segunda-feira, 6 de novembro de 2017

O AMOR


O AMOR
What´s this thing? Called love
This funny thing?/ Called love (...)

Não existe resposta para essa indagação que o grande compositor norte-americano Cole Porter propõe em sua bela canção “What´s this thing called love?”. O que é essa coisa engraçada chamada amor?. Não há como definir-se racionalmente esse sentimento. Mas sabe-se perfeitamente quando se está enamorado, pode-se captar o momento mesmo em que nos damos conta de que esse sentimento nos invade ou quando captamos o seu desvelar no outro. Esse dar-se conta pode surgir após um processo de interação entre duas pessoas, ou o encantamento pode aflorar de uma forma instantânea, “o amor à primeira vista”. É quando ocorre o fall in love, presente em tantas canções românticas na língua inglesa.
            Que coisa maravilhosa quando pela primeira vez somos tocados pela graça daquele lampejo no olhar de nossa parceira, quando percebemos que nossas últimas palavras, nossas últimas frases de uma conversa na qual estávamos inteiramente envolvidos já não foram mais escutadas, e o que recebemos em retorno é um brilho nos olhos a nos dizer: “Eu te amo”. Outras vezes a declaração de amor pode vir através da palavra escrita, desataviadamente, ou, o que é mais gostoso, nas entrelinhas, quando é preciso ler e reler até que não permaneçam dúvidas. Outras vezes ainda a mensagem vem pelo toque: aquele abraço que se torna diferente, aquele beijo de saudação no rosto que começa a se aproximar da boca, aquele doce e cada vez mais consentido alisar dos cabelos, tudo a nos dizer: “Sim, continue”. A partir daí tudo o mais passa a ser irrelevante, o ser amado situa-se no centro do universo, todo o resto irá gravitar em torno dele. “Quem ama ardentemente não vive em si mesmo, mas naquele que ama, e quanto mais se transfere para o outro, mais feliz fica”, proclama Erasmo de Roterdam em Elogio da Loucura, uma das obras clássicas do Renascimento, e na qual figura uma citação de Platão como considerando que “o delírio dos amantes é o mais feliz de todos”.  É com o ser amado que se vai buscar alcançar uma fusão de mentes e corpos. E para ele o pensamento se voltará sempre que liberto das concretudes da vida. Cessarão todas as preocupações quanto às iniqüidades do mundo, tudo estará em seus devidos lugares, a vida humana ganha sentido. A todo instante o par enamorado buscará um no outro a certeza de que seu amor é correspondido. Não correspondido, o amor romântico pode levar a indizíveis sofrimentos, como os do jovem Werther, inesquecível personagem de Goethe que, ao suicidar-se na bela e trágica ficção (“Os sofrimentos do jovem Werther”), acaba por inspirar uma verdadeira leva de suicídios de jovens contemporâneos do poeta alemão. Goethe justamente escreveu essa obra prima da literatura universal a partir de uma dolorosa frustração amorosa que ele próprio experimentou. As criações literárias e artísticas em geral são, aliás, formas postuladas por Freud como de substituição do desejo sexual de seus autores. Nessa mesma linha outro poeta alemão, Rainer Rilk, afirmou em um escrito de 1903, que “de fato a vivência artística está tão inacreditavelmente próxima da vivência sexual, de sua dor e de seu prazer, que os dois fenômenos na verdade constituem apenas formas diversas de um mesmo anseio e de uma mesma ventura”. Mais uma ilustração, jocosa, vem do nosso grande maestro e compositor Tom Jobim, autor de canções que já são parte do patrimônio cultural da humanidade. Preservada na Library of Congress em Washington, com esse fim, na letra e na realização de “A Garota de Ipanema” está um eloquente exemplo do que o compositor certa vez teria dito: “Cada canção que eu fiz, representa uma mulher com quem eu não transei” (ao que o humorista Millor Fernandes, que nunca compôs qualquer canção, cinicamente teria retrucado: “Cada canção que eu não fiz, foi uma mulher com quem eu transei”).
            Enquanto durar o encantamento, o amor, a paixão, o desejo, o homem estará docemente protegido do sentimento da náusea, do absurdo, do qual nos falam, respectivamente, os filósofos existencialistas franceses Sartre e Camus. Mas o amor não dura para sempre e, ao tentarmos aprisioná-lo, somente estaremos precipitando o seu fim. O amor é um pássaro rebelde, que não se pode aprisionar, canta a cigana Carmem, da ópera de mesmo nome, de Bizet. As juras de amor eterno são absolutamente falsas. Podemos coisificarmo-nos em relação a aproximações potencialmente perigosas, fechar os nossos corações em defesa de compromissos socialmente assumidos. Estaríamos seguindo o conselho de Ovídio, poeta da Roma antiga: Principiis obsta, sero medicina parata (Evita no princípio; o remédio virá tarde), ao falar dos riscos do envolvimento amoroso. Entretanto, não importando a idade biológica, estaremos sempre sujeitos a experimentarmos estados de enamoramento, e novamente a dar sentido, ainda que provisório, à vida. E a sofrermos quando o amor chega ao fim? Esse estado de melancolia é mostrado de uma forma excepcionalmente bela e triste na canção francesa “Les feuilles mortes”, cuja letra integral, com tradução, encontra-se ao final deste texto.
Estaria, então, o ser humano fadado a apaixonar-se da forma como é descrita em um infindável número de canções românticas e de obras primas da literatura universal? Seria o amor uma inebriação romântica? Uma fuga? Uma ilusão? Erick Fromm, psicanalista alemão, filósofo e sociólogo, em seu livro “A Arte de Amar”, sustenta que o amor é uma arte e, como tal, necessita ser aprendido. Para ele, não se “cai” apaixonado, o decantado fall in love de tantas lindas canções de amor. O amor não é um afeto passivo, é um “erguimento” e, não, uma “queda”. Em sua argumentação, Fromm cita o filósofo Spinoza, que diferencia os afetos entre ativos, no exercício dos quais o homem é livre, senhor de seus afetos, e passivos, quando o homem é impelido, é objeto de motivações de que ele próprio não tem consciência. O amor seria uma ação, a prática de um poder humano, só podendo ser exercido na liberdade e, jamais, como produto de uma compulsão.
Em seu livro A Náusea, Sartre nos apresenta um personagem que vive intensamente sua angústia e sabe que os expedientes e as ocupações do dia a dia nada mais são do que artimanhas para disfarçar essa condição. A família, os passeios dominicais, o enamoramento, tudo tem como única finalidade mascarar a angústia constitutiva do ser humano. Não há nenhuma razão para existir e, apesar disso, comemos e bebemos para conservar nossa preciosa existência. Ao contemplar um casal de jovens que almoça em uma mesa próxima à sua, ele reflete: “Estão a vontade... acham que o mundo está bem como está, exatamente como é, e cada um deles provisoriamente colhe o sentido de sua vida no outro. Dentro em breve constituirão uma só vida para ambos, uma vida lenta e morna que não terá qualquer sentido − mas eles não se aperceberão disso”. E prossegue: “eles vão várias vezes por semana aos bailes e aos restaurantes, para oferecer o espetáculo de suas dancinhas rituais e mecânicas... Afinal é preciso matar o tempo. São jovens... dão tempo ao tempo, e não estão errados nisso. Quando tiverem dormido juntos, terão que descobrir outra coisa para encobrir o enorme absurdo de suas existências”.
O personagem de Sartre sabe então que os expedientes e as ocupações do dia a dia nada mais são do que artimanhas para disfarçar sua condição constitutiva de angústia. De maneira semelhante Camus aborda a questão da gratuidade das atividades humanas ao comentar o mito de Sísifo. Na mitologia grega, Sísifo foi condenado pelos deuses do Olimpo a eternamente empurrar uma enorme rocha até o alto de uma montanha, da qual ela imediatamente despenca, devendo ser novamente empurrada de volta. No inútil esforço de Sísifo está contida uma metáfora para a gratuidade dos empreendimentos humanos. A vida seria um contínuo de realizações apenas parciais, onde até mesmo o amor só perdura se for contrariado. Aí está o absurdo. Ele se encontra justamente na contingência em que o homem se vê lançado no mundo sem ter sido consultado, que não lhe é compreensível, pelo contrário, lhe é imperscrutável. Ele é um estrangeiro nesse mundo, como o personagem do livro de Camus que leva o próprio título de “O Estrangeiro”.
Retornamos à epígrafe deste ensaio: “What´s this thing? Called love/ This funny thing? Called love”. Alguém se manifesta? E escutem essa obra prima: https://www.youtube.com/watch?v=Xo1C6E7jbPw
Les feuilles mortes

Oh! je voudrais tant que tu te souviennes
Oh! Gostaria tanto que você se lembrasse
Des jours heureux où nous étions amis
Dos dias felizes onde nós éramos amigos
En ce temps-là la vie était plus belle
Naquele tempo a vida era mais bela
Et le soleil plus brûlant qu’aujourd’hui
E o sol mais brilhante que o de hoje
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
As folhas mortas recolhemos com a pá.
Tu vois, je n’ai pas oublié…
Você vê, eu não me esqueci
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
As folhas mortas recolhemos com a pá.
Les souvenirs et les regrets aussi
As lembranças e os arrependimentos também.

Et le vent du nord les emporte
E o vento do norte as trazem.
Dans la nuit froide de l’oubli
Na noite fria do esquecimento
Tu vois, je n’ai pas oublié
Você vê, eu não me esqueci
La chanson que tu me chantais
A canção que você me cantava.
C’est une chanson qui nous ressemble
É uma canção que nos aproxima.
Toi, tu m’aimais et je t’aimais
Você, que me amava e eu te amava.
Et nous vivions tous deux ensemble
E nós vivíamos sempre juntos
Toi qui m’aimais, moi qui t’aimais
Você que me amava, eu que te amava.
Mais la vie sépare ceux qui s’aiment
Mas a vida separa aos que se amam.
Tout doucement, sans faire de bruit
Tão docemente, sem fazer barulho.
Et la mer efface sur le sable
E o mar apaga sobre a areia
Les pas des amants désunis
Os passos dos amantes apartados

Letra francesa do poeta Jack Prevert. Pode-se escutar (imprimam a letra, para melhor acompanhar a audição) essa maravilha de canção no youtube na voz de Yves Montand, o primeiro a gravá-la (1946). Os doze primeiros versos, até La chanson que tu me chantais, são declamados, somente a partir do décimo terceiro verso a letra passa a ser cantada.

Posteriormente foi feita uma versão em inglês, com o título de “The autumm leaves”, grande sucesso internacional cantada, entre outros, por Frank Sinatra e Nat King Cole, também disponíveis no youtube.

Um comentário:

  1. Que lindo texto! O que seria de nós sem amor, qual seria o sentido para a vida se não pudéssemos amar? Creio que a vida não teria graça. Uma conquista e um olhar apaixonado proporciona vida intensa, prazer abundante. Quero ser uma eterna apaixonada e viver o amor,um de cada forma , mas não menos intenso e prazeroso!! Obrigada pelo texto!

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