sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Um homem desarmado


Um homem desarmado

Ladrões de bicicleta

― Qual é, tá querendo morrer? ― o homem de olhos frios apontava um revolver para Felício, que, montado em sua bicicleta, passeando despreocupadamente em uma bastante movimentada ciclovia da cidade, acabara de fazer menção de dar um soco num vulto que se postara à sua frente, barrando seu movimento.  Felício sempre tivera um discurso de que jamais reagiria a um assalto, principalmente se envolvesse apenas bens materiais. Sua vida valia mais do que isso, a razão lhe dizia. Não era a primeira vez que era vítima de assalto. Em duas outras ocasiões muito semelhantes, dirigindo seu carro por movimentadas vias da cidade, vira, surgindo do nada, um pivete vestindo um casaco estufado, possivelmente pelo cano de uma arma, posicionar-se ao lado de sua porta. ― Passa pra cá o dinheiro, rápido, se, não, vou te estourar. ― ele não pagara para ver. Entregara aos assaltantes algumas cédulas de pequeno valor e com isso se safara incólume. Mas, dessa feita agira diferente. Ao pedalar de cabeça baixa, subitamente intuiu que aquela figura que assomava à sua frente era a de um assaltante. Foi então que armou o soco, sem perceber que havia um segundo bandido que o encarava com gélida frieza. Após uns instantes em que Felício quedou-se sem reação, o bandido de olhos frios começou a sacudir sua bicicleta: ― Sai! ― ordenou. Despertando de seu torpor, Felício lentamente apeou. Logo os meliantes tomaram a bicicleta e se foram, lenta e despreocupadamente, um deles pedalando e o outro seguindo na garupa. Aquela humilhação de ver os bandidos tranquilamente praticarem um assalto à vista de tantos, de vê-los montados em sua bicicleta enquanto ele regressava a pé à sua residência, deixou um travo amargo em Felício. Durante algum tempo a figura do homem de olhos frios surgiria em sua mente e ele fantasiava um dia reencontrá-lo e lhe dar uma paulada.

O desarmamento

A campanha pelo desarmamento gerou amplos debates na sociedade, com acaloradas discussões entre as pessoas favoráveis e as contrárias às medidas. Basicamente, uma parte da população atentava para as alarmantes estatísticas de crimes cometidos pelo uso de armas de fogo. Julgava que o recolhimento dessas armas pelos cidadãos contribuiria imensamente para a redução da violência. Em pólo oposto achavam-se aqueles que acreditavam que tal medida resultaria tão somente em deixar desarmados os homens de bem, pois os bandidos jamais se deram o trabalho de adquirir legalmente os seus mortíferos artefatos e, muito menos, os entregariam mediante um modesto ressarcimento monetário pelo governo. Dentre os que assim pensavam estava Felício, possuidor de um revólver de baixo calibre, de fabricação nacional, há muitos anos comprado e registrado dentro dos parâmetros legais então vigentes. O revolver ficava guardado em sua residência; ele jamais o levaria em seu carro, pois não se arriscaria a perder o controle caso sofresse algum tipo de agressão mais grave num trânsito progressivamente violento. E, em casa, Felício tinha plena consciência de suas limitações como atirador e da vantagem que normalmente um invasor tem sobre suas vítimas. Ele somente reagiria se tivesse uma chance concreta de ser bem-sucedido, ou, na infeliz constatação de que seria vítima de brutalidade ainda que sem esboçar qualquer reação.
Mas a campanha do desarmamento era bastante intimidadora. Toda e qualquer arma, não importando se registrada ou não dentro de trâmites legais que vieram a ser declarados sem validade, deveria ser obrigatoriamente entregue ou recadastrada junto à Polícia Federal até uma determinada data. Quem não o fizesse, e fosse descoberto portando, transportando, ou simplesmente guardando uma arma em sua residência, seria considerado um criminoso, sujeito a severas punições. Na entrega da arma, que seria destruída, regia a normativa, o governo generosamente se comprometia a indenizar o proprietário de acordo com uma tabela de modestos valores fixada consoante o tipo de armamento. Em que prazo? Esse não estava fixado, dependia do processamento, era a informação prestada a todos. Esse processamento poderia levar muitos meses, até anos.
 Felício, que na realidade não gostava de armas, pensava se devia, ou não, entregar a sua. Imaginava quão inútil era todo aquele procedimento. Seu revolver não era nada comparado com o armamento pesado – fuzis, pistolas automáticas, metralhadoras, bazucas, granadas etc. − ostentado pelos poderosos traficantes entrincheirados nas favelas, onde a polícia não ousava exercer o seu papel de defensora da lei e da ordem. Ela somente lá comparecia representada por policiais desviantes, os milicianos, que acobertavam e extorquiam traficantes. Até mesmo os bandidos avulsos que infestavam a cidade portavam impunemente armas poderosas com as quais acuavam os cidadãos. A escalada da criminalidade era uma gravíssima nódoa social, não havendo consenso entre os diversos segmentos da sociedade quanto às suas causas e, muito menos, quanto à maneira de enfrentá-la. “Bandido bom é bandido morto" ― clamavam os defensores de soluções radicais, como os justiceiros. “Pena de morte” ― pleiteavam outros que julgavam, não sem razão, excessivamente brandas as penas aplicadas aos criminosos. “Redução da maioridade penal” ― queriam aqueles já cansados de ver os bandidos de idade inferior a 16 anos, os “dimenor”, praticarem crimes de gente grande e não poderem ser trancafiados atrás das grades como criminosos que eram. “Prisão não ressocializa ninguém” ― era o argumento dos críticos do infame sistema penal do país, e por isso contrários ao encarceramento, especialmente dos “dimenor”. “Temos que cuidar da educação” ― proclamavam aqueles que acreditavam haver uma sólida correlação entre criminalidade e baixa escolaridade. “Ninguém é criminoso porque quer” ― exageravam outros mais ao eximir completamente de responsabilidade o delinquente da prática de seus atos.
Felício, afinal, optou por recadastrar o seu perigoso instrumento. Cumpriu um cansativo ritual, incluindo longos períodos passados em filas de espera formada por aqueles que, como ele, perfilavam-se para recadastrar ou depositar suas armas junto aos agentes policiais. Recebeu um certificado de registro cuja expiração de validade se daria em três anos. Anotou cuidadosamente em sua agenda. Revalidar o documento seria mera formalidade. Esqueceu o assunto.
Três anos passam rápido. ― Felício, você já viu o que estão exigindo para renovar o certificado da arma?
 ― Não, respondeu ele ao amigo que estava tomado de grande fúria. ― Pois é. Complicaram tudo. Pensávamos que revalidar a licença seria simples, pura burocracia. Não é, não! ― Tem que passar por um exame psicotécnico feito por um psicólogo e por uma avaliação de proficiência no uso de cada arma, a critério de um atirador profissional. E não pode ser com qualquer psicólogo e atirador, não. Têm que estar cadastrados na Polícia Federal! ― o amigo continuava esbravejando: ― Eu tenho quatro armas, vou ter que pagar por cada uma delas, além do psicotécnico. Caímos numa armadilha. Quando recadastramos nossas armas, demos a eles os endereços onde elas estão. Se não as devolvermos, ou as recadastrarmos de novo no prazo, eles irão lá buscá-las, seremos automaticamente considerados criminosos. ― É demais. E onde vão parar essas armas, quem pode garantir que serão todas destruídas?

Na Delegacia

Dessa vez, entre indignado e assustado, Felício decidiu que o melhor caminho seria entregar a sua arma. Mas, simplesmente trafegar com um revólver pelas ruas em direção a um posto policial já enquadraria seu proprietário como criminoso. Seria necessária a prévia emissão pela internet de uma guia de transporte do trabuco, de curtíssima validade, especificando o posto escolhido. E na guia não poderia haver qualquer espécie de rasura, o que automaticamente a invalidaria. Saindo direto de sua residência ele chegou ao local que fizera constar na guia e foi logo encaminhado ao agente encarregado da recepção de armas de entrega espontânea. O ambiente lhe desagradava, não se sentia confortável em qualquer dependência policial. Mas, de qualquer forma, o atendente, o agente Aristeu, iniciou os procedimentos afetando cordialidade. Recebeu o saco plástico das mãos de Felício e dele retirou o perigoso artefato, juntamente com algumas cápsulas de munição ainda dentro de sua embalagem original. Colocou as peças sobre o balcão ao seu lado e passou a examinar os documentos que lhe foram exibidos: a carteira de identidade do ainda proprietário da arma, o certificado de registro em vias de caducar e a guia de transporte. Compulsando esses documentos, Aristeu começou a teclar o seu computador. Muitos minutos se passaram, o teclar prosseguia sem que Felício atentasse o porquê de tanta informação precisar ser alimentada ao sistema. Todos os dados estavam na guia de transporte e no certificado de registro, e esses dados estariam no sistema, bastaria, acreditava ele, acessá-los mediante o fornecimento de algum identificador básico do possuidor da arma, como o CPF, por exemplo. Mais tempo se passa, o agente continua tamborilando o teclado, até que Felício, já desconfortável com aquela situação, pergunta: ― Está havendo algum problema? ― Não, é que temos que fazer uma pesquisa da arma ― explicou Aristeu. O que isso poderia significar? ― preocupou-se Felício, que dentro de mais alguns minutos voltou a perguntar: − E então? ― Está dando erro ― respondeu Aristeu, continuando o seu teclar. Uma sensação de desamparo começou a se apossar de Felício. Ele sabia, alguma coisa certamente tinha que dar errado. Olhou para o seu revolver colocado sobre o balcão e de súbito sentiu que aquela coisa o ameaçava, exercia um poder maligno, ele tinha que livrar-se logo dele de qualquer maneira. Ansiava pela emissão do comprovante de entrega, por escapar daquele ambiente mefítico o mais rápido possível.  Tec, tec, tec, continuava Aristeu em seu eterno ofício. ― E agora? ― É, continua dando erro. Vou ter que reiniciar. O site está com problema, proclamou Aristeu encarando Felício com uma expressão que a este não agradou. De qualquer forma, pensou, a circunstância de um site estar fora do ar poderia realmente ocorrer. Embora já invadido por uma espécie de náusea, Felício decidiu dar mais um tempo, até que finalmente perguntou ao agente se não seria o caso de desistir; ele retornaria outro dia. Aristeu então se dispôs a fazer um contato telefônico com a sede, ou alguma central; não especificou exatamente com quem falaria. Da conversa travada, Felício apenas entreouviu “... horário comercial...”. Ah, então seria isso? Era um sábado, e por essa razão não seria possível fazer a entrega da arma? Mas isso deveria estar explícito na própria guia de transporte. E agora, este sábado era justamente a data limite para a entrega conforme constava da guia. Felício estremeceu diante da ideia de ter que retornar a sua casa com aquela coisa, rezando para que nada lhe acontecesse no trajeto, voltar com ela para o escaninho de onde a retirara e emitir outra guia para um novo transporte. Com esses pensamentos perpassando a sua mente Felício pediu a Aristeu que desse fim ao procedimento. Como quem não dá muita atenção, o agente continuou em seu computador até que um já bastante deprimido Felício insistiu que não queria mais prosseguir. Aristeu, tomando o revolver, disse que iria então falar com a “Autoridade”. Desapareceu por trás de uma porta, retornando pouco tempo depois e acedeu em não mais continuar com o processo. Mas ofereceu a Felício a opção de deixar a arma com ele mediante um “recibo provisório”. Já bastante assustado, Felício não aceitou essa oferta e, com uma sensação de urgência de sair daquele ambiente, recolocou o revolver dentro do saco plástico, pegou a salvadora guia que lhe garantiria o regresso a sua casa e retirou-se. Era o início de tarde de um sábado radioso, após muitos dias de chuva, mas ele não tinha qualquer desejo de aproveitar aquela dádiva.


De volta à casa, ainda armado

Em casa, Felício retornou a arma e a caixa de munição de onde as retirara e deixou-se cair sobre a poltrona da sala. Não tinha ânimo para nada. Lentamente foi sucumbindo às lembranças de tantos episódios em que se sentira esmagado pela mão pesada da tortuosa burocracia e da justiça, pelos labirintos da lei. Logo ele, que sempre perseguira a mais absoluta correção em suas ações. Por ironia do destino, justamente por tentar ser honesto, muitas vezes acabara constatando que honestidade em excesso pode fazer muito mal em um mundo de espertos. O importante, ele agora reconhecia claramente, teria sido aprender a caminhar entre os desvãos da lei. “Você quer fazer tudo muito certinho, se estressa demais” –; “Você explica demais, acaba se ferrando” –; “Às vezes é melhor não dizer toda a verdade, o importante é ser convincente” –; tais eram as coisas que lhe diziam seus amigos. É, eles tinham razão. O importante não era a verdade, mas, sim, montar uma história que fosse verossímil. Não era assim que se procedia nos tribunais? Não era sobre historias montadas pelos advogados de acusação e de defesa que o juiz decidia? E, afinal, o que era a verdade? Mas Felício nunca conseguira ser diferente. Ele vivia enredado nos problemas do cotidiano, especialmente na teia da burocracia do Estado em todas as suas esferas, e da qual não conseguia se desvencilhar. Chegou mesmo a cunhar um desanimado aforismo: “A vida é tentar, em vão, resolver problemas”. Agora era tarde demais para mudar. Era um velho, não tinha outra perspectiva senão a de levar com dignidade o que lhe restava de vida. Ficou toda a tarde e o início da noite afundado no sofá até que, tomando o controle remoto, ligou o aparelho de televisão. Do telejornal da noite jorravam as notícias de sempre: corrupção, violência, descaso das autoridades, impunidade, calamidades. Seus valores estavam em completa dissonância com o mundo atual. Desligou o aparelho. Permaneceu em estagio letárgico até levantar-se ao raiar do dia.

Novamente em uma Delegacia

Levantou-se naquela manhã de domingo, preparou seu café e o sorveu em lentos goles. Voltou a sentar-se em sua poltrona, sem vontade para nada, novamente imerso em um balanço de uma vida que lhe parecia equivocada. Mas, havia ainda algo de concreto em sua náusea. Esse algo era a arma, lá escondida, um cadáver insepulto a exalar sua pestilência. Era preciso se livrar dela o mais rápido possível, sua presença o manteve insone durante toda a noite. Ao finalmente levantar-se na manhã de segunda feira foi tomado pela urgência de dirigir-se o mais rápido possível a outro posto de entrega de armas (não retornaria em nenhuma hipótese ao anterior) para fazer o que não podia mais ser postergado. Ligou o computador buscando o site para a necessária emissão da guia de transporte. Recebeu a mensagem de que o site estava momentaneamente indisponível. Desesperou-se. E se o site assim permanecesse até a data de expiração de seu certificado provisório? Tentou mais algumas vezes, até que finalmente o site se abriu. Freneticamente preencheu todos os dados, ligou a impressora e clicou: imprimir. Nada. A mensagem era a de que o documento não podia ser impresso. Estremeceu. Os policiais já estavam a caminho, invadiriam seu apartamento e o carregariam para uma prisão inafiançável. Não, ele apenas delirava, era preciso manter a calma. Após mais algumas tentativas frustradas, imaginou que o problema com a impressora poderia ser pura e simplesmente falta de tinta no cartucho. Saiu de casa e, com a impressão de estar sendo atentamente observado nas ruas, dirigiu-se ao info-shopping mais próximo e comprou um novo cartucho. Instalou-o na impressora, clicou novamente: imprimir. Dessa feita, o milagre ocorreu: lá estava a guia impressa, sem qualquer rasura. Não havia tempo a perder. Revolver e caixa de munição no saco plástico, a salvadora guia em mãos, Felício tomou um taxi e dirigiu-se ao novo posto policial escolhido. Dessa feita, contrariando suas expectativas, o ritual de emissão do certificado definitivo de entrega da arma lhe foi fornecido pelo atendente, juntamente com um número de registro que, juntamente com uma senha cadastrada por Felício naquele ato, lhe permitiria, dentro de poucos dias, sacar diretamente de um caixa eletrônico de um banco a indenização estabelecida pelo governo. À sua pergunta se já estava tudo certo, se ele poderia ir embora, o policial lhe disse que sim, se houvesse qualquer problema, eles tinham o seu telefone, o chamariam.   “E por que haveriam de chamá-lo?”  ― inquietou-se. Ainda não dava para relaxar completamente.
  

Um homem desarmado

Naquela noite Felício, deitado em sua cama, finalmente conseguiu pregar os olhos, começando um sono intranqüilo. Subitamente escutou um barulho como que produzido por alguém forçando a porta de entrada de seu apartamento, seguido de um discreto estalido de arrombamento. Apurou os ouvidos e, em seguida, o que se ouviu foram leves passos pelo corredor. Felício fez menção de buscar a sua arma em seu esconderijo, mas ela não estava mais lá! Agora, mais que a presença, é a ausência do revolver que o deixava desesperado. Coração descompassado, encharcado de suor, Felício se contraiu em seu leito a espera do fim inexorável.  Ainda escutou os passos por muito tempo a ressoar em seu apartamento, até o retorno do silêncio. Ao levantar-se pela manhã Felício foi, de súbito, acometido pela consciência de que algo terrível ocorrera em sua casa. “Sim, é claro, sua casa fora assaltada.” Lembrou-se de tudo. Correu à porta de entrada para verificar o a arrombamento. Não constatou qualquer sinal de violação, ela estava intacta, assim como o trinco, a fechadura e a corrente que a ligava ao portal. “Incrível” – pensou. Buscando evidências da passagem do ladrão por sua casa, passou horas checando armários, cômodas, revirando papeis. Nada encontrou que comprovasse a ocorrência de um assalto.

Desespero

Mais uma noite e novamente Felício escutou passos, dessa vez na varanda de seu apartamento. Entreabriu os olhos e divisou sombras atrás da cortina que recobria o vidro da porta divisória do quarto com a varanda. Eram vultos que o espreitavam malignamente, ele sentiu. Novamente o suor, a náusea, mas logo se deu conta de que precisava agir rápido antes que aqueles abutres se lançassem sobre ele. Sacando rapidamente o revolver que guardava sob o travesseiro, Felício removeu de um só golpe a cortina e atirou repetidas vezes através do vidro contra os invasores, que tombaram ensanguentados. Olhou aqueles corpos e sentiu um horror indizível diante do que acabara de fazer. Precisava se livrar imediatamente daquela mortalha. Acordou com aquela vívida sensação, até constatar que as divisórias de vidro estavam intactas, não havia nenhum corpo na varanda, e se dar conta de que sua arma já fora entregue à polícia havia já vários dias.

A saidinha de banco

Bem cedo pela manhã do primeiro dia a partir do qual poderia sacar a sua indenização Felício dirigiu-se a um caixa automático do banco designado para tal fim. Era o único cliente ali presente. Teclou cuidadosamente a longa série de números do registro e em seguida a senha: duas notas saltaram da máquina. Olhou para os lados, não havia ninguém, colocou-as na carteira e saiu do banco. Mas, na calçada, houvera uma testemunha de seu ato:
― Perdeu, mané! Perdeu! Passa pra cá a carteira se, não, eu te estouro aqui, agora. ― Felício sentiu o sinistro cano de uma arma pressionando sua lombar, e que sua vida estava inteiramente nas mãos daquele que o proclamava: “Mané!” ― qualquer movimento errado, qualquer vacilação e ele teria sua coluna partida pelo tiro do bandido. Ele era, sim, inequivocamente um mané, sempre fora um mané. Não esboçou qualquer reação enquanto a mão nervosa do pivete se introduzia em seu bolso e lhe surrupiava a carteira; mas, ainda assim, o dedo nervoso da mão que empunhava o revolver apertou o gatilho e deu-se um disparo. Assustado, o pivete fugiu em disparada, deixando cair a arma ao solo. Na rua, até então praticamente deserta, logo começaram a surgir pessoas atraídas pelo ruído de um tiro. – O que aconteceu? ― era a questão de todos. – Eu só sei que escutei um barulho de tiro, vi uma pessoa correndo e este senhor caído no chão. Deve estar muito ferido. – Olha só, um revolver! – disse uma terceira pessoa. – Não mexe nisso. Vamos chamar a polícia e uma ambulância. Urgente!

Epílogo


Felício dera muita sorte de escapar com vida. Surpreendentemente a ambulância atendeu prontamente ao chamamento e o transportou ao hospital público mais próximo. O tremor das mãos do atirador resultara em um desvio do cano da arma para fora de sua coluna. O ferimento fora grave, mas uma cirurgia muito bem conduzida afastara o risco de morte. Felício, um paciente não identificado, já despertara da inconsciência da anestesia quando, na tela de um velho aparelho de televisão situado na enfermaria do hospital, viu a conhecida face do locutor do telejornal anunciar: “A polícia ainda não conseguiu identificar o assaltante que baleou um idoso em mais um golpe conhecido como saidinha de banco. Mas já tem uma pista: a numeração da arma do crime identifica que o nome do seu proprietário é Felício Praxedes Antunes de Souza, que se encontra desaparecido. A polícia está em seu encalço, e há expectativa de que ele será encontrado dentro de 24 horas”. Numa só pessoa, Felício era, ao mesmo tempo, a vítima e o agressor da vítima. 

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