O
AMOR
What´s this thing?
Called love
This funny
thing?/ Called
love (...)
Não
existe resposta para essa indagação que o grande compositor norte-americano
Cole Porter propõe em sua bela canção “What´s this thing called love?”. O que é
essa coisa engraçada chamada amor?. Não há como definir-se racionalmente esse
sentimento. Mas sabe-se perfeitamente quando se está enamorado, pode-se captar
o momento mesmo em que nos damos conta de que esse sentimento nos invade ou
quando captamos o seu desvelar no outro. Esse dar-se conta pode surgir após um
processo de interação entre duas pessoas, ou o encantamento pode aflorar de uma
forma instantânea, “o amor à primeira vista”. É quando ocorre o fall in love, presente em tantas canções
românticas na língua inglesa.
Que
coisa maravilhosa quando pela primeira vez somos tocados pela graça daquele
lampejo no olhar de nossa parceira, quando percebemos que nossas últimas
palavras, nossas últimas frases de uma conversa na qual estávamos inteiramente
envolvidos já não foram mais escutadas, e o que recebemos em retorno é um
brilho nos olhos a nos dizer: “Eu te amo”. Outras vezes a declaração de amor
pode vir através da palavra escrita, desataviadamente, ou, o que é mais
gostoso, nas entrelinhas, quando é preciso ler e reler até que não permaneçam
dúvidas. Outras vezes ainda a mensagem vem pelo toque: aquele abraço que se
torna diferente, aquele beijo de saudação no rosto que começa a se aproximar da
boca, aquele doce e cada vez mais consentido alisar dos cabelos, tudo a nos
dizer: “Sim, continue”. A partir daí tudo o mais passa a ser irrelevante, o ser
amado situa-se no centro do universo, todo o resto irá gravitar em torno dele. “Quem
ama ardentemente não vive em si mesmo, mas naquele que ama, e quanto mais se
transfere para o outro, mais feliz fica”, proclama Erasmo de Roterdam em Elogio
da Loucura, uma das obras clássicas do Renascimento, e na qual figura uma
citação de Platão como considerando que “o delírio dos amantes é o mais feliz
de todos”. É com o ser amado que se vai
buscar alcançar uma fusão de mentes e corpos. E para ele o pensamento se voltará
sempre que liberto das concretudes da vida. Cessarão todas as preocupações
quanto às iniqüidades do mundo, tudo estará em seus devidos lugares, a vida
humana ganha sentido. A todo instante o par enamorado buscará um no outro a
certeza de que seu amor é correspondido. Não correspondido, o amor romântico
pode levar a indizíveis sofrimentos, como os do jovem Werther, inesquecível
personagem de Goethe que, ao suicidar-se na bela e trágica ficção (“Os
sofrimentos do jovem Werther”), acaba por inspirar uma verdadeira leva de
suicídios de jovens contemporâneos do poeta alemão. Goethe justamente escreveu
essa obra prima da literatura universal a partir de uma dolorosa frustração
amorosa que ele próprio experimentou. As criações literárias e artísticas em
geral são, aliás, formas postuladas por Freud como de substituição do desejo
sexual de seus autores.
Nessa mesma linha outro poeta alemão, Rainer Rilk, afirmou em um escrito de
1903, que “de fato a vivência artística está tão inacreditavelmente próxima da
vivência sexual, de sua dor e de seu prazer, que os dois fenômenos na verdade
constituem apenas formas diversas de um mesmo anseio e de uma mesma ventura”.
Mais uma ilustração, jocosa, vem do nosso grande maestro e compositor Tom
Jobim, autor de canções que já são parte do patrimônio cultural da humanidade.
Preservada na Library of Congress em Washington, com esse fim, na letra e na
realização de “A Garota de Ipanema” está um eloquente exemplo do que o
compositor certa vez teria dito: “Cada canção que eu fiz, representa uma mulher
com quem eu não transei” (ao que o humorista Millor Fernandes, que nunca compôs
qualquer canção, cinicamente teria retrucado: “Cada canção que eu não fiz, foi
uma mulher com quem eu transei”).
Enquanto durar o
encantamento, o amor, a paixão, o desejo, o homem estará docemente protegido do
sentimento da náusea, do absurdo, do qual nos falam, respectivamente, os
filósofos existencialistas franceses Sartre e Camus. Mas o amor não dura para
sempre e, ao tentarmos aprisioná-lo, somente estaremos precipitando o seu fim. O
amor é um pássaro rebelde, que não se pode aprisionar, canta a cigana Carmem,
da ópera de mesmo nome, de Bizet. As juras de amor eterno são absolutamente
falsas. Podemos coisificarmo-nos em relação a aproximações potencialmente perigosas,
fechar os nossos corações em defesa de compromissos socialmente assumidos.
Estaríamos seguindo o conselho de Ovídio, poeta da Roma antiga: Principiis obsta, sero medicina parata (Evita
no princípio; o remédio virá tarde), ao falar dos riscos do envolvimento
amoroso. Entretanto, não importando a idade biológica, estaremos sempre
sujeitos a experimentarmos estados de enamoramento, e novamente a dar sentido,
ainda que provisório, à vida. E a sofrermos quando o amor chega ao fim? Esse
estado de melancolia é mostrado de uma forma excepcionalmente bela e triste na
canção francesa “Les feuilles mortes”, cuja letra integral, com tradução,
encontra-se ao final deste texto.
Estaria,
então, o ser humano fadado a apaixonar-se da forma como é descrita em um
infindável número de canções românticas e de obras primas da literatura
universal? Seria o amor uma inebriação romântica? Uma fuga? Uma ilusão? Erick
Fromm, psicanalista alemão, filósofo e sociólogo, em seu livro “A Arte de
Amar”, sustenta que o amor é uma arte e, como tal, necessita ser aprendido.
Para ele, não se “cai” apaixonado, o decantado fall in love de tantas lindas canções de amor. O amor não é um
afeto passivo, é um “erguimento” e, não, uma “queda”. Em sua argumentação,
Fromm cita o filósofo Spinoza, que diferencia os afetos entre ativos, no
exercício dos quais o homem é livre, senhor de seus afetos, e passivos, quando
o homem é impelido, é objeto de motivações de que ele próprio não tem
consciência. O amor seria uma ação, a prática de um poder humano, só podendo
ser exercido na liberdade e, jamais, como produto de uma compulsão.
Em
seu livro A Náusea, Sartre nos apresenta um personagem que vive intensamente
sua angústia e sabe que os expedientes e as ocupações do dia a dia nada mais
são do que artimanhas para disfarçar essa condição. A família, os passeios
dominicais, o enamoramento, tudo tem como única finalidade mascarar a angústia
constitutiva do ser humano. Não há nenhuma razão para existir e, apesar disso,
comemos e bebemos para conservar nossa preciosa existência. Ao contemplar um
casal de jovens que almoça em uma mesa próxima à sua, ele reflete: “Estão a
vontade... acham que o mundo está bem como está, exatamente como é, e cada um
deles provisoriamente colhe o sentido de sua vida no outro. Dentro em breve
constituirão uma só vida para ambos, uma vida lenta e morna que não terá
qualquer sentido − mas eles não se aperceberão disso”. E prossegue: “eles vão
várias vezes por semana aos bailes e aos restaurantes, para oferecer o
espetáculo de suas dancinhas rituais e mecânicas... Afinal é preciso matar o
tempo. São jovens... dão tempo ao tempo, e não estão errados nisso. Quando
tiverem dormido juntos, terão que descobrir outra coisa para encobrir o enorme
absurdo de suas existências”.
O
personagem de Sartre sabe então que os expedientes e as ocupações do dia a dia
nada mais são do que artimanhas para disfarçar sua condição constitutiva de
angústia. De maneira semelhante Camus aborda a questão da gratuidade das
atividades humanas ao comentar o mito de Sísifo. Na mitologia grega, Sísifo foi
condenado pelos deuses do Olimpo a eternamente empurrar uma enorme rocha até o
alto de uma montanha, da qual ela imediatamente despenca, devendo ser novamente
empurrada de volta. No inútil esforço de Sísifo está contida uma metáfora para
a gratuidade dos empreendimentos humanos. A vida seria um contínuo de
realizações apenas parciais, onde até mesmo o amor só perdura se for
contrariado. Aí está o absurdo. Ele se encontra justamente na contingência em
que o homem se vê lançado no mundo sem ter sido consultado, que não lhe é
compreensível, pelo contrário, lhe é imperscrutável. Ele é um estrangeiro nesse
mundo, como o personagem do livro de Camus que leva o próprio título de “O Estrangeiro”.
Retornamos
à epígrafe deste ensaio: “What´s this thing? Called love/ This funny thing? Called love”. Alguém
se manifesta? E escutem essa obra prima: https://www.youtube.com/watch?v=Xo1C6E7jbPw
Les feuilles mortes
Oh! je voudrais tant que tu te souviennes
Oh! Gostaria tanto que você se lembrasse
Des jours heureux où nous étions amis
Dos dias felizes onde nós éramos amigos
En ce temps-là la vie était plus belle
Naquele tempo a vida era mais bela
Et le soleil plus brûlant qu’aujourd’hui
E o sol mais brilhante que o de hoje
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
As folhas mortas recolhemos com a pá.
Tu vois, je n’ai pas oublié…
Você vê, eu não me esqueci
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
As folhas mortas recolhemos com a pá.
Les souvenirs et les regrets aussi
As lembranças e os arrependimentos também.
Et le vent du nord les emporte
E o vento do norte as trazem.
Dans la nuit froide de l’oubli
Na noite fria do esquecimento
Tu vois, je n’ai pas oublié
Você vê, eu não me esqueci
La chanson que tu me chantais
A canção que você me cantava.
C’est une chanson qui nous ressemble
É uma canção que nos aproxima.
Toi, tu m’aimais et je t’aimais
Você, que me amava e eu te amava.
Et nous vivions tous deux ensemble
E nós vivíamos sempre juntos
Toi qui m’aimais, moi qui t’aimais
Você que me amava, eu que te amava.
Mais la vie sépare ceux qui s’aiment
Mas a vida separa aos que se amam.
Tout doucement, sans faire de bruit
Tão docemente, sem fazer barulho.
Et la mer efface sur le sable
E o mar apaga sobre a areia
Les pas des amants désunis
Os passos dos amantes apartados
Oh! je voudrais tant que tu te souviennes
Oh! Gostaria tanto que você se lembrasse
Des jours heureux où nous étions amis
Dos dias felizes onde nós éramos amigos
En ce temps-là la vie était plus belle
Naquele tempo a vida era mais bela
Et le soleil plus brûlant qu’aujourd’hui
E o sol mais brilhante que o de hoje
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
As folhas mortas recolhemos com a pá.
Tu vois, je n’ai pas oublié…
Você vê, eu não me esqueci
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
As folhas mortas recolhemos com a pá.
Les souvenirs et les regrets aussi
As lembranças e os arrependimentos também.
Et le vent du nord les emporte
E o vento do norte as trazem.
Dans la nuit froide de l’oubli
Na noite fria do esquecimento
Tu vois, je n’ai pas oublié
Você vê, eu não me esqueci
La chanson que tu me chantais
A canção que você me cantava.
C’est une chanson qui nous ressemble
É uma canção que nos aproxima.
Toi, tu m’aimais et je t’aimais
Você, que me amava e eu te amava.
Et nous vivions tous deux ensemble
E nós vivíamos sempre juntos
Toi qui m’aimais, moi qui t’aimais
Você que me amava, eu que te amava.
Mais la vie sépare ceux qui s’aiment
Mas a vida separa aos que se amam.
Tout doucement, sans faire de bruit
Tão docemente, sem fazer barulho.
Et la mer efface sur le sable
E o mar apaga sobre a areia
Les pas des amants désunis
Os passos dos amantes apartados
Letra francesa do poeta Jack Prevert. Pode-se
escutar (imprimam a letra, para melhor acompanhar a audição) essa maravilha de
canção no youtube na voz de Yves Montand, o primeiro a gravá-la (1946). Os doze
primeiros versos, até La chanson que tu me chantais, são declamados, somente
a partir do décimo terceiro verso a letra passa a ser cantada.
Posteriormente foi feita uma versão em inglês, com
o título de “The autumm leaves”, grande sucesso internacional cantada, entre
outros, por Frank Sinatra e Nat King Cole, também disponíveis no youtube.
Que lindo texto! O que seria de nós sem amor, qual seria o sentido para a vida se não pudéssemos amar? Creio que a vida não teria graça. Uma conquista e um olhar apaixonado proporciona vida intensa, prazer abundante. Quero ser uma eterna apaixonada e viver o amor,um de cada forma , mas não menos intenso e prazeroso!! Obrigada pelo texto!
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