Um
homem desarmado
Ladrões
de bicicleta
―
Qual é, tá querendo morrer? ― o homem de olhos frios apontava um revolver para
Felício, que, montado em sua bicicleta, passeando despreocupadamente em uma
bastante movimentada ciclovia da cidade, acabara de fazer menção de dar um soco
num vulto que se postara à sua frente, barrando seu movimento. Felício sempre tivera um discurso de que
jamais reagiria a um assalto, principalmente se envolvesse apenas bens
materiais. Sua vida valia mais do que isso, a razão lhe dizia. Não era a
primeira vez que era vítima de assalto. Em duas outras ocasiões muito
semelhantes, dirigindo seu carro por movimentadas vias da cidade, vira,
surgindo do nada, um pivete vestindo um casaco estufado, possivelmente pelo
cano de uma arma, posicionar-se ao lado de sua porta. ― Passa pra cá o
dinheiro, rápido, se, não, vou te estourar. ― ele não pagara para ver. Entregara
aos assaltantes algumas cédulas de pequeno valor e com isso se safara incólume.
Mas, dessa feita agira diferente. Ao pedalar de cabeça baixa, subitamente
intuiu que aquela figura que assomava à sua frente era a de um assaltante. Foi
então que armou o soco, sem perceber que havia um segundo bandido que o encarava
com gélida frieza. Após uns instantes em que Felício quedou-se sem reação, o
bandido de olhos frios começou a sacudir sua bicicleta: ― Sai! ― ordenou.
Despertando de seu torpor, Felício lentamente apeou. Logo os meliantes tomaram
a bicicleta e se foram, lenta e despreocupadamente, um deles pedalando e o
outro seguindo na garupa. Aquela humilhação de ver os bandidos tranquilamente
praticarem um assalto à vista de tantos, de vê-los montados em sua bicicleta
enquanto ele regressava a pé à sua residência, deixou um travo amargo em
Felício. Durante algum tempo a figura do homem de olhos frios surgiria em sua
mente e ele fantasiava um dia reencontrá-lo e lhe dar uma paulada.
O
desarmamento
A
campanha pelo desarmamento gerou amplos debates na sociedade, com acaloradas
discussões entre as pessoas favoráveis e as contrárias às medidas. Basicamente,
uma parte da população atentava para as alarmantes estatísticas de crimes
cometidos pelo uso de armas de fogo. Julgava que o recolhimento dessas armas
pelos cidadãos contribuiria imensamente para a redução da violência. Em pólo
oposto achavam-se aqueles que acreditavam que tal medida resultaria tão somente
em deixar desarmados os homens de bem, pois os bandidos jamais se deram o
trabalho de adquirir legalmente os seus mortíferos artefatos e, muito menos, os
entregariam mediante um modesto ressarcimento monetário pelo governo. Dentre os
que assim pensavam estava Felício, possuidor de um revólver de baixo calibre,
de fabricação nacional, há muitos anos comprado e registrado dentro dos
parâmetros legais então vigentes. O revolver ficava guardado em sua residência;
ele jamais o levaria em seu carro, pois não se arriscaria a perder o controle caso
sofresse algum tipo de agressão mais grave num trânsito progressivamente violento.
E, em casa, Felício tinha plena consciência de suas limitações como atirador e
da vantagem que normalmente um invasor tem sobre suas vítimas. Ele somente
reagiria se tivesse uma chance concreta de ser bem-sucedido, ou, na infeliz constatação
de que seria vítima de brutalidade ainda que sem esboçar qualquer reação.
Mas
a campanha do desarmamento era bastante intimidadora. Toda e qualquer arma, não
importando se registrada ou não dentro de trâmites legais que vieram a ser
declarados sem validade, deveria ser obrigatoriamente entregue ou recadastrada
junto à Polícia Federal até uma determinada data. Quem não o fizesse, e fosse
descoberto portando, transportando, ou simplesmente guardando uma arma em sua
residência, seria considerado um criminoso, sujeito a severas punições. Na
entrega da arma, que seria destruída, regia a normativa, o governo generosamente
se comprometia a indenizar o proprietário de acordo com uma tabela de modestos valores
fixada consoante o tipo de armamento. Em que prazo? Esse não estava fixado,
dependia do processamento, era a
informação prestada a todos. Esse processamento poderia levar muitos meses, até
anos.
Felício, que na realidade não gostava de
armas, pensava se devia, ou não, entregar a sua. Imaginava quão inútil era todo
aquele procedimento. Seu revolver não era nada comparado com o armamento pesado
– fuzis, pistolas automáticas, metralhadoras, bazucas, granadas etc. −
ostentado pelos poderosos traficantes entrincheirados nas favelas, onde a
polícia não ousava exercer o seu papel de defensora da lei e da ordem. Ela
somente lá comparecia representada por policiais desviantes, os milicianos, que
acobertavam e extorquiam traficantes. Até mesmo os bandidos avulsos que
infestavam a cidade portavam impunemente armas poderosas com as quais acuavam
os cidadãos. A escalada da criminalidade era uma gravíssima nódoa social, não
havendo consenso entre os diversos segmentos da sociedade quanto às suas causas
e, muito menos, quanto à maneira de enfrentá-la. “Bandido bom é bandido
morto" ― clamavam os defensores de soluções radicais, como os justiceiros.
“Pena de morte” ― pleiteavam outros que julgavam, não sem razão, excessivamente
brandas as penas aplicadas aos criminosos. “Redução da maioridade penal” ―
queriam aqueles já cansados de ver os bandidos de idade inferior a 16 anos, os
“dimenor”, praticarem crimes de gente grande e não poderem ser trancafiados
atrás das grades como criminosos que eram. “Prisão não ressocializa ninguém” ―
era o argumento dos críticos do infame sistema penal do país, e por isso
contrários ao encarceramento, especialmente dos “dimenor”. “Temos que cuidar da
educação” ― proclamavam aqueles que acreditavam haver uma sólida correlação
entre criminalidade e baixa escolaridade. “Ninguém é criminoso porque quer” ―
exageravam outros mais ao eximir completamente de responsabilidade o delinquente
da prática de seus atos.
Felício,
afinal, optou por recadastrar o seu perigoso instrumento. Cumpriu um cansativo
ritual, incluindo longos períodos passados em filas de espera formada por aqueles
que, como ele, perfilavam-se para recadastrar ou depositar suas armas junto aos
agentes policiais. Recebeu um certificado de registro cuja expiração de
validade se daria em três anos. Anotou cuidadosamente em sua agenda. Revalidar
o documento seria mera formalidade. Esqueceu o assunto.
Três
anos passam rápido. ― Felício, você já viu o que estão exigindo para renovar o
certificado da arma?
― Não, respondeu ele ao amigo que estava tomado
de grande fúria. ― Pois é. Complicaram tudo. Pensávamos que revalidar a licença
seria simples, pura burocracia. Não é, não! ― Tem que passar por um exame
psicotécnico feito por um psicólogo e por uma avaliação de proficiência no uso
de cada arma, a critério de um atirador profissional. E não pode ser com
qualquer psicólogo e atirador, não. Têm que estar cadastrados na Polícia Federal!
― o amigo continuava esbravejando: ― Eu tenho quatro armas, vou ter que pagar
por cada uma delas, além do psicotécnico. Caímos numa armadilha. Quando
recadastramos nossas armas, demos a eles os endereços onde elas estão. Se não
as devolvermos, ou as recadastrarmos de novo no prazo, eles irão lá buscá-las, seremos
automaticamente considerados criminosos. ― É demais. E onde vão parar essas
armas, quem pode garantir que serão todas destruídas?
Na
Delegacia
Dessa
vez, entre indignado e assustado, Felício decidiu que o melhor caminho seria
entregar a sua arma. Mas, simplesmente trafegar com um revólver pelas ruas em
direção a um posto policial já enquadraria seu proprietário como criminoso.
Seria necessária a prévia emissão pela internet de uma guia de transporte do
trabuco, de curtíssima validade, especificando o posto escolhido. E na guia não
poderia haver qualquer espécie de rasura, o que automaticamente a invalidaria. Saindo
direto de sua residência ele chegou ao local que fizera constar na guia e foi
logo encaminhado ao agente encarregado da recepção de armas de entrega
espontânea. O ambiente lhe desagradava, não se sentia confortável em qualquer
dependência policial. Mas, de qualquer forma, o atendente, o agente Aristeu,
iniciou os procedimentos afetando cordialidade. Recebeu o saco plástico das
mãos de Felício e dele retirou o perigoso artefato, juntamente com algumas
cápsulas de munição ainda dentro de sua embalagem original. Colocou as peças
sobre o balcão ao seu lado e passou a examinar os documentos que lhe foram
exibidos: a carteira de identidade do ainda proprietário da arma, o certificado
de registro em vias de caducar e a guia de transporte. Compulsando esses
documentos, Aristeu começou a teclar o seu computador. Muitos minutos se
passaram, o teclar prosseguia sem que Felício atentasse o porquê de tanta
informação precisar ser alimentada ao sistema. Todos os dados estavam na guia
de transporte e no certificado de registro, e esses dados estariam no sistema,
bastaria, acreditava ele, acessá-los mediante o fornecimento de algum identificador
básico do possuidor da arma, como o CPF, por exemplo. Mais tempo se passa, o
agente continua tamborilando o teclado, até que Felício, já desconfortável com
aquela situação, pergunta: ― Está havendo algum problema? ― Não, é que temos
que fazer uma pesquisa da arma ― explicou Aristeu. O que isso poderia
significar? ― preocupou-se Felício, que dentro de mais alguns minutos voltou a
perguntar: − E então? ― Está dando erro ― respondeu Aristeu, continuando o seu
teclar. Uma sensação de desamparo começou a se apossar de Felício. Ele sabia, alguma coisa certamente tinha que
dar errado. Olhou para o seu revolver colocado sobre o balcão e de súbito
sentiu que aquela coisa o ameaçava, exercia um poder maligno, ele tinha que
livrar-se logo dele de qualquer maneira. Ansiava pela emissão do comprovante de
entrega, por escapar daquele ambiente mefítico o mais rápido possível. Tec, tec, tec, continuava Aristeu em seu
eterno ofício. ― E agora? ― É, continua dando erro. Vou ter que reiniciar. O site
está com problema, proclamou Aristeu encarando Felício com uma expressão que a
este não agradou. De qualquer forma, pensou, a circunstância de um site estar
fora do ar poderia realmente ocorrer. Embora já invadido por uma espécie de
náusea, Felício decidiu dar mais um tempo, até que finalmente perguntou ao
agente se não seria o caso de desistir; ele retornaria outro dia. Aristeu então
se dispôs a fazer um contato telefônico com a sede, ou alguma central; não
especificou exatamente com quem falaria. Da conversa travada, Felício apenas
entreouviu “... horário comercial...”. Ah, então seria isso? Era um sábado, e
por essa razão não seria possível fazer a entrega da arma? Mas isso deveria
estar explícito na própria guia de transporte. E agora, este sábado era
justamente a data limite para a entrega conforme constava da guia. Felício estremeceu
diante da ideia de ter que retornar a sua casa com aquela coisa, rezando para
que nada lhe acontecesse no trajeto, voltar com ela para o escaninho de onde a
retirara e emitir outra guia para um novo transporte. Com esses pensamentos
perpassando a sua mente Felício pediu a Aristeu que desse fim ao procedimento.
Como quem não dá muita atenção, o agente continuou em seu computador até que um
já bastante deprimido Felício insistiu que não queria mais prosseguir. Aristeu,
tomando o revolver, disse que iria então falar com a “Autoridade”. Desapareceu
por trás de uma porta, retornando pouco tempo depois e acedeu em não mais
continuar com o processo. Mas ofereceu a Felício a opção de deixar a arma com
ele mediante um “recibo provisório”. Já bastante assustado, Felício não aceitou
essa oferta e, com uma sensação de urgência de sair daquele ambiente, recolocou
o revolver dentro do saco plástico, pegou a salvadora guia que lhe garantiria o
regresso a sua casa e retirou-se. Era o início de tarde de um sábado radioso, após
muitos dias de chuva, mas ele não tinha qualquer desejo de aproveitar aquela
dádiva.
De
volta à casa, ainda armado
Em
casa, Felício retornou a arma e a caixa de munição de onde as retirara e
deixou-se cair sobre a poltrona da sala. Não tinha ânimo para nada. Lentamente
foi sucumbindo às lembranças de tantos episódios em que se sentira esmagado pela
mão pesada da tortuosa burocracia e da justiça, pelos labirintos da lei. Logo ele,
que sempre perseguira a mais absoluta correção em suas ações. Por ironia do
destino, justamente por tentar ser honesto, muitas vezes acabara constatando
que honestidade em excesso pode fazer muito mal em um mundo de espertos. O
importante, ele agora reconhecia claramente, teria sido aprender a caminhar
entre os desvãos da lei. “Você quer fazer tudo muito certinho, se estressa
demais” –; “Você explica demais, acaba se ferrando” –; “Às vezes é melhor não
dizer toda a verdade, o importante é ser convincente” –; tais eram as coisas
que lhe diziam seus amigos. É, eles tinham razão. O importante não era a
verdade, mas, sim, montar uma
história que fosse verossímil. Não era assim que se procedia nos tribunais? Não
era sobre historias montadas pelos advogados de acusação e de defesa que o juiz
decidia? E, afinal, o que era a verdade? Mas Felício nunca conseguira ser
diferente. Ele vivia enredado nos problemas do cotidiano, especialmente na teia
da burocracia do Estado em todas as suas esferas, e da qual não conseguia se
desvencilhar. Chegou mesmo a cunhar um desanimado aforismo: “A vida é tentar,
em vão, resolver problemas”. Agora era tarde demais para mudar. Era um velho,
não tinha outra perspectiva senão a de levar com dignidade o que lhe restava de
vida. Ficou toda a tarde e o início da noite afundado no sofá até que, tomando
o controle remoto, ligou o aparelho de televisão. Do telejornal da noite
jorravam as notícias de sempre: corrupção, violência, descaso das autoridades,
impunidade, calamidades. Seus valores estavam em completa dissonância com o mundo
atual. Desligou o aparelho. Permaneceu em estagio letárgico até levantar-se ao
raiar do dia.
Novamente
em uma Delegacia
Levantou-se
naquela manhã de domingo, preparou seu café e o sorveu em lentos goles. Voltou
a sentar-se em sua poltrona, sem vontade para nada, novamente imerso em um
balanço de uma vida que lhe parecia equivocada. Mas, havia ainda algo de
concreto em sua náusea. Esse algo era a arma, lá escondida, um cadáver
insepulto a exalar sua pestilência. Era preciso se livrar dela o mais rápido
possível, sua presença o manteve insone durante toda a noite. Ao finalmente
levantar-se na manhã de segunda feira foi tomado pela urgência de dirigir-se o
mais rápido possível a outro posto de entrega de armas (não retornaria em
nenhuma hipótese ao anterior) para fazer o que não podia mais ser postergado.
Ligou o computador buscando o site para a necessária emissão da guia de
transporte. Recebeu a mensagem de que o site estava momentaneamente indisponível.
Desesperou-se. E se o site assim permanecesse até a data de expiração de seu
certificado provisório? Tentou mais algumas vezes, até que finalmente o site se
abriu. Freneticamente preencheu todos os dados, ligou a impressora e clicou:
imprimir. Nada. A mensagem era a de que o documento não podia ser impresso. Estremeceu.
Os policiais já estavam a caminho, invadiriam seu apartamento e o carregariam
para uma prisão inafiançável. Não, ele apenas delirava, era preciso manter a
calma. Após mais algumas tentativas frustradas, imaginou que o problema com a
impressora poderia ser pura e simplesmente falta de tinta no cartucho. Saiu de
casa e, com a impressão de estar sendo atentamente observado nas ruas,
dirigiu-se ao info-shopping mais próximo e comprou um novo cartucho. Instalou-o
na impressora, clicou novamente: imprimir. Dessa feita, o milagre ocorreu: lá
estava a guia impressa, sem qualquer rasura. Não havia tempo a perder. Revolver
e caixa de munição no saco plástico, a salvadora guia em mãos, Felício tomou um
taxi e dirigiu-se ao novo posto policial escolhido. Dessa feita, contrariando
suas expectativas, o ritual de emissão do certificado definitivo de entrega da
arma lhe foi fornecido pelo atendente, juntamente com um número de registro
que, juntamente com uma senha cadastrada por Felício naquele ato, lhe
permitiria, dentro de poucos dias, sacar diretamente de um caixa eletrônico de
um banco a indenização estabelecida pelo governo. À sua pergunta se já estava
tudo certo, se ele poderia ir embora, o policial lhe disse que sim, se houvesse
qualquer problema, eles tinham o seu telefone, o chamariam. “E por que haveriam de chamá-lo?” ― inquietou-se. Ainda não dava para relaxar completamente.
Um
homem desarmado
Naquela
noite Felício, deitado em sua cama, finalmente conseguiu pregar os olhos, começando
um sono intranqüilo. Subitamente escutou um barulho como que produzido por
alguém forçando a porta de entrada de seu apartamento, seguido de um discreto
estalido de arrombamento. Apurou os ouvidos e, em seguida, o que se ouviu foram
leves passos pelo corredor. Felício fez menção de buscar a sua arma em seu
esconderijo, mas ela não estava mais lá! Agora, mais que a presença, é a ausência
do revolver que o deixava desesperado. Coração descompassado, encharcado de
suor, Felício se contraiu em seu leito a espera do fim inexorável. Ainda escutou os passos por muito tempo a
ressoar em seu apartamento, até o retorno do silêncio. Ao levantar-se pela
manhã Felício foi, de súbito, acometido pela consciência de que algo terrível
ocorrera em sua casa. “Sim, é claro, sua casa fora assaltada.” Lembrou-se de
tudo. Correu à porta de entrada para verificar o a arrombamento. Não constatou
qualquer sinal de violação, ela estava intacta, assim como o trinco, a
fechadura e a corrente que a ligava ao portal. “Incrível” – pensou. Buscando
evidências da passagem do ladrão por sua casa, passou horas checando armários,
cômodas, revirando papeis. Nada encontrou que comprovasse a ocorrência de um
assalto.
Desespero
Mais
uma noite e novamente Felício escutou passos, dessa vez na varanda de seu
apartamento. Entreabriu os olhos e divisou sombras atrás da cortina que
recobria o vidro da porta divisória do quarto com a varanda. Eram vultos que o
espreitavam malignamente, ele sentiu. Novamente o suor, a náusea, mas logo se
deu conta de que precisava agir rápido antes que aqueles abutres se lançassem
sobre ele. Sacando rapidamente o revolver que guardava sob o travesseiro,
Felício removeu de um só golpe a cortina e atirou repetidas vezes através do
vidro contra os invasores, que tombaram ensanguentados. Olhou aqueles corpos e
sentiu um horror indizível diante do que acabara de fazer. Precisava se livrar
imediatamente daquela mortalha. Acordou com aquela vívida sensação, até
constatar que as divisórias de vidro estavam intactas, não havia nenhum corpo
na varanda, e se dar conta de que sua arma já fora entregue à polícia havia já vários
dias.
A
saidinha de banco
Bem
cedo pela manhã do primeiro dia a partir do qual poderia sacar a sua
indenização Felício dirigiu-se a um caixa automático do banco designado para
tal fim. Era o único cliente ali presente. Teclou cuidadosamente a longa série de
números do registro e em seguida a senha: duas notas saltaram da máquina. Olhou
para os lados, não havia ninguém, colocou-as na carteira e saiu do banco. Mas,
na calçada, houvera uma testemunha de seu ato:
―
Perdeu, mané! Perdeu! Passa pra cá a carteira se, não, eu te estouro aqui,
agora. ― Felício sentiu o sinistro cano de uma arma pressionando sua lombar, e
que sua vida estava inteiramente nas mãos daquele que o proclamava: “Mané!” ― qualquer
movimento errado, qualquer vacilação e ele teria sua coluna partida pelo tiro
do bandido. Ele era, sim, inequivocamente um mané, sempre fora um mané. Não
esboçou qualquer reação enquanto a mão nervosa do pivete se introduzia em seu
bolso e lhe surrupiava a carteira; mas, ainda assim, o dedo nervoso da mão que
empunhava o revolver apertou o gatilho e deu-se um disparo. Assustado, o pivete
fugiu em disparada, deixando cair a arma ao solo. Na rua, até então
praticamente deserta, logo começaram a surgir pessoas atraídas pelo ruído de um
tiro. – O que aconteceu? ― era a questão de todos. – Eu só sei que escutei um barulho
de tiro, vi uma pessoa correndo e este senhor caído no chão. Deve estar muito
ferido. – Olha só, um revolver! – disse uma terceira pessoa. – Não mexe nisso.
Vamos chamar a polícia e uma ambulância. Urgente!
Epílogo
Felício
dera muita sorte de escapar com vida. Surpreendentemente a ambulância atendeu
prontamente ao chamamento e o transportou ao hospital público mais próximo. O
tremor das mãos do atirador resultara em um desvio do cano da arma para fora de
sua coluna. O ferimento fora grave, mas uma cirurgia muito bem conduzida
afastara o risco de morte. Felício, um paciente não identificado, já despertara
da inconsciência da anestesia quando, na tela de um velho aparelho de televisão
situado na enfermaria do hospital, viu a conhecida face do locutor do
telejornal anunciar: “A polícia ainda não conseguiu identificar o assaltante
que baleou um idoso em mais um golpe conhecido como saidinha de banco. Mas já
tem uma pista: a numeração da arma do crime identifica que o nome do seu
proprietário é Felício Praxedes Antunes de Souza, que se encontra desaparecido.
A polícia está em seu encalço, e há expectativa de que ele será encontrado
dentro de 24 horas”. Numa só pessoa, Felício era, ao mesmo tempo, a vítima e o
agressor da vítima.
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