quinta-feira, 8 de junho de 2017

As intermitências da morte


AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE


            No dia seguinte, ninguém morreu. Assim começa a narrativa do escritor português José Saramago[1] de um fato absolutamente insólito: em um determinado país, a partir do primeiro instante do Ano Novo, a morte suspendeu as suas atividades. O fato, como assinala o narrador, “Por ser absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme” (p.2). E temos uma detalhada descrição de uma série dessas perturbações de ordem social, econômica, política, filosófica, moral e religiosa que se seguiram a um primeiro momento de grande felicidade pelo atingimento da imortalidade.
              Os primeiros a reclamar, por sentirem-se diretamente afetados em suas atividades, foram aqueles ligados ao setor funerário. Claro está que, não havendo mais defuntos, perdiam eles a matéria prima fundamental de seu negócio. Acenando ao governo com a perspectiva de iminente falência, e consequente desemprego em massa, pediram, no que foram atendidos, medidas compensatórias. Tais medidas se consubstanciavam na obrigatoriedade de enterrar-se, com todas as pompas funerárias que anteriormente eram devidas aos seres humanos, todo e qualquer animal de estimação; gato, cachorro, papagaio, seja lá o que fosse.
            Não morrendo ninguém, os hospitais logo ficariam superlotados com pacientes em estado terminal, e que não morreriam nunca, pelo que os diretores daquelas instituições levaram esta dramática condição às autoridades públicas. Estas determinaram que pacientes sem possibilidade de recuperação deveriam ser devolvidos às suas respectivas famílias, e que os hospitais continuariam a lhes prestar assistência como se internados ainda estivessem.
            Idênticos problemas de superlotação sofreriam os asilos para idosos, chamados de Lares do Feliz Ocaso. Em termos especialmente dramáticos os diretores dessas instituições alertaram as autoridades das consequências do viver infinito sobre os Lares: “o que aí nos vem em cima é o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pôde haver sonhado, nem mesmo nas escuras cavernas, quando tudo era terror e tremor, se terá visto semelhante cousa...” (p.32).
            Novamente o fator econômico: o presidente da Federação das Companhias Seguradoras comunicou ao governo que as filiadas estavam recebendo uma avalanche de cartas de seus segurados pedindo o cancelamento de suas apólices de seguro de vida. É claro, se ninguém vai morrer, não faz mais sentido continuar-se pagando prêmio de seguro de vida.
            Mas os problemas não se limitavam aos de ordem econômica. A religião perderia sua razão de ser, pois ela precisava da morte, da certeza da morte e da ressurreição para justificar-se. A morte era absolutamente essencial para a realização do reino de Deus. A religião católica, majoritária no país, tinha aguda consciência da questão, e propunha redobradas orações para o restabelecimento da morte.
             E a questão moral. As famílias começaram a se cansar de seus moribundos, de familiares que no limiar da passagem, em condições de completa irreversibilidade em sua condição de saúde, restariam prostrados para sempre em seu leito de outrora morte. Era preciso livrar-se deles, de alguma maneira, sem sentir remorsos. Descobriu-se, então, que em um país limítrofe, a morte continuava a operar normalmente. Uma família teve então a ideia de para lá transportar, clandestinamente, um avozinho, que queria morrer, e uma criança da família, ambos sem qualquer possibilidade de cura. O plano deu certo: ambos morreram no exato momento em que a fronteira foi cruzada, sendo enterrados naquele país vizinho. A notícia vazou, a família dos falecidos se viu alvo de exacerbadas críticas por sua desumanidade, mas logo outras famílias adotavam idêntico procedimento, até que os governos dos três países limítrofes protestaram, o que obrigou o chefe de governo do país onde ninguém morria anunciar que colocaria as forças armadas nas fronteiras para coibir a prática.
            Mas o pronunciamento do chefe de governo foi puramente de fachada, pois, no fundo o governo não via inteiramente com maus olhos um procedimento que ajudava o país a conter a crescente pressão demográfica. Atravessamentos de fronteira continuaram a ocorrer, apenas num fluxo mais lento, com a conivência dos vigilantes que o governo encarregou de decidirem caso a caso sobre quem poderia ser transportado para o além. Foi quando surgiu uma organização criminosa, a máphia (grafada propositalmente com ph, para diferenciá-la da máfia que todos conhecemos) a impor-se às famílias como intermediária das operações de transporte de seus moribundos para os países vizinhos. Em tal condição a máphia conseguiu pressionando o governo através de sucessivos e brutais atentados aos vigilantes, que só não morreram do efeito de tais agressões por razões óbvias. O governo foi então forçado a fazer um trato com a máphia, que passaria a controlar uma expressiva parcela do contingente de vigilantes.
            E assim as coisas foram seguindo. A ambiguidade das pessoas em relação à situação absolutamente fora de qualquer normalidade é bem expressa pelo narrador ao descrever a tentativa de golpe da oposição contra o regime, “aproveitando-se da perturbação em que o país mal vivia, dividido como estava entre a vaidade de saber-se único em todo o planeta e o desassossego de não ser como toda a gente” (p.82).
            Eis que, de modo completamente inesperado, a própria morte manda um comunicado anunciando que voltaria a atuar, a partir meia noite do dia desse aviso. E explicava por que decidira suspender as suas atividades, que fora para oferecer aos seres humanos que tanto a detestam “uma pequena mostra do que seria para eles viver para sempre, isto é, eternamente” (p.99). Reconhecendo o que ela considerava como lamentáveis, tanto do ponto de vista moral, como do ponto de vista pragmático, os resultados da experiência, a morte decidira o imediato regresso às suas atividades. Apenas que agora, salvo para aqueles que já deveriam ter morrido durante o período da experiência, e esses morreriam imediatamente a partir da meia-noite, todos os demais teriam sua morte avisada com uma antecedência prévia de uma semana, tempo este que ela julgava necessário a que o condenado pudesse tomar todas as providências cabíveis ― testamentárias, apresentar suas despedidas, fazer reconciliações etc. ― antes de sua partida definitiva. A morte devolvia assim “o supremo medo ao coração dos homens”.
            E, efetivamente, o supremo medo foi devolvido ao coração dos homens, só que agora de um modo mais intenso, e onipresente. A morte, ao enviar os avisos através de um envelope de cor violeta, através da mala postal comum, levou os homens a um terror permanente, sempre na expectativa de receberem a visita dos funcionários dos correios, agora os próprios mensageiros da morte, a lhes entregarem os sinistros envelopes da inapelável condenação.
            Mais uma vez, em sua oscilação pendular, a população passou a maldizer a morte, e parte da imprensa, fazendo eco a este sentimento, cobriu-a de toda a sorte de impropérios. Mas houve aqueles que de maneira mais ponderada, propuseram um diálogo franco e sincero com a morte. Mas, como encontrá-la? Todas as tentativas de achá-la, é claro, resultaram totalmente inúteis. As cartas seguem metodicamente sendo escritas por ela, postada em seu covil inteiramente a salvo das buscas humanas, e expedidas a um simples gesto de sua mão aos correios para a entrega final aos desgraçados destinatários.
            Mas eis que o narrador reserva uma surpresa ao leitor, e à própria morte. De forma completamente inesperada e inexplicada, uma das cartas expedidas retorna à remetente. E novamente retorna após a morte ter efetuado mais duas remessas. Frustrada, a morte busca em seus arquivos dados biográficos daquele que já deveria ter morrido, mas que continuava vivo. Era um violoncelista, que acabara de completar cinquenta anos de idade, quando deveria ter morrido de véspera, ainda com quarenta e nove anos. Decide visitar a casa deste homem, e o descobre um solitário, vivendo com a companhia única de um cão e a tocar dois instrumentos musicais, um piano e um violoncelo, este o seu ganha-pão na condição de músico de uma orquestra sinfônica.
            Investindo-se na forma humana de uma bela e misteriosa mulher, a morte assiste a um concerto no qual o músico executa um pungente solo, que assombra o maestro, a orquestra e a plateia. A morte o procura ao final do concerto e lhe apresenta seus cumprimentos. Termina o período que ela estabelecera para sua ausência de seu recanto nas profundezas, seria necessário regressar para subscrever uma nova leva de cartas. Mas ela decide prorrogar sua estada entre os vivos por um dia a mais.  Ainda encarnada, vai à casa do músico e mais uma vez se enternece com a uma peça de Bach que ele executa a pedido dela. Não só desiste de matá-lo, de lhe entregar pessoalmente a carta de cor violeta que estava em sua bolsa, como lhe oferece a boca, com ele se deita e fazem amor, uma, duas, três vezes.
            E por não ter a morte expedido as cartas a seu tempo próprio, no dia seguinte ninguém morreu.

            A hiperbólica trama traçada por Saramago demonstra a ambiguidade do ser humano em relação à morte. Sofre com a certeza de que ela é inevitável, maldiz esta condição e tenta fazer de conta que a morte é sempre a dos outros, não a sua própria. O Homem da narrativa não se aceita como um ser-para-a-morte heideggeriano. Porém, ante a cessação da morte, e do advento de seus catastróficos efeitos, volta a desejá-la, considerando que sua ausência constitui-se no maior dos horrores. Mas eis que o retorno da morte novamente lança o homem no desespero, passa agora a injuriá-la justamente por ter ela voltado a fazer aquilo pelo qual ele tanto ansiava. A narrativa de Saramago encerra a oportunidade de uma profunda reflexão sobre a quimera científica de que algum dia o desenvolvimento tecnológico propiciará ao Homem o alcance da vida eterna ― e plena de saúde! ― aqui mesmo, na Terra.
27/12/2016



[1] As Intermitências da morte, Companhia das Letras, 2005.

Nenhum comentário:

Postar um comentário