Ninguém mais escuta nada
Por longos anos trabalhamos em
uma mesma empresa e, grandes amigos, almoçávamos juntos com muita regularidade.
Esses encontros se espaçaram quando mudamos para diferentes empregos. Mas, era
sempre um prazer reencontrar o Eurico em uma mesa de restaurante. Ele chegou
antes de mim, lá estava sentado, parecia alegre, descontraído. Ao aproximar-me,
constatei, bastante surpreso, que ele sorvia, de um copo guarnecido com pedras
de gelo e rodelas de limão, um refrigerante que logo identifiquei pela garrafa
vazia sobre a mesa: Água Tônica. Bastante surpreso, pois sabia do horror que o
amigo devotava a tal bebida, perguntei, antes mesmo de saudá-lo: “Eurico, você,
bebendo Água Tônica, e com gelo e limão?” – Com um olhar diabólico respondeu-me:
“Lembra-se, sempre que eu, no restaurante, pedia Mirinda ou Sukyta e nunca
tinha? E que então eu pedia Coca Cola, sem gelo e limão no copo, e não
adiantava nada? E que eu ficava muito brabo? Porque eu detesto gelo e limão no
refrigerante? Lembra?” – é claro que eu jamais esqueceria os verdadeiros
ataques que o meu amigo dava com os garçons, tendo mesmo chegado a derramar
todo o conteúdo de um copo no chão do restaurante. Mas, não esperou a minha
resposta. Continuou, o olho rútilo: “Pois é. Como não tem mesmo jeito, o
refrigerante virá sempre com gelo e limão, eu agora peço Água Cômica, que é um refrigerante tão ruim que nem gelo e limão
vai fazê-lo pior”. E terminou, agora relaxado, tamborilando os dedos sobre a
mesa: “Então, eu agora só bebo Água
Cômica.” ― em tempo: o meu pedido de água mineral sem gás foi, naturalmente atendido com uma água mineral com gás. E, ao sacar o cartão para pagar
a conta informei claramente ao garçom: crédito. Ele, como um autômato, me
perguntou: débito ou crédito?
Iniciei esta crônica relatando
um divertido episódio para falar de um fenômeno pós moderno em nossa sociedade:
Ninguém mais escuta nada. Poderíamos
citar um sem número de casos no dia a dia de completa falta de escuta em nossa
comunicação presencial ou através dos meios fornecidos pela técnica ― telefone,
internet (especialmente pelas redes sociais, onde frequentemente se responde a
uma postagem de forma atravessada, sem qualquer reflexão), etc. Ficaremos numa
situação montada a partir de uma ligação de um cliente para o tele atendimento
de uma operadora, e inspirada na fábula política de George Orwell, A Revolução
dos Bichos, que assim termina:
“As criaturas de fora [da
sala] olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um
porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem,
quem era porco.” (os porcos haviam assumido os vícios dos humanos a quem haviam
expulsado da fazenda). Transpondo para a pós modernidade:
“Se o seu problema é isto,
disque 1; se é isso, disque 2; se é aquilo, disque 3, se é mais aquilo, disque
4; se é... disque 7; para repetir o menu de opções, disque 8; se quiser falar
com um de nossos operadores, disque 9”. Continua a voz gravada: “Um momento,
que estaremos transferindo sua ligação". ― ouve-se uma musiquinha.
Novamente a gravação: “No momento, todos os nossos operadores estão ocupados.
Tente mais tarde.” A ligação cai. Nova tentativa: “Se o seu problema...”. ―
cai, outra vez. Mais uma tentativa, escuta-se o menu eletronicamente fornecido.
Atende, finalmente, uma voz humana, ao vivo: “SENHOR, em que posso ajudá-lo”? ―
o cliente explica claramente o seu problema. A atendente não escuta. O demandante repete uma, duas, três vezes, e a
atendente: “SENHOR..., SENHOR..., SENHOR...” ― ela não se conecta com a
pergunta. “Já expliquei três vezes qual é o meu problema” ― se enfurece o
suplicante. “SENHOR, um momento que estaremos transferindo a sua ligação para
outra atendente”. ― a outra atendente: “Um momento que estaremos verificando a
sua reclamação”. “SENHOR, o seu problema somente poderá estar sendo tratado
pelo nosso site.” “Mas eu já entrei no site, e lá está dito que esse problema
só pode ser atendido pela Central de Atendimento.” ― “SENHOR, um momento que
estaremos gerundizando o protocolo de
sua reclamação.” ― uma espera. “Queira estar anotando o número do seu
protocolo: 6666666666; a Operadora Demoníaca agradece a sua ligação e lhe
deseja uma boa tarde.” ― ligação encerrada. Ao ter sido passado do atendimento
automático para a voz humana, da voz humana para a máquina, da máquina outra
vez para a voz humana, para o suplicante já era impossível distinguir quem era
homem, quem era máquina. Era a Revolução das Máquinas. Ninguém mais escuta nada.
Assim terminava a crônica que
escrevi há alguns anos, e postada no blog cujo conteúdo inadvertidamente foi
inteiramente deletado. A parte relativa à paródia do livro de George Orwell, “A
revolução dos bichos”, já foi postada isoladamente no blog em fase de reconstituição
sob o nome de “A revolução das máquinas”. Quando escrevi a crônica original, a
febre do uso do WhatsApp ainda estava em fase de conquistar corações e mentes
dos aficionados na comunicação digital. Hoje, esse aplicativo nos telefones celulares
já de longe supera todos os demais instalados num aparelho originariamente
concebido para ser usado como telefone. No frenético batucar dos dedos sobre
teclas, andando nas ruas, ao volante dos automóveis, nas salas de cinema e de
shows, em qualquer lugar, o que se pode esperar em termos de uma comunicação
clara entre os interlocutores? Frequentemente, estática na “escuta” das
mensagens.
Retornando ao mundo da
comunicação presencial, descrevo uma situação pela qual passei há alguns dias
para mais uma ilustração do meu ponto. Necessitando comprar um novo carregador para
o meu notebook – o meu deixara de carregar a bateria - procurei em duas lojas
de artigos de informática por um de fabricação DELL. Não havia o modelo que eu
buscava, em ambas estava para chegar, ao preço de R$ 90,00 na primeira das
lojas e a R$ 99,00 na segunda. Tentando resolver logo o problema, fui a uma
terceira loja, onde igualmente não havia carregador DELL, pelo que me foi
oferecido pelo atendente (proprietário?) um genérico, que se adaptaria a
qualquer tipo de notebook. À minha observação de desconfiança na qualidade do
equipamento ao constatar que era produto chinês de marca desconhecida, ele
respondeu enfaticamente: “Tudo hoje
é fabricado na China.” ― ao que retruquei: “Eu sei, quase tudo é fabricado na China, mas qual a garantia de qualidade
quando a marca é uma Xing-Ling qualquer?” – “A Microsoft fabrica tudo na China,
insistiu ele.” – E eu, novamente: “Eu sei, a China tem tecnologia para mandar o
homem à lua, estão extremamente desenvolvidos, não vão relaxar na qualidade
quando fabricam para a Microsoft, para a própria DELL ou para qualquer outra
marca internacionalmente respeitada, o problema é quando não estão comprometidos,
quando apenas querem conquistar mercados, como o Japão fez nas décadas de 60 e
70 do século passado”. Achei que colocara com clareza o meu ponto. Qual nada,
ele contra-atacou na mesma linha: “A Philips fabrica tudo na China.” – Eu, já irritado, respondi que ele não escutava nada, decidi examinar
o genérico, e aí me dei conta de que ainda não perguntara o preço. “R$ 78,00” ―
respondeu. Disse-lhe que a esse preço eu preferiria comprar um DELL, não me
importando se fabricado na China, por R$ 90,00, ao que ele reagiu com um
sorriso irônico dizendo que seria impossível comprar um DELL por R$ 90,00. Saí
imediatamente da loja agradecendo, agora na minha vez de ser sarcástico, a
gentileza com que ele tratava seus clientes.
Para terminar, fui a uma
quarta loja onde o mesmo genérico me foi ofertado, e por apenas R$ 60,00. Manifestei
novamente desconfiança quanto à qualidade do equipamento. Comprei, com a
condição prontamente aceita, de que, caso não funcionasse, eu o trocaria por
algum outro artigo. Cheguei em casa e logo conectei o carregador. Mensagem:
“Conectado, mas não carregando.” Minhas suspeitas se confirmaram. Devolvi o
genérico e troquei por um cartucho de tinta. Assim, como toda regra tem
exceção, esse comerciante não só escutara o que eu dissera como cumpriu o
acordado.
Vou comprar um DELL, muito
provavelmente fabricado na China, certo de sua qualidade.
Outubro/2017
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