terça-feira, 17 de outubro de 2017

Ninguém mais escuta nada

Ninguém mais escuta nada

Por longos anos trabalhamos em uma mesma empresa e, grandes amigos, almoçávamos juntos com muita regularidade. Esses encontros se espaçaram quando mudamos para diferentes empregos. Mas, era sempre um prazer reencontrar o Eurico em uma mesa de restaurante. Ele chegou antes de mim, lá estava sentado, parecia alegre, descontraído. Ao aproximar-me, constatei, bastante surpreso, que ele sorvia, de um copo guarnecido com pedras de gelo e rodelas de limão, um refrigerante que logo identifiquei pela garrafa vazia sobre a mesa: Água Tônica. Bastante surpreso, pois sabia do horror que o amigo devotava a tal bebida, perguntei, antes mesmo de saudá-lo: “Eurico, você, bebendo Água Tônica, e com gelo e limão?” – Com um olhar diabólico respondeu-me: “Lembra-se, sempre que eu, no restaurante, pedia Mirinda ou Sukyta e nunca tinha? E que então eu pedia Coca Cola, sem gelo e limão no copo, e não adiantava nada? E que eu ficava muito brabo? Porque eu detesto gelo e limão no refrigerante? Lembra?” – é claro que eu jamais esqueceria os verdadeiros ataques que o meu amigo dava com os garçons, tendo mesmo chegado a derramar todo o conteúdo de um copo no chão do restaurante. Mas, não esperou a minha resposta. Continuou, o olho rútilo: “Pois é. Como não tem mesmo jeito, o refrigerante virá sempre com gelo e limão, eu agora peço Água Cômica, que é um refrigerante tão ruim que nem gelo e limão vai fazê-lo pior”. E terminou, agora relaxado, tamborilando os dedos sobre a mesa: “Então, eu agora só bebo Água Cômica.” ― em tempo: o meu pedido de água mineral sem gás foi, naturalmente atendido com uma água mineral com gás. E, ao sacar o cartão para pagar a conta informei claramente ao garçom: crédito. Ele, como um autômato, me perguntou: débito ou crédito?
Iniciei esta crônica relatando um divertido episódio para falar de um fenômeno pós moderno em nossa sociedade: Ninguém mais escuta nada. Poderíamos citar um sem número de casos no dia a dia de completa falta de escuta em nossa comunicação presencial ou através dos meios fornecidos pela técnica ― telefone, internet (especialmente pelas redes sociais, onde frequentemente se responde a uma postagem de forma atravessada, sem qualquer reflexão), etc. Ficaremos numa situação montada a partir de uma ligação de um cliente para o tele atendimento de uma operadora, e inspirada na fábula política de George Orwell, A Revolução dos Bichos, que assim termina:
“As criaturas de fora [da sala] olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco.” (os porcos haviam assumido os vícios dos humanos a quem haviam expulsado da fazenda). Transpondo para a pós modernidade:
“Se o seu problema é isto, disque 1; se é isso, disque 2; se é aquilo, disque 3, se é mais aquilo, disque 4; se é... disque 7; para repetir o menu de opções, disque 8; se quiser falar com um de nossos operadores, disque 9”. Continua a voz gravada: “Um momento, que estaremos transferindo sua ligação". ― ouve-se uma musiquinha. Novamente a gravação: “No momento, todos os nossos operadores estão ocupados. Tente mais tarde.” A ligação cai. Nova tentativa: “Se o seu problema...”. ― cai, outra vez. Mais uma tentativa, escuta-se o menu eletronicamente fornecido. Atende, finalmente, uma voz humana, ao vivo: “SENHOR, em que posso ajudá-lo”? ― o cliente explica claramente o seu problema. A atendente não escuta. O demandante repete uma, duas, três vezes, e a atendente: “SENHOR..., SENHOR..., SENHOR...” ― ela não se conecta com a pergunta. “Já expliquei três vezes qual é o meu problema” ― se enfurece o suplicante. “SENHOR, um momento que estaremos transferindo a sua ligação para outra atendente”. ― a outra atendente: “Um momento que estaremos verificando a sua reclamação”. “SENHOR, o seu problema somente poderá estar sendo tratado pelo nosso site.” “Mas eu já entrei no site, e lá está dito que esse problema só pode ser atendido pela Central de Atendimento.” ― “SENHOR, um momento que estaremos gerundizando o protocolo de sua reclamação.” ― uma espera. “Queira estar anotando o número do seu protocolo: 6666666666; a Operadora Demoníaca agradece a sua ligação e lhe deseja uma boa tarde.” ― ligação encerrada. Ao ter sido passado do atendimento automático para a voz humana, da voz humana para a máquina, da máquina outra vez para a voz humana, para o suplicante já era impossível distinguir quem era homem, quem era máquina. Era a Revolução das Máquinas. Ninguém mais escuta nada.
Assim terminava a crônica que escrevi há alguns anos, e postada no blog cujo conteúdo inadvertidamente foi inteiramente deletado. A parte relativa à paródia do livro de George Orwell, “A revolução dos bichos”, já foi postada isoladamente no blog em fase de reconstituição sob o nome de “A revolução das máquinas”. Quando escrevi a crônica original, a febre do uso do WhatsApp ainda estava em fase de conquistar corações e mentes dos aficionados na comunicação digital. Hoje, esse aplicativo nos telefones celulares já de longe supera todos os demais instalados num aparelho originariamente concebido para ser usado como telefone. No frenético batucar dos dedos sobre teclas, andando nas ruas, ao volante dos automóveis, nas salas de cinema e de shows, em qualquer lugar, o que se pode esperar em termos de uma comunicação clara entre os interlocutores? Frequentemente, estática na “escuta” das mensagens.
Retornando ao mundo da comunicação presencial, descrevo uma situação pela qual passei há alguns dias para mais uma ilustração do meu ponto. Necessitando comprar um novo carregador para o meu notebook – o meu deixara de carregar a bateria - procurei em duas lojas de artigos de informática por um de fabricação DELL. Não havia o modelo que eu buscava, em ambas estava para chegar, ao preço de R$ 90,00 na primeira das lojas e a R$ 99,00 na segunda. Tentando resolver logo o problema, fui a uma terceira loja, onde igualmente não havia carregador DELL, pelo que me foi oferecido pelo atendente (proprietário?) um genérico, que se adaptaria a qualquer tipo de notebook. À minha observação de desconfiança na qualidade do equipamento ao constatar que era produto chinês de marca desconhecida, ele respondeu enfaticamente: “Tudo hoje é fabricado na China.” ― ao que retruquei: “Eu sei, quase tudo é fabricado na China, mas qual a garantia de qualidade quando a marca é uma Xing-Ling qualquer?” – “A Microsoft fabrica tudo na China, insistiu ele.” – E eu, novamente: “Eu sei, a China tem tecnologia para mandar o homem à lua, estão extremamente desenvolvidos, não vão relaxar na qualidade quando fabricam para a Microsoft, para a própria DELL ou para qualquer outra marca internacionalmente respeitada, o problema é quando não estão comprometidos, quando apenas querem conquistar mercados, como o Japão fez nas décadas de 60 e 70 do século passado”. Achei que colocara com clareza o meu ponto. Qual nada, ele contra-atacou na mesma linha: “A Philips fabrica tudo na China.” – Eu, já irritado, respondi que ele não escutava nada, decidi examinar o genérico, e aí me dei conta de que ainda não perguntara o preço. “R$ 78,00” ― respondeu. Disse-lhe que a esse preço eu preferiria comprar um DELL, não me importando se fabricado na China, por R$ 90,00, ao que ele reagiu com um sorriso irônico dizendo que seria impossível comprar um DELL por R$ 90,00. Saí imediatamente da loja agradecendo, agora na minha vez de ser sarcástico, a gentileza com que ele tratava seus clientes.
Para terminar, fui a uma quarta loja onde o mesmo genérico me foi ofertado, e por apenas R$ 60,00. Manifestei novamente desconfiança quanto à qualidade do equipamento. Comprei, com a condição prontamente aceita, de que, caso não funcionasse, eu o trocaria por algum outro artigo. Cheguei em casa e logo conectei o carregador. Mensagem: “Conectado, mas não carregando.” Minhas suspeitas se confirmaram. Devolvi o genérico e troquei por um cartucho de tinta. Assim, como toda regra tem exceção, esse comerciante não só escutara o que eu dissera como cumpriu o acordado.
Vou comprar um DELL, muito provavelmente fabricado na China, certo de sua qualidade.


Outubro/2017

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