que, de modo completamente inesperado, a própria morte manda um comunicado
anunciando que voltaria a atuar, a partir meia noite do dia desse aviso. E
explicava por que decidira suspender as suas atividades, que fora para oferecer
aos seres humanos que tanto a detestam “uma pequena mostra do que seria para
eles viver para sempre, isto é, eternamente” (p.99). Reconhecendo o que ela
considerava como lamentáveis, tanto do ponto de vista moral, como do ponto de
vista pragmático, os resultados da experiência, a morte decidira o imediato
regresso às suas atividades. Apenas que agora, salvo para aqueles que já
deveriam ter morrido durante o período da experiência, e esses morreriam
imediatamente a partir da meia-noite, todos os demais teriam sua morte avisada
com uma antecedência prévia de uma semana, tempo este que ela julgava necessário
a que o condenado pudesse tomar todas as providências cabíveis ―
testamentárias, apresentar suas despedidas, fazer reconciliações etc. ― antes
de sua partida definitiva. A morte devolvia assim “o supremo medo ao coração
dos homens”.
E,
efetivamente, o supremo medo foi devolvido ao coração dos homens, só que agora
de um modo mais intenso, e onipresente. A morte, ao enviar os avisos através de
um envelope de cor violeta, através da mala postal comum, levou os homens a um
terror permanente, sempre na expectativa de receberem a visita dos funcionários
dos correios, agora os próprios mensageiros da morte, a lhes entregarem os
sinistros envelopes da inapelável condenação.
Mais
uma vez, em sua oscilação pendular, a população passou a maldizer a morte, e
parte da imprensa, fazendo eco a este sentimento, cobriu-a de toda a sorte de
impropérios. Mas houve aqueles que de maneira mais ponderada, propuseram um
diálogo franco e sincero com a morte. Mas, como encontrá-la? Todas as
tentativas de achá-la, é claro, resultaram totalmente inúteis. As cartas seguem
metodicamente sendo escritas por ela, postada em seu covil inteiramente a salvo
das buscas humanas, e expedidas a um simples gesto de sua mão aos correios para
a entrega final aos desgraçados destinatários.
Mas
eis que o narrador reserva uma surpresa ao leitor, e à própria morte. De forma
completamente inesperada e inexplicada, uma das cartas expedidas retorna à
remetente. E novamente retorna após a morte ter efetuado mais duas remessas.
Frustrada, a morte busca em seus arquivos dados biográficos daquele que já
deveria ter morrido, mas que continuava vivo. Era um violoncelista, que acabara
de completar cinquenta anos de idade, quando deveria ter morrido de véspera,
ainda com quarenta e nove anos. Decide visitar a casa deste homem, e o descobre
um solitário, vivendo com a companhia única de um cão e a tocar dois
instrumentos musicais, um piano e um violoncelo, este o seu ganha-pão na
condição de músico de uma orquestra sinfônica.
Investindo-se
na forma humana de uma bela e misteriosa mulher, a morte assiste a um concerto
no qual o músico executa um pungente solo, que assombra o maestro, a orquestra
e a plateia. A morte o procura ao final do concerto e lhe apresenta seus
cumprimentos. Termina o período que ela estabelecera para sua ausência de seu recanto
nas profundezas, seria necessário regressar para subscrever uma nova leva de
cartas. Mas ela decide prorrogar sua estada entre os vivos por um dia a mais. Ainda encarnada, vai à casa do músico e mais
uma vez se enternece com a uma peça de Bach que ele executa a pedido dela. Não
só desiste de matá-lo, de lhe entregar pessoalmente a carta de cor violeta que
estava em sua bolsa, como lhe oferece a boca, com ele se deita e fazem amor,
uma, duas, três vezes.
E por
não ter a morte expedido as cartas a seu tempo próprio, no dia seguinte ninguém
morreu.
A
hiperbólica trama traçada por Saramago demonstra a ambiguidade do ser humano em
relação à morte. Sofre com a certeza de que ela é inevitável, maldiz esta
condição e tenta fazer de conta que a morte é sempre a dos outros, não a sua
própria. O Homem da narrativa não se aceita como um ser-para-a-morte
heideggeriano. Porém, ante a cessação da morte, e do advento de seus
catastróficos efeitos, volta a desejá-la, considerando que sua ausência constitui-se
no maior dos horrores. Mas eis que o retorno da morte novamente lança o homem
no desespero, passa agora a injuriá-la justamente por ter ela voltado a fazer
aquilo pelo qual ele tanto ansiava. A narrativa de Saramago encerra a
oportunidade de uma profunda reflexão sobre a quimera científica de que algum
dia o desenvolvimento tecnológico propiciará ao Homem o alcance da vida eterna
― e plena de saúde! ― aqui mesmo, na Terra.
27/12/2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário