quinta-feira, 8 de junho de 2017

DÉJÀ - VU


DÉJÀ-VU



Pedro Shonga caminhava pesadamente em direção ao escritório, sem vontade de chegar ou de não chegar. Simplesmente se deslocava através de uma trajetória inexorável, um estranho a seu próprio destino. Caminhava e não atentava para o seu redor, pois se as coisas aconteciam, a ele não aconteciam, uma vez que Shonga já se apartara do mundo, era uma partícula que se movia de casa para o escritório e do escritório para casa. Em tempos de sonhos odiara o local de trabalho, gratificando-se com a idéia de que um dia se libertaria de sua vida de papel. Entretanto, a sistemática de vida à qual Shonga foi se deixando atrelar durante longos anos gradualmente fechou-lhe as portas do acaso, do inesperado, ao proteger-lhe de suas emoções. Seu dia a dia ficou tão exatamente premeditado que qualquer interferência do fortuito seria necessariamente barrada como uma indesejável perturbação da ordem natural das coisas.
            Finalmente, nada mais acontecia a Shonga. Durante algum tempo, seu passado ainda o perseguiu, a lembrança de perdidas esperanças ainda esvoaçava em seus devaneios até ser enxotada de vez. Sua vida passou a ser linear, onde passado, presente e futuro se confundiam num sabor de déjà-vu. Carente do referencial que até mesmo infortúnios plantam no viver dos miseráveis, Pedro Shonga vagava numa trajetória onde o tempo era uma coordenada imutável. Já lhe era impossível perceber a transformação dos dias em semanas, das semanas em meses, dos meses em anos. Tudo sempre igual.
            Pedro continuava caminhando, a cabeça baixa da certeza do imutável, até que o percurso se cumpriu, mais do que foi cumprido. Ao perceber, instintivamente, que estava diante do elevador do prédio onde trabalhava, levantou seu braço e comprimiu um dedo no vazio, pois que não havia botão para apertar, nem sequer parede para suportá-lo. O que havia, desvelado pelo pressionar de seu dedo, eram amendoeiras e casuarinas que guarneciam ambos os lados da alameda que se estendia diante de si e através do tempo. Foi com um sentido de excitação que Pedro embrenhou-se por aquela senda, os alegres raios de sol de verão a iluminar alguma coisa que surgia do passado e da distância. Um mar todo azul e de águas serenas lançava reflexos prateados das suaves ondulações de suas marolas. As areias da praia eram muito brancas, apenas marcadas pelos ramos que se desprendiam das árvores, batidas por um vento de sal.
A paisagem era por si só radiosa, mas o momento era de perfeição, e o mar se derramava pela areia, alcançando e acariciando um corpo de mulher de cabelos cor de ouro e concentrando seu azul em olhos que abrigavam toda a mansidão daquele universo. A exuberância do corpo era apenas contida por duas tiras de tecido negro, a comprimir generosas formas que ameaçavam projetar-se no esplendor de seios cuja curvatura, arfando suavemente ao sopro da respiração, sugeriam o prodígio deixado à imaginação.
            A contemplação daquela mulher maravilhosa ali desde sempre deitada devolve a Pedro o sentido do referencial afogado em seu sempiterno caminhar. Está na fronteira de uma nova dimensão, no afogamento de suas memórias, alem do déjà-vu, do nada que é o seu dia-a-dia. A transposição dessa fronteira interromperá o prolongamento do sempre e do nada. Pedro estende-se ao lado daquela miragem. Ansiedade paralisante, medo da quebra do encanto e do retorno ao escritório. Vidrado, não toca, apenas acaricia com o olhar cada parte da esfinge à sua frente. Sente um desejo louco de se colar àquele corpo, enfiar suas mãos sob a minúscula tira negra, libertar os seios e logo acolhê-los no calor de sua boca. Arde de desejo e se consome na ansiedade. Quer logo percorrer com seus lábios aquelas pernas bronzeadas, sentir em seu rosto o excitante roçar dos pelos dourados de sol, entranhar-se naquele doce remanso. Ela está só, ela e o mar, que vem e volta, rolando sobre seu corpo, língua de Netuno saciando o prazer de um deus. É preciso fazer esta mulher realidade.
             O mar ia e voltava, o sol prosseguia no firmamento e os galhos das casuarinas farfalhavam languidamente ao sopro da brisa. Um tempo indefinido se passou e Pedro, dentro do elevador, deu enorme trabalho a quatro colegas de serviço que, a muito custo, conseguiram livrar de sua boca ávida os maviosos seios que saltaram, desprotegidos, da blusa rasgada de uma linda e aterrorizada secretária, que ficou a chorar aos soluços.

22/08/2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário