O tempo
Plus tard il
sera
(Mais tarde será)
trop tard. Notre vie c´est
(tarde demais. Nossa vida é)
maintenant
(agora)
- Jacques Préver, poeta francês.
Dias atrás me dei conta de que há
alguns anos não marcava consulta com o meu oculista, era tempo de conferir o
grau das lentes dos meus óculos. Pontual e atenciosamente o doutor me recebeu e
perguntou o motivo da consulta, ao que respondi que não havia qualquer motivo
especial, salvo o de conferir o grau das lentes, já que a minha última consulta
se dera há uns três anos. Ao examinar a minha ficha, ele me surpreendeu
imensamente ao informar que, na verdade, minha última consulta se dera há oito
anos, em 2010! Meu Deus, oito anos! Perguntei exatamente quando, ele me
respondeu que fora em 15 de junho de 2010. A minha curiosidade em relação à
data exata tinha uma razão, saber quão próxima ela era de 08 de dezembro
daquele ano, dia em que fiz uma cirurgia cardíaca, referência naturalmente
muito marcante na minha vida, e sobre a qual escrevi uma crônica, “A visita da
Dama de Negro”. Mas o propósito desta crônica não é escrever sobre aquele meu tangenciar
o insondável, mas, sim, refletir sobre o tempo.
“Nossa vida é agora, amanhã será
tarde demais”, na citação do poeta Jacques Prévert (escreveu a letra da emocionante canção Les Feuilles Morts, enorme sucesso na versão original e na versão
inglesa The Autumm Leaves) em nossa epígrafe.
Na mesma linha se pronunciaram escritores, pensadores, poetas, músicos, etc. Omar
Kháyyám, matemático e poeta persa, em um de seus Rubáyyát: “Sê feliz um
instante, o instante fugitivo que é a sua vida...” “A vida é o que acontece,
enquanto você está ocupado fazendo outros planos.”, disse John Lennon,
estupidamente assassinado quando ainda jovem e produtivo.
Aproveitar o tempo, proclama-se. Carpe Diem, conselho do poeta Horacio,
da Roma Antiga, literalmente significando aproveite o dia, mas assimilado como
aproveite o momento, desvirtuado em uma sôfrega tentativa de usufruir cada
minuto da vida. O tempo está passando cada vez mais rápido, é um sentimento de
tantos, especialmente daqueles que estão envelhecendo. O ano mal começou e logo
chegará o Carnaval, a Copa do Mundo, as eleições, e pronto: o Natal e o fim de
ano, proclamam os mais ansiosos. Urge aproveitar o tempo. Time is Money. A vida moderna em constante aceleração: “não se pode
ficar parado”; Cultura do fast-food;
os filmes de ação, “fechados”; fuga da angústia, ambição, avidez por dinheiro
ou qualquer outra forma de passividade
através da atividade permanente, somente concebida como aquela dirigida para um
alvo exterior a ser alcançado, sem considerar a motivação dessa atividade que
assim é, na verdade, uma passividade -
Spinoza conceitua que no
exercício de um afeto passivo o homem é impelido, é objeto de motivações das
quais ele próprio não tem consciência; era da informação trazendo exacerbação
da falta de reflexão, da comunicação veloz e empobrecimento da linguagem – José
Saramago, Prêmio Nobel de Literatura: “De degrau em degrau vamos descendo até o
grunhido.”
O escritor argentino, igualmente
Prêmio Nobel de Literatura, Jorge Luiz Borges, que deve ter levado uma vida
intensa, em sua velhice lamentou: “Se pudesse viver novamente, na próxima vida
tentaria cometer mais erros.” Sugere lamentar oportunidades perdidas. Quantos
de nós não gostaríamos de ter a faculdade de reverter o tempo ao nosso arbítrio,
voltar ao passado para aproveitar uma oportunidade perdida por medo, vergonha
ou displicência? Não, não estamos falando de um sentimento doentio de
arrependimento, de culpa, mas, sim, de, de alguma forma, poder reinventar episódios
de uma vida, por mais que ela tenha sido, em seu conjunto, feliz. E também
gostaríamos de poder voltar ao passado para usufruir momentos sublimes que
vivenciamos como protagonistas ou testemunhas. Não se trata de saudosismo, de
nostalgia, de se estar “parado no tempo”, um preconceito tão comumente aplicado
a referências do passado quando visto sob uma ótica meramente cronológica. José
Saramago nos oferece em seu livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (uma
narrativa sob uma perspectiva bastante pessoal do autor) um singular exemplo
desse desejo. Saramago escreve que certos momentos na vida deveriam “ficar
fixados, protegidos do tempo, não apenas consignados neste evangelho, ou em
pintura, ou modernamente em foto, filme ou vídeo, o que interessava mesmo era
que o próprio que os viveu, ou tenha feito viver pudesse permanecer para todo o
sempre à vista dos seus vindouros...” E elege um momento descrito na vida de
Jesus, ainda uma criança, como o seu preferido para tal fim. Comungo com
Saramago nesse sonho de poder revisitar o passado ao nosso bel prazer. Que
coisa maravilhosa seria, por exemplo, reencontrar os meus queridos filhos quando
crianças, saborear os tantos momentos mágicos de nossa passada convivência. Hoje
são adultos, casados, vivendo suas vidas, mas eu minha esposa damos graça de
tê-los sempre perto de nós, constituindo uma família ampliada com genro e nora
e, extraordinariamente, fomos presenteados com um netinho maravilhoso através
do qual, de certa forma, testemunhando o seu desenvolvimento, realizamos a
fantasia de reencontrar nossos filhos ainda crianças.
Mas, o que seria o tempo? Linear, uma sequência
infinita de agoras, uma soma de instantes sucessivos, permanentes e isolados
uns dos outros, como pensava
Descartes? Ou, como acreditava
Leibniz, o tempo seria um fluir continuado, uma unidade, uma absoluta mudança?
O filósofo existencialista Jean-Paul Sartre considerava que ambas as hipóteses tomadas
isoladamente levam a um impasse. Uma soma de instantes não poderia resultar em uma
duração temporal, já que o instante, unidade infinitesimal do tempo, não tem
extensão, logo a soma de zeros tem zero como resultado, a série se aniquila. Quanto
à hipótese de Leibniz, uma mudança que constituísse absolutamente mudança já
não seria mudança alguma, pois tudo o que muda, muda em relação a algo que
permanece. Para Sartre, a temporalidade necessita tanto da permanência dos
instantes (pois eles devem permanecer o que são, distintos uns dos outros e
perfeitamente individualizados) quanto da mudança de um fluir continuado (pois
eles devem estar ligados em uma síntese comum, em uma dependência mútua). (As
considerações são extraídas do livro “Existência Liberdade – Uma introdução à
filosofia de Sartre”, de Paulo Perdigão)
Deixando de lado as especulações
filosóficas, as sociedades modernas concebem o tempo como kronos- mensurável, descrito em horas,
minutos, segundos, uma mercadoria que pode ser comercializada. Isso a despeito
da percepção subjetiva que indivíduos dentro dessas sociedades possam ter com
relação a passagem mais ou menos rápida do tempo. Nas sociedades antigas, no
campo e nas sociedades “alternativas” o tempo, em oposição, é representado
pelos processos cíclicos da natureza, visto como processo natural de mudança.
Artesões, artistas, homens do campo e outros trabalhando sem a pressão de uma
data precisa para terminar seu trabalho, sua obra. Despreocupação em medir o
tempo com precisão - relógio de sol, ampulheta, vela ou lamparina etc.
Mas Kronos
não é a forma única de se conceituar o tempo. Em oposição, surge o tempo como Kairós, que significa “o
momento certo ou oportuno”. Quando estamos totalmente absorvidos e vivemos no
momento presente, sempre que nos sentimos apaixonados pelo que estamos a fazer
ou pelas pessoas com quem estamos, empenhados, absorvidos, vivemos no Kairós. “O tempo pode ser medido com as
batidas de um relógio ou pode ser medido com as batidas do coração”, nas
palavras do filósofo e psicanalista Ruben Alves.
Iniciei esta crônica falando da
surpresa com a minha distorcida percepção do passar dos anos. Cronologicamente,
do grego kronos, transcorreram quase oito
anos entre as minhas duas consultas ao oculista, enquanto eu imaginava um
decurso de apenas três. O fato é que objetivamente vivemos no kronos no tocante ao cumprimento de
nossas obrigações pessoais, atentos ao relógio, daí a minha “distorção”. Mas em
nossa interioridade não vivenciamos as horas como todas tendo uma duração
igual, 60 minutos, os dias como todos tendo 24 horas, e os anos, 365 dias. “Os
dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para o homem”, nas palavras
do célebre escritor francês Marcel Proust. Há dias que sentimos mais ou menos
compridos que outros, a mesma percepção valendo para as horas, os anos. A minha
sensação, como a de tantos, especialmente entre os mais velhos, já escrevi, é a
de que os anos estão passando mais rápido. O que fazer diante disso? Aproveitar
a vida, amar, lutar contra o cultivo do ódio em nossos corações, respeitar a
alteridade, o que não significa necessariamente identificar-se com posições
contrárias às nossas genuínas convicções. E, retornando a Spinoza, atentar para
a existência de um outro conceito de atividade, aquele que se refere ao uso dos
poderes inerentes ao homem, na mais profunda meditação, o que somente é
possível em condições de liberdade interior, sem que importe a produção de
qualquer mudança exterior.
Epílogo
Já encerrara a crônica quando surgiu a
necessidade de ser feita uma pesquisa nos velhos álbuns de fotografia da
família. Dediquei-me à tarefa acompanhado do meu filho. Ele ao meu lado, fomos
perpassando antigas fotos, nas quais, entre tantas imagens queridas, ele
próprio aparecia, em diversos momentos de sua vida, desde o nascimento, fixados
em papel fotográfico. Lembrei-me, é claro, de Saramago. Não podíamos voltar ao
passado, mas podíamos, eu e ele, fazermos vivas as sensações que
experimentávamos e compartilhávamos no momento do registro da câmera. Foi
emocionante rever tantos entes queridos, familiares e amigos. Lá estávamos eu,
minha mulher e meus filhos. Meus pais e meus irmãos. Meus sogros. Tios e tias. Primos
e primas. Sobrinhos e sobrinhas. E amigos. Muitos já partiram, de outros nos
afastamos por vontade própria ou por circunstâncias da vida. Felizmente outras
relações surgiram nesse caminhar. E, sobretudo, somos, minha mulher e eu, muito
felizes por termos trazido ao mundo a nossa filha, mãe do querido netinho, e o nosso
filho. Eles são a nossa maior alegria, nossa maior motivação.
16/01/2018
"O tempo não pára no porto, não apita na curva, não espera ninguém
ResponderExcluirO medo correndo nas veias deixou tanta vida pra trás
E a gente ficou de mãos cheias com coisas que não valem mais
E fica um gosto de usado naquilo que nem se provou
A gente dormiu acordado e o tempo depressa passou"
Reginaldo Bessa - na bela "O tempo"
Ainda vivemos os mesmos momentos maravilhosos do passado! O ultimo final de semana em Camboinhas foi um deles!
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