quarta-feira, 28 de junho de 2017

Nos tempos de Dona Ermelinda


Nos tempos de Dona Ermelinda

A relação dos aprovados no vestibular de ingresso à prestigiosa Escola Nacional de Química estava lá, pregada na parede. Buscamos avidamente encontrar os nossos nomes e os encontramos: o meu e o do meu grande amigo Pacci. Era o coroamento de uma árdua temporada de estudos, nos tornávamos universitários. Ambos bastante jovens, eu ainda com 17, e Pacci com 18 anos de idade.
A faculdade ficava no ecológico bairro da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, muito próxima ao sopé do Morro da Urca, de onde partiam os antigos bondinhos para o Pão de Açúcar. A jornada de Niterói, onde morávamos, até chegar a ela era demorada, demandava três conduções: um “trolley bus” (ônibus elétrico) para se chegar à estação das barcas de Niterói, a barca para a travessia da Baía de Guanabara e, finalmente, outro “trolley bus” à Praia Vermelha. Não raro podia durar duas horas. Seguiam-se oito horas passadas em salas de aula e laboratórios, intermediadas por duas horas de almoço. Acrescentando-se as duas horas gastas no regresso às nossas residências, chegávamos a um comprometimento de 14 horas de nosso dia útil. Era demais. Confabulamos e concluímos que o melhor seria “cruzarmos a Baía”, ou seja, alugarmos um pouso próximo à Faculdade. Foi assim que começamos a procurar nos classificados dos jornais anúncios de “alugam-se vagas para cavalheiros de fino trato”. Não demorou muito para encontrarmos aquilo que nos parecia o ideal: um quarto num apartamento situado na Praia de Botafogo. Fomos aceitos como inquilinos após uma entrevista com os proprietários do imóvel, Seu Gilson e esposa, Dona Ermelinda. Aparentavam formar um casal absolutamente decente. Tinham uma filhinha de uns dois anos de idade. Deram-nos algumas explicações básicas sobre a locação e informaram que havia dois outros quartos alugados no apartamento: um para o Sr. Nilson, outro para uma moça, Iracema.
Eu me propunha a passar apenas os dias de semana naquele local, pois me era difícil cortar o cordão umbilical familiar: chegava ao apartamento nas noites das segundas feiras, após a jornada na faculdade, e já o deixava nas manhãs das sextas feiras. O meu amigo Pacci se permitia ficar um pouco mais por lá. Foi um período de difícil adaptação para nós, colegas de turma saídos de um ambiente escolar ao qual nos acostumáramos durante os sete anos dos cursos ginasial e científico, em nossa pacata cidade natal, e transportados para outra realidade. Niterói, então capital do antigo estado do Rio de Janeiro, de certa forma estranhava a cidade do Rio de Janeiro, recém destronada da condição de capital da República, e que passara à condição de capital do extinto estado da Guanabara. A distância ainda não havia sido encurtada pela construção da ponte Rio - Niterói, a baia era uma separação física que preservava algumas diferenças de costumes entre as duas cidades − a imensa e cosmopolita Rio de Janeiro e a pequena e reservada Niterói. A faculdade exigia muito de nós e, para complicar, ambos amargávamos uma dolorosa frustração amorosa. Pacci, ao declarar seu recôndito amor à Narinha, a suave, doce coleguinha de turma no Científico, recebera um triste pé na bunda. Eu, num processo bem mais complicado, não conseguira declarar a minha imensa paixão de adolescente a Natacha, outra coleguinha de turma. Éramos grandes amigos, tínhamos muito em comum, inclusive a timidez. Essa paixão não declarada acabou por nos afastar abruptamente, de forma totalmente inusitada, e a nunca mais nos falarmos, embora frequentássemos a mesma sala de aula. E ardeu em mim durante um longo tempo, assim como doeu em Pacci o pé-na-bundeamento por ele sofrido. Ao relembrar tantas vezes a sua desventura o pobre Pacci se lamentava: “É como um filme que subitamente começa a se desenrolar na minha cabeça; nada posso fazer para interrompê-lo, tenho que aguardar que ele simplesmente vá até o fim”. Excelente definição que a mim também se aplicava no incontrolável irromper das minhas lembranças da oportunidade perdida.
A vida nos primeiros dias no apartamento da Dona Ermelinda − logo vimos que era ela quem mandava no pedaço − transcorreu sem novidades. Ocorria de, por vezes, encontrarmos, à espera do elevador, o Sr.Nilson, um senhor afável e bastante educado, ou Iracema, uma moça jovem e bem bonita, além de simpática. Nós os cumprimentávamos sem entabular conversação. O primeiro sinal de alguma coisa estranha ocorreu quando Pacci, ao retornar de sua casa ao apartamento em uma noite de domingo, foi amavelmente convidado por Dona Ermelinda para lanchar com ela e com o seu esposo. Teria sido apenas um gesto de cortesia se não fosse por um detalhe: Dona Ermelinda vestia um traje caseiro, algo como uma camisola, um pouco rasgada. Imersos em nossos próprios problemas, pouca ou nenhuma atenção prestávamos ao que se passava no interior daquele ambiente, mas logo dona Ermelinda foi nos passando algumas confidências. A jovem Iracema “não passava de uma prostituta do Rajá”, célebre edifício-cortiço de Botafogo. Ficamos um tanto chocados com a revelação, que tomamos como verdadeira. Mas logo em seguida viria uma revelação ainda mais bombástica: aquele distinto Sr. Nilson era, na verdade, “uma bicha”, e que por suas práticas arruinara a tal ponto o seu ânus que estava condenado a usar uma bolsa de colostomia. Estávamos em 1963, a homossexualidade era algo bastante condenável, a revelação nos deixou atônitos. A partir daí não tivemos mais sossego. Seguiram-se duas reclamações feitas a mim com relação ao comportamento de Pacci. A primeira, bizarra, referia-se a um ruído que consideravam excessivo produzido pelo meu amigo ao escovar os dentes no banheiro. A segunda revestiu-se de uma solenidade bem maior. Estava eu deitado em minha cama quando ouvi batidas em minha porta. Abri, assomou o Sr. Gilson, com um ar grave. “Venho trazer uma reclamação de moradores, disse ele”. Eu, apreensivo, escutava. O seu amigo tem sido visto através da janela, deitado na cama, de cueca, coçando o escroto”. “Coçando os culhões”, emendou ele, na suposição de que eu desconhecesse o termo vernacularmente apropriado que utilizara. Fiquei perplexo e, extremamente constrangido, tudo o que pude dizer é que falaria com Pacci sobre a reclamação.
A coisa foi piorando. Num crescente de confidências, Dona Ermelinda começou a reclamar conosco de seu marido: ele, durante a noite na cama “emitia suspiros que traiam as relações sexuais que mantinha com crioulas”. Um dia nos afirmou que ele sofria de sífilis. Fomos tomados de pânico. Em tempos muito anteriores ao surgimento da AIDS a sífilis era o flagelo mais temido pelos que se aventuravam no mundo do sexo. Conhecíamos de leitura os diversos estágios da doença até que ela se instalasse no cérebro do infectado, levando-o a loucura. Comecei a ver ameaças de contaminação por todos os lados do apartamento, especialmente no banheiro. Em um desastrado movimento pra não tocar em nada na pia durante o ato de fazer a barba acabei por deixar cair ao chão o velho aparelho suíço que o meu pai me emprestara, o que resultou no entortar de um de seus dentes. Mais apavorado ainda ficou Pacci, que foi ao consultório de um prestigioso médico em Niterói para ouvir dele a explicação de que seus temores eram inteiramente infundados, que “sífilis não se pega assim, somente se pega em relação sexual e, mesmo assim, na ocorrência de ferimentos”. Menos mal, ao menos quanto a isso nos tranqüilizamos.
Porem o meu desconforto ia crescendo. Dona Ermelinda tomava cada vez mais intimidade. Um dia começou a me pressionar por dinheiro para que ela comprasse um presente para sua filhinha. Fiz-me de desentendido, mas aquilo me aborreceu. Mas o melhor ainda estava para vir. Voltando às queixas contra o marido disse: “O meu marido vive falando em amigos, amigos, que o fulano é seu amigo”. “Pois é. É amigo. Mas sábado passado ele veio aqui e me deu aquilo pra eu chupar”. Aquilo já era demais. Ao deixar o apartamento na sexta feira que se seguiu levei as minhas poucas coisas que lá deixava e não mais retornei àquele hospício. Pagara o mês adiantado, mas era melhor nem negociar qualquer devolução. O meu amigo Pacci permaneceu até o último dia que o seu pagamento lhe garantira. Jamais saberei a verdade sobre o que ouvira de Dona Ermelinda. Quem sabe, ela é quem seria portadora de sífilis em seu último estágio?

28/11/2014

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