É PROIBIDO PROIBIR?
O lema, cunhado na década de 1960,
foi uma reação natural de artistas e intelectuais ao regime de supressão de
liberdades imposto pelo regime militar no Brasil. A própria frase é
contraditória em si mesma. Proibido proibir significa permitir tudo,
indiscriminadamente, inclusive a liberdade de proibir. Seria, então, permitido
exercer a liberdade de proibir? Mas, deixando de lado especulações de caráter
filosófico, constatamos que a frase fazia sentido naquele contexto histórico,
serviu de bandeira a todos aqueles que clamavam por liberdade. Hoje,
contrariamente, parece tudo estar permitido ― “Tout est pardonné”, prega-se após o bárbaro atentado contra
cartunistas franceses em janeiro de 2015 (novamente, pode-se questionar: Perdoar
até mesmo o próprio atentado?) ― num movimento pendular muito típico dos modos
de ser dos humanos. Este sentimento de que é proibido proibir, num momento de
quase completa libertinagem em nossa sociedade, é absolutamente nefasto.
Examinemos o contexto em que tal máxima continua inspirando atitudes.
Vivemos tempos de individualismo
exacerbado, de hipercompetição, da negação da alteridade, da afirmação pelo
alcance do sucesso social a qualquer preço, da substituição do ser pelo ter e,
até mesmo, pelo simples parecer ter, de corrupção. A possibilidade de dizer
não, de colocação de limites, é questionada como manifestação de resquícios de
autoritarismo, de repressão. Como resultado, pais e educadores sentem-se
tolhidos no exercício de seus papéis sociais. Confunde-se o exercício da
autoridade quando ela se faz necessária com o puro e simples autoritarismo. Aos
pais é imputada toda a responsabilidade, quando não a culpa, pela dificuldade
no diálogo com seus filhos. Aos professores, culpa-se pelo mau desempenho
escolar e comportamento agressivo dos alunos. Pela televisão, pela leitura dos
jornais e pelo exercício da clínica psicoterapêutica vemos professores acuados
moral e, cada vez mais, fisicamente, pelos alunos. As cidades vivem a desordem urbana, os marginais
cada vez mais usurpando o poder dos governantes. Completamente desmoralizadas, mergulhadas
em um atoleiro de corrupção, autoridades constituídas já em nada se diferenciam
da bandidagem que lhes cabe combater. A sociedade pede providências, exige ação
de seus governantes. No plano individual as pessoas sentem-se muito ciosas de
seus direitos, como algo que lhes foi sonegado durante os anos de governos
militares, e não aceitam limites. Mas a contrapartida a esses direitos, os
deveres do cidadão, parece cada vez menos imbuída nessas mesmas pessoas.
Estados fracassam quando os governos
nacionais, destituídos de autoridade, perdem o controle de parte ou de todo o
seu território e não podem mais garantir a segurança física de seus cidadãos.
Quando os governos perdem o monopólio do poder, a lei e a ordem começam a se
desintegrar. Quando não conseguem mais prover serviços básicos como educação,
saúde pública e alimentação eles perdem sua legitimidade. Um governo nessas
condições pode perder a capacidade de coletar os tributos necessários a uma
efetiva governabilidade. Consequentemente, as sociedades se tornam fragmentadas
e sem coesão para tomar decisões. Esses Estados, referidos como Failing States
(Estados Fracassados) pelo economista e pensador social Lester Brown, já
compreendem uma extensa lista de países, a maioria deles localizada no
continente africano. E essa lista só faz aumentar.
No campo social vemos, não somente
nos “Estado Fracassados” já assim caracterizados, mas também no Brasil, cada
dia mais sinais alarmantes de quebra dos parâmetros mínimos que balizam a
civilização. Alastram-se a corrupção, os
desmandos e a inépcia nos poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário
– e o país avança perigosamente para a anarquia em sua pior acepção. A
transgressão torna-se regra. A aplicação da lei, com a punição dos culpados, é
cada vez mais escamoteada por tecnicalidades jurídicas, quando não pela pura e
simples venda de sentenças por magistrados completamente divorciados da
majestade de suas funções. Freud, em seu
texto “O mal estar na civilização”, traça importantes considerações sobre os
aspectos que caracterizariam a civilização. Segundo ele, um desses aspectos
mais próprios da civilização seria a maneira pela qual os relacionamentos
mútuos dos homens, seus relacionamentos sociais, são regulados. Freud entende
que o elemento de civilização entra em cena com a primeira tentativa de
fazer-se tal regulação, pois sem regulamentos os relacionamentos ficariam
sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, prevalecendo à vontade dos
fisicamente mais fortes a decidir no sentido de seus próprios interesses e
impulsos instintivos. A vida humana em comum só se torna possível, prossegue
ele, com a reunião de uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado,
e que permanece unida contra todo e qualquer indivíduo isolado. O poder da
comunidade desta forma se estabelece como “direito”, em oposição ao poder do
indivíduo, condenado como “força bruta”. O poder da comunidade substituindo o
poder do indivíduo constituindo o passo decisivo da civilização. Assim sendo, a
justiça é a primeira exigência da civilização, o que implica na criação da lei
que, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. Subjacente à
implantação do Estado regulado por leis limitando as liberdades individuais
está a aceitação de uma outra conceituação de Freud, segundo a qual os homens
não são criaturas gentis que desejam ser amadas, mas que, contrariamente, são
criaturas cujos dotes instintivos incorporam uma poderosa parcela de
agressividade. E essa agressividade seria inata ao homem, existindo desde os
tempos primitivos, o que contraria a crença comunista de que o homem é
inteiramente bom, mas que sua natureza teria sido corrompida pela instituição
da propriedade privada. Freud, em suma, crê na necessidade da repressão dos
instintos do homem em prol da civilização.
Ao que parece a história tem dado
razão a Freud. O “É proibido proibir” (libera-se, então, a tortura, o incesto,
o estupro, a pedofilia, o racismo, a apologia do nazismo?), o laissez faire, a falta do exercício da
autoridade tem feito muito mal às sociedades, da lassidão dos costumes às
periódicas crises do capitalismo. A ação reguladora e fiscalizadora do Estado
tem se demonstrado essencial para o funcionamento da sociedade, no Brasil ou em
qualquer outro país. Quando, no regime capitalista, se levam às últimas
consequências crenças fundamentalistas na ação da “mão invisível que regula os
mercados” e no “quanto menos governo, melhor” apregoado pelo neoliberalismo,
pode-se chegar ao total caos nos mercados. Tal situação foi atingida nas
recorrentes crises econômico-financeiras que assolam o mundo, como já
acontecera a partir do célebre crack da
Bolsa norte-americana em 1929, sendo a de 2009 a mais recente. Não há qualquer
comprovação científica para a existência da tal mão invisível. Ela se baseia no
pressuposto de que o mercado aloca recursos de uma forma que nenhum
planejamento centralizado (como adotado nos países de regime comunista) pode
fazer, facilmente equilibrando a oferta e a demanda. Esta teoria, mesmo
admitindo-se como sendo conceitualmente correta, tem graves falhas. E isto
porque na vida real os preços de mercado não incorporam os custos indiretos da
produção de mercadorias, tais como os custos ambientais, os custos sociais e os
custos militares envolvidos em garantir suprimento de matérias primas em
regiões politicamente instáveis. É o que acontece, por exemplo, no caso do
petróleo, que nos Estado Unidos, deixam de incorporar os imensos custos da
mobilização militar e das guerras travadas para garantir acesso àquele
suprimento vital. Assim sendo, os preços de mercado estão distorcidos, e é
sobre uma referência de preços distorcidos que a mão invisível atua realocando
recursos. Diametralmente oposto ao fundamentalismo do mercado está a
exacerbação do planejamento centralizado, na desenfreada estatização da
atividade econômica, podendo, no extremo, levar ao stalinismo. Neste caso, o
que é completamente proibida é a livre iniciativa.
Tanto uma quanto outra destas formas
extremas de organização econômica das relações humanas, o turbo capitalismo e o
comunismo, uma por excesso de liberdade, outra por excesso de proibições,
levaram os países que escolheram tais regimes a sérias crises. Embora o filósofo
Sartre tenha afirmado que o homem é livre para fazer suas escolhas, este tem se
mostrado tentado a fazer escolhas pelos extremos. O provérbio romano diz que a
virtude está no meio. Talvez a melhor forma de se atentar para este conselho
seja a de se buscar uma combinação entre pilares do capitalismo, como a livre
iniciativa, e do socialismo, como a presença do Estado no papel de agente
regulador e controlador, um freio à ganância. Se o Estado extrapola as suas
funções, a questão não é o Estado, ele não é o problema, como dizia o
presidente Ronald Reagan, arauto e apóstolo mor do neoliberalismo, mas, sim, o
ser humano. Não é proibindo a intervenção do Estado sobre a economia que se
atingirá a melhor organização social possível. A intervenção do Estado é
necessária, sim. Na sua ausência, implanta-se o caos nos mercados, que só
retomam a sua caracteristicamente precária situação de equilíbrio justamente
pela ação estatal anteriormente repudiada.
José Antonio de
Carvalho e Silva
Setembro/2015
Este é realmente um de seus melhores textos. O equilíbrio e o bom senso devem de fato regular a existência humana. A civilização clama por alguma lei que regule a barbárie para que a liberdade individual e a vida coletiva possam existir em harmonia. Muito obrigada pela reflexão, amigo. Andreia Maraglia
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