domingo, 1 de outubro de 2017

É proibido proibir?


É PROIBIDO PROIBIR?

           
            O lema, cunhado na década de 1960, foi uma reação natural de artistas e intelectuais ao regime de supressão de liberdades imposto pelo regime militar no Brasil. A própria frase é contraditória em si mesma. Proibido proibir significa permitir tudo, indiscriminadamente, inclusive a liberdade de proibir. Seria, então, permitido exercer a liberdade de proibir? Mas, deixando de lado especulações de caráter filosófico, constatamos que a frase fazia sentido naquele contexto histórico, serviu de bandeira a todos aqueles que clamavam por liberdade. Hoje, contrariamente, parece tudo estar permitido ― “Tout est pardonné”, prega-se após o bárbaro atentado contra cartunistas franceses em janeiro de 2015 (novamente, pode-se questionar: Perdoar até mesmo o próprio atentado?) ― num movimento pendular muito típico dos modos de ser dos humanos. Este sentimento de que é proibido proibir, num momento de quase completa libertinagem em nossa sociedade, é absolutamente nefasto. Examinemos o contexto em que tal máxima continua inspirando atitudes.
            Vivemos tempos de individualismo exacerbado, de hipercompetição, da negação da alteridade, da afirmação pelo alcance do sucesso social a qualquer preço, da substituição do ser pelo ter e, até mesmo, pelo simples parecer ter, de corrupção. A possibilidade de dizer não, de colocação de limites, é questionada como manifestação de resquícios de autoritarismo, de repressão. Como resultado, pais e educadores sentem-se tolhidos no exercício de seus papéis sociais. Confunde-se o exercício da autoridade quando ela se faz necessária com o puro e simples autoritarismo. Aos pais é imputada toda a responsabilidade, quando não a culpa, pela dificuldade no diálogo com seus filhos. Aos professores, culpa-se pelo mau desempenho escolar e comportamento agressivo dos alunos. Pela televisão, pela leitura dos jornais e pelo exercício da clínica psicoterapêutica vemos professores acuados moral e, cada vez mais, fisicamente, pelos alunos.  As cidades vivem a desordem urbana, os marginais cada vez mais usurpando o poder dos governantes. Completamente desmoralizadas, mergulhadas em um atoleiro de corrupção, autoridades constituídas já em nada se diferenciam da bandidagem que lhes cabe combater. A sociedade pede providências, exige ação de seus governantes. No plano individual as pessoas sentem-se muito ciosas de seus direitos, como algo que lhes foi sonegado durante os anos de governos militares, e não aceitam limites. Mas a contrapartida a esses direitos, os deveres do cidadão, parece cada vez menos imbuída nessas mesmas pessoas.
            Estados fracassam quando os governos nacionais, destituídos de autoridade, perdem o controle de parte ou de todo o seu território e não podem mais garantir a segurança física de seus cidadãos. Quando os governos perdem o monopólio do poder, a lei e a ordem começam a se desintegrar. Quando não conseguem mais prover serviços básicos como educação, saúde pública e alimentação eles perdem sua legitimidade. Um governo nessas condições pode perder a capacidade de coletar os tributos necessários a uma efetiva governabilidade. Consequentemente, as sociedades se tornam fragmentadas e sem coesão para tomar decisões. Esses Estados, referidos como Failing States (Estados Fracassados) pelo economista e pensador social Lester Brown, já compreendem uma extensa lista de países, a maioria deles localizada no continente africano. E essa lista só faz aumentar.
            No campo social vemos, não somente nos “Estado Fracassados” já assim caracterizados, mas também no Brasil, cada dia mais sinais alarmantes de quebra dos parâmetros mínimos que balizam a civilização.  Alastram-se a corrupção, os desmandos e a inépcia nos poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – e o país avança perigosamente para a anarquia em sua pior acepção. A transgressão torna-se regra. A aplicação da lei, com a punição dos culpados, é cada vez mais escamoteada por tecnicalidades jurídicas, quando não pela pura e simples venda de sentenças por magistrados completamente divorciados da majestade de suas funções. Freud, em seu texto “O mal estar na civilização”, traça importantes considerações sobre os aspectos que caracterizariam a civilização. Segundo ele, um desses aspectos mais próprios da civilização seria a maneira pela qual os relacionamentos mútuos dos homens, seus relacionamentos sociais, são regulados. Freud entende que o elemento de civilização entra em cena com a primeira tentativa de fazer-se tal regulação, pois sem regulamentos os relacionamentos ficariam sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo, prevalecendo à vontade dos fisicamente mais fortes a decidir no sentido de seus próprios interesses e impulsos instintivos. A vida humana em comum só se torna possível, prossegue ele, com a reunião de uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado, e que permanece unida contra todo e qualquer indivíduo isolado. O poder da comunidade desta forma se estabelece como “direito”, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como “força bruta”. O poder da comunidade substituindo o poder do indivíduo constituindo o passo decisivo da civilização. Assim sendo, a justiça é a primeira exigência da civilização, o que implica na criação da lei que, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. Subjacente à implantação do Estado regulado por leis limitando as liberdades individuais está a aceitação de uma outra conceituação de Freud, segundo a qual os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas, mas que, contrariamente, são criaturas cujos dotes instintivos incorporam uma poderosa parcela de agressividade. E essa agressividade seria inata ao homem, existindo desde os tempos primitivos, o que contraria a crença comunista de que o homem é inteiramente bom, mas que sua natureza teria sido corrompida pela instituição da propriedade privada. Freud, em suma, crê na necessidade da repressão dos instintos do homem em prol da civilização.    
            Ao que parece a história tem dado razão a Freud. O “É proibido proibir” (libera-se, então, a tortura, o incesto, o estupro, a pedofilia, o racismo, a apologia do nazismo?), o laissez faire, a falta do exercício da autoridade tem feito muito mal às sociedades, da lassidão dos costumes às periódicas crises do capitalismo. A ação reguladora e fiscalizadora do Estado tem se demonstrado essencial para o funcionamento da sociedade, no Brasil ou em qualquer outro país. Quando, no regime capitalista, se levam às últimas consequências crenças fundamentalistas na ação da “mão invisível que regula os mercados” e no “quanto menos governo, melhor” apregoado pelo neoliberalismo, pode-se chegar ao total caos nos mercados. Tal situação foi atingida nas recorrentes crises econômico-financeiras que assolam o mundo, como já acontecera a partir do célebre crack da Bolsa norte-americana em 1929, sendo a de 2009 a mais recente. Não há qualquer comprovação científica para a existência da tal mão invisível. Ela se baseia no pressuposto de que o mercado aloca recursos de uma forma que nenhum planejamento centralizado (como adotado nos países de regime comunista) pode fazer, facilmente equilibrando a oferta e a demanda. Esta teoria, mesmo admitindo-se como sendo conceitualmente correta, tem graves falhas. E isto porque na vida real os preços de mercado não incorporam os custos indiretos da produção de mercadorias, tais como os custos ambientais, os custos sociais e os custos militares envolvidos em garantir suprimento de matérias primas em regiões politicamente instáveis. É o que acontece, por exemplo, no caso do petróleo, que nos Estado Unidos, deixam de incorporar os imensos custos da mobilização militar e das guerras travadas para garantir acesso àquele suprimento vital. Assim sendo, os preços de mercado estão distorcidos, e é sobre uma referência de preços distorcidos que a mão invisível atua realocando recursos. Diametralmente oposto ao fundamentalismo do mercado está a exacerbação do planejamento centralizado, na desenfreada estatização da atividade econômica, podendo, no extremo, levar ao stalinismo. Neste caso, o que é completamente proibida é a livre iniciativa.
            Tanto uma quanto outra destas formas extremas de organização econômica das relações humanas, o turbo capitalismo e o comunismo, uma por excesso de liberdade, outra por excesso de proibições, levaram os países que escolheram tais regimes a sérias crises. Embora o filósofo Sartre tenha afirmado que o homem é livre para fazer suas escolhas, este tem se mostrado tentado a fazer escolhas pelos extremos. O provérbio romano diz que a virtude está no meio. Talvez a melhor forma de se atentar para este conselho seja a de se buscar uma combinação entre pilares do capitalismo, como a livre iniciativa, e do socialismo, como a presença do Estado no papel de agente regulador e controlador, um freio à ganância. Se o Estado extrapola as suas funções, a questão não é o Estado, ele não é o problema, como dizia o presidente Ronald Reagan, arauto e apóstolo mor do neoliberalismo, mas, sim, o ser humano. Não é proibindo a intervenção do Estado sobre a economia que se atingirá a melhor organização social possível. A intervenção do Estado é necessária, sim. Na sua ausência, implanta-se o caos nos mercados, que só retomam a sua caracteristicamente precária situação de equilíbrio justamente pela ação estatal anteriormente repudiada.

José Antonio de Carvalho e Silva
Setembro/2015


Um comentário:

  1. Este é realmente um de seus melhores textos. O equilíbrio e o bom senso devem de fato regular a existência humana. A civilização clama por alguma lei que regule a barbárie para que a liberdade individual e a vida coletiva possam existir em harmonia. Muito obrigada pela reflexão, amigo. Andreia Maraglia

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