Nos tempos de Dona Ermelinda
A relação dos aprovados no vestibular
de ingresso à prestigiosa Escola Nacional de Química estava lá, pregada na
parede. Buscamos avidamente encontrar os nossos nomes e os encontramos: o meu e
o do meu grande amigo Pacci. Era o coroamento de uma árdua temporada de
estudos, nos tornávamos universitários. Ambos bastante jovens, eu ainda com 17,
e Pacci com 18 anos de idade.
A faculdade ficava no ecológico
bairro da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, muito próxima ao sopé do Morro da
Urca, de onde partiam os antigos bondinhos para o Pão de Açúcar. A jornada de
Niterói, onde morávamos, até chegar a ela era demorada, demandava três
conduções: um “trolley bus” (ônibus elétrico) para se chegar à estação das
barcas de Niterói, a barca para a travessia da Baía de Guanabara e, finalmente,
outro “trolley bus” à Praia Vermelha. Não raro podia durar duas horas.
Seguiam-se oito horas passadas em salas de aula e laboratórios, intermediadas
por duas horas de almoço. Acrescentando-se as duas horas gastas no regresso às
nossas residências, chegávamos a um comprometimento de 14 horas de nosso dia
útil. Era demais. Confabulamos e concluímos que o melhor seria “cruzarmos a
Baía”, ou seja, alugarmos um pouso próximo à Faculdade. Foi assim que começamos
a procurar nos classificados dos jornais anúncios de “alugam-se vagas para cavalheiros
de fino trato”. Não demorou muito para encontrarmos aquilo que nos parecia o
ideal: um quarto num apartamento situado na Praia de Botafogo. Fomos aceitos
como inquilinos após uma entrevista com os proprietários do imóvel, Seu Gilson
e esposa, Dona Ermelinda. Aparentavam formar um casal absolutamente decente. Tinham
uma filhinha de uns dois anos de idade. Deram-nos algumas explicações básicas
sobre a locação e informaram que havia dois outros quartos alugados no
apartamento: um para o Sr. Nilson, outro para uma moça, Iracema.
Eu me propunha a passar apenas os
dias de semana naquele local, pois me era difícil cortar o cordão umbilical
familiar: chegava ao apartamento nas noites das segundas feiras, após a jornada
na faculdade, e já o deixava nas manhãs das sextas feiras. O meu amigo Pacci se
permitia ficar um pouco mais por lá. Foi um período de difícil adaptação para
nós, colegas de turma saídos de um ambiente escolar ao qual nos acostumáramos
durante os sete anos dos cursos ginasial e científico, em nossa pacata cidade
natal, e transportados para outra realidade. Niterói, então capital do antigo
estado do Rio de Janeiro, de certa forma estranhava a cidade do Rio de Janeiro,
recém destronada da condição de capital da República, e que passara à condição
de capital do extinto estado da Guanabara. A distância ainda não havia sido
encurtada pela construção da ponte Rio - Niterói, a baia era uma separação
física que preservava algumas diferenças de costumes entre as duas cidades − a
imensa e cosmopolita Rio de Janeiro e a pequena e reservada Niterói. A
faculdade exigia muito de nós e, para complicar, ambos amargávamos uma dolorosa
frustração amorosa. Pacci, ao declarar seu recôndito amor à Narinha, a suave,
doce coleguinha de turma no Científico, recebera um triste pé na bunda. Eu, num
processo bem mais complicado, não conseguira declarar a minha imensa paixão de
adolescente a Natacha, outra coleguinha de turma. Éramos grandes amigos,
tínhamos muito em comum, inclusive a timidez. Essa paixão não declarada acabou
por nos afastar abruptamente, de forma totalmente inusitada, e a nunca mais nos
falarmos, embora frequentássemos a mesma sala de aula. E ardeu em mim durante
um longo tempo, assim como doeu em Pacci o pé-na-bundeamento por ele sofrido.
Ao relembrar tantas vezes a sua desventura o pobre Pacci se lamentava: “É como
um filme que subitamente começa a se desenrolar na minha cabeça; nada posso
fazer para interrompê-lo, tenho que aguardar que ele simplesmente vá até o fim”.
Excelente definição que a mim também se aplicava no incontrolável irromper das
minhas lembranças da oportunidade perdida.
A vida nos primeiros dias no
apartamento da Dona Ermelinda − logo vimos que era ela quem mandava no pedaço −
transcorreu sem novidades. Ocorria de, por vezes, encontrarmos, à espera do
elevador, o Sr.Nilson, um senhor afável e bastante educado, ou Iracema, uma
moça jovem e bem bonita, além de simpática. Nós os cumprimentávamos sem
entabular conversação. O primeiro sinal de alguma coisa estranha ocorreu quando
Pacci, ao retornar de sua casa ao apartamento em uma noite de domingo, foi
amavelmente convidado por Dona Ermelinda para lanchar com ela e com o seu
esposo. Teria sido apenas um gesto de cortesia se não fosse por um detalhe: Dona
Ermelinda vestia um traje caseiro, algo como uma camisola, um pouco rasgada.
Imersos em nossos próprios problemas, pouca ou nenhuma atenção prestávamos ao
que se passava no interior daquele ambiente, mas logo dona Ermelinda foi nos
passando algumas confidências. A jovem Iracema “não passava de uma prostituta
do Rajá”, célebre edifício-cortiço de Botafogo. Ficamos um tanto chocados com a
revelação, que tomamos como verdadeira. Mas logo em seguida viria uma revelação
ainda mais bombástica: aquele distinto Sr. Nilson era, na verdade, “uma bicha”,
e que por suas práticas arruinara a tal ponto o seu ânus que estava condenado a
usar uma bolsa de colostomia. Estávamos em 1963, a homossexualidade era algo bastante
condenável, a revelação nos deixou atônitos. A partir daí não tivemos mais
sossego. Seguiram-se duas reclamações feitas a mim com relação ao comportamento
de Pacci. A primeira, bizarra, referia-se a um ruído que consideravam excessivo
produzido pelo meu amigo ao escovar os dentes no banheiro. A segunda
revestiu-se de uma solenidade bem maior. Estava eu deitado em minha cama quando
ouvi batidas em minha porta. Abri, assomou o Sr. Gilson, com um ar grave.
“Venho trazer uma reclamação de moradores, disse ele”. Eu, apreensivo,
escutava. O seu amigo tem sido visto através da janela, deitado na cama, de
cueca, coçando o escroto”. “Coçando os culhões”, emendou ele, na suposição de
que eu desconhecesse o termo vernacularmente apropriado que utilizara. Fiquei
perplexo e, extremamente constrangido, tudo o que pude dizer é que falaria com
Pacci sobre a reclamação.
A coisa foi piorando. Num crescente
de confidências, Dona Ermelinda começou a reclamar conosco de seu marido: ele,
durante a noite na cama “emitia suspiros que traiam as relações sexuais que mantinha
com crioulas”. Um dia nos afirmou que ele sofria de sífilis. Fomos tomados de
pânico. Em tempos muito anteriores ao surgimento da AIDS a sífilis era o
flagelo mais temido pelos que se aventuravam no mundo do sexo. Conhecíamos de
leitura os diversos estágios da doença até que ela se instalasse no cérebro do
infectado, levando-o a loucura. Comecei a ver ameaças de contaminação por todos
os lados do apartamento, especialmente no banheiro. Em um desastrado movimento
pra não tocar em nada na pia durante o ato de fazer a barba acabei por deixar
cair ao chão o velho aparelho suíço que o meu pai me emprestara, o que resultou
no entortar de um de seus dentes. Mais apavorado ainda ficou Pacci, que foi ao
consultório de um prestigioso médico em Niterói para ouvir dele a explicação de
que seus temores eram inteiramente infundados, que “sífilis não se pega assim, somente
se pega em relação sexual e, mesmo assim, na ocorrência de ferimentos”. Menos
mal, ao menos quanto a isso nos tranqüilizamos.
Porem o meu desconforto ia crescendo.
Dona Ermelinda tomava cada vez mais intimidade. Um dia começou a me pressionar por
dinheiro para que ela comprasse um presente para sua filhinha. Fiz-me de
desentendido, mas aquilo me aborreceu. Mas o melhor ainda estava para vir.
Voltando às queixas contra o marido disse: “O meu marido vive falando em
amigos, amigos, que o fulano é seu amigo”. “Pois é. É amigo. Mas sábado passado
ele veio aqui e me deu aquilo pra eu
chupar”. Aquilo já era demais. Ao deixar o apartamento na sexta feira que se
seguiu levei as minhas poucas coisas que lá deixava e não mais retornei àquele
hospício. Pagara o mês adiantado, mas era melhor nem negociar qualquer
devolução. O meu amigo Pacci permaneceu até o último dia que o seu pagamento
lhe garantira. Jamais saberei a verdade sobre o que ouvira de Dona Ermelinda.
Quem sabe, ela é quem seria portadora de sífilis em seu último estágio?
28/11/2014
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