quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Pedroso



Pedroso


A princípio Adolfo, um diligente executivo que deixava o Edifício do BANCO na Avenida do Planejamento, no centro da cidade de Malversalhes, não quis admitir para si próprio o que os seus olhos teimavam em lhe informar. Deveria ser, é claro, efeito do calor. Decerto, o calor em Malversalhes em pleno verão era de lascar. Ademais, Adolfo vinha trabalhando muito, e sob situação de estresse cada vez maior. A brutal recessão, o enxugamento do quadro de empregados, a mudança permanente das regras do jogo dos negócios o estavam deixando presa fácil para todo um séquito de mazelas psicossomáticas. Outro dia mesmo sentira uma tonteira em pleno escritório e, pela janela, julgara divisar sombras estranhas. Já pensava em tirar umas férias, fazer um relax. Agora, acontecia aquilo. Realmente, não deveria estar bem: "aquilo", não era possível.

Duas freiras passam contritas, em seu hábito de abrasar, a caminho da Catedral Metropolitana e, ao avistarem aquilo param, de súbito, como que fulminadas. Apertam as mãos e, transidas, murmuram, com os lábios trêmulos: coitado...

Uma velha mendiga, das muitas que deambulam pela Esplanada das Estatais, onde se concentram os grandes templos do estatismo de Cornucópia  - olha, extasiada, um leve e doce sorriso a trair recordações de um tempo de passados enlevos.

Uma mulher chorando tristemente se afasta da cena, camelôs suspendem seus negócios, alguns cães vadios ladram, enquanto uma pequena multidão de passantes começa a parar, estarrecida.

Todos olham aquilo.

Roubava muito. Insaciável. Não roubava por necessidade, há muito nem mais por prazer. Era por inércia, aquela propriedade física que faz com que o movimento, uma vez iniciado, necessite da aplicação de uma força para detê-lo. E força para detê-lo era tudo o que não havia, muito pelo contrário. Roubavam o Presidente da República e sua malta, roubavam parlamentares, roubavam juizes, roubavam médicos e dentistas, roubavam síndicos, roubavam policiais, roubavam, é claro, os ladrões propriamente ditos, enfim... Roubavam!

Buzzinatto era um corrupto visceral. Levar vantagem em qualquer transação era para ele um dogma, algo cujo questionamento sequer roçava o nível mais recôndito de sua consciência. Levava o seu em transações comerciais e financeiras, locupletava-se na compra e na venda de produtos, na contratação de serviços e até no recolhimento de impostos. Buzzinatto estava sempre ocupando a diretoria de alguma grande empresa e, por azar dos contribuintes, alguma empresa pública. Homem de inteligência e competência profissional pouco mais que mediana, destacava-se, contudo, por sua grande esperteza, falta de escrúpulos e apetite pelo poder e, sobretudo, pela obsessão por dinheiro.

Buzzinatto era um homem de métodos mafiosos, um homem de esquemas. Isto em um país de leis indulgentes e vontade de aplicá-las ainda mais frouxa lhe deixava em grande vantagem. Especialista em maracutaias, cercava-se sempre, nas empresas, de uma turba de vassalos complacentes e puxa-sacos, os quais, lhe ajudando a montar a teia de dilapidação do erário, recebiam as migalhas que lhes comprariam o eterno silêncio. Seus critérios de decisão eram sempre sórdidos, a fundamentar-se no seu interesse pessoal ou no de algum amigo que, no futuro, se sentiria compelido a dar a contrapartida ao nobre gesto.

Mas, Buzzinatto roubava demais. Apesar de sua comprovada competência nas artes da rapinagem, todo o mercado de trabalho sabia de sua fama e manifestava desconforto com a sua presença. A teia mafiosa que ele tecera era, entretanto, inexpugnável garantia contra a ameaça que pairava sobre a cabeça de tantos e tantos trabalhadores honestos: "a rua da amargura". Porque aos honestos compete trabalhar, trabalhar sempre e bem; seu único patrimônio, sua moeda de troca, é seu próprio esforço.

Pedroso era um homem sério, seriedade era o que ressaltava em sua passagem por tantas empresas, especializado que era em implantação de novos empreendimentos industriais. Em sua saga profissional, que já durava quase trinta anos, fora responsável por negociações que chegavam à ordem do bilhão de dólares. Administrara, com total carta branca dos acionistas, incontáveis operações nacionais e internacionais, que iam da deliqüescente moeda nacional, o Cruz-Credo Novo, ao sonante Dólar, das exóticas Rúpias de Siri-Lanka ao classudo Franco-Suíço, do lusitano Escudo ao cobiçado Yen Japonês. Uma cesta de moedas que não tinha fim.

Pedroso era, repita-se, um homem sério. De poucas palavras, enfrentava cada desafio profissional como uma missão. No seu metier era conhecido como um profissional correto, competente, embora com um certo quê de ingenuidade. Não jogava para as arquibancadas. Trabalhava. Era um homem em paz com sua consciência, conquanto se sentisse, às vezes, com uma sensação de ser um alienígena em meio a tantas safadezas perpetradas pelos espertos. Quem sabe ele não seria apenas um idiota, ruminava em momentos cada vez mais freqüentes de depressão. Tentava continuar acreditando que sua honestidade seria, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde, reconhecida. Entretanto, mais e mais o triunfo dos espertos o incomodava, a chafurda dos corruptos, a impunidade e, por fim, a glorificação da sem-vergonhice estavam lhe corroendo a alma. Era preciso fazer alguma coisa, se imbuía de um sentimento de santa e urgente responsabilidade.

A caminhada pela Avenida Central, até o restaurante "O Caçaralho" não foi nem mais nem menos constrangedora para Pedroso do que o fôra em tantas outras vezes, embora, dentro de si, surgisse a angústia de uma aziaga premonição. A degradação da qualidade de vida impingida aos habitantes de Malversalhes tem a sua apoteose na Avenida Central na hora do almoço, em mês de verão. Pedroso caminhava adivinhando espaços entre a miríade  de transeuntes, as bancas de camelôs e as bancas de jornal, os deficientes físicos e os miseráveis espalhados pelas calçadas, os buracos, o lixo e o cocô. Sabia que a qualquer momento poderia ser colhido por um arrastão de pivetes ou, mais simplesmente, ser assaltado mediante a irrefutável ameaça de um tresoitão de algum marginal ou pelo tranco de trombadinhas. Tudo isso já incorporara de tal forma que passara a ser parte de sua realidade. Ônibus jorravam em catadupas pela avenida, buzinavam, expeliam fumos lazarentos, roncavam ameaçadores, imobilizados no congestionamento que a desobediência geral aos sinais de trânsito causava.

Pedroso caminhava, a canícula era abrasadora, mas o que realmente assomava a sua consciência, como a quintessência da agressão, eram os fedores. Os fedores eram realmente fantásticos. Fedor de merda pura. Fedor de mijo podre. Muitos passos adiante penetrava em área de interesse de outro fedor: a morrinha de suor azedo de roupas nunca lavadas. Mas, logo esse fedor cedia à hegemonia de um outro ainda maior, o de esgotos arrebentados, geiseres de água pútrida espoucando nas calçadas, o qual seria por sua vez substituído pela acre catinga de sarjetas ressecadas. Havia áreas de confluência de fedores, onde exaustores de lanchonetes esguichavam a nojeira de suas frituras e o escapamento dos ônibus vomitavam seus restos de hidrocarbonetos mal queimados. Havia o lixo azedo dos restaurantes, freqüentemente não recolhidos pela Prefeitura. Era um fedor aterrador, e Pedroso às vezes imaginava que todos os fedores que se digladiavam pela supremacia das ruas iriam um dia se unir e materializar-se num mega-fedor que a todos asfixiaria.

No "O Caçaralho" encontra seu velho amigo Adolfo. Fazem suas pedidas, ele uma franciscana "posta de badejo com legumes cosidos" e água mineral sem gás, pois não sentia ânimo para iguarias mais requintadas, e o amigo "limalhas de ferro com aguarrás", que é como Adolfo gostava de designar os pesadíssimos acepipes com os quais se empanturrava , no caso, um "viradinho à paulista", e uma caipirinha. Conversam sem muita animação, relembrando velhas passagens de suas trajetórias profissionais, inúmeras dificuldades compartilhadas, muitas brincadeiras, até que, num dado momento, Adolfo faz a pergunta:

- Leu o jornal de hoje?
- Não, responde um desinteressado Pedroso.
- Está lá, insiste Adolfo, enquanto trincha uma enorme costeleta de porco, parece que o Buzzinatto vai mesmo ser o presidente da MONOPOL. Completa a frase engolindo uma tora da costeleta, barrada com um pedaço de ovo frito por cima, fitando Pedroso, que se esmera em separar as grandes espinhas de sua posta de badejo.
Mas, Pedroso não tem reação imediata. Suas feições assumem um ar de um infinito cansaço, um olhar meio vago, subitamente desinteressado do repasto.

- É, mesmo? Murmura, enfim.

- É, confirma Adolfo. Faz sentido. Repare só. Já roubou em tudo quanto é lugar. Sempre que é demitido, acaba saindo para um lugar melhor. Isso é assim mesmo, acaba ministro!

Acabam de almoçar e Adolfo despede-se rápido pois tinha que ir ao BANCO para mais um "round" da extenuante maratona de conseguir contratar um financiamento para o mais novo empreendimento a seu encargo.

Pedroso está de volta a seu escritório, mas não consegue trabalhar. O jornal aberto sobre sua mesa dá, com destaque, a já quase certa nomeação de Buzzinatto para a presidência da MONOPOL. O olhar de Pedroso está parado. Não responde sequer quando sua fiel e amiga secretária lhe oferece um cafezinho. Vera conhecia seu chefe de longa data, e estava acostumada com suas atitudes um tanto exóticas. Entretanto, sente algo de inquietante naquele olhar vidrado, alguma coisa escapando ao controle.

Subitamente, sem pressa, com fria determinação, Pedroso levanta-se de sua cadeira, pega sua maleta de executivo e dirige-se à porta de saída do escritório.Vera, temendo pelo pior, nem lhe dirige a palavra. Corre à mesa do chefe e procura adivinhar, no jornal, a razão de tão estranho comportamento. Acompanha o chefe no elevador, e ele não lhe nota a presença. Sai à rua e Vera ainda o segue, atônita.

Na Avenida do Planejamento defrontam-se dois monumentais símbolos da estatização da República de Cornucópia, os edifícios-sede da MONOPOL, uma giga "holding" da indústria, e do BANCO, o Banco Nacional de Cornucópia, a piramidal agência do desenvolvimento de tudo, ligados por uma passarela. Muito próximo, avista-se um outro ícone da "nomenclatura" nacional, o prédio do BHC, o Banco Habitacional de Cornucópia. Os três compõem aquilo que certa feita um motorista de táxi chamou de "O Triângulo das Bermudas". "É por aqui que o nosso dinheiro desaparece", arriscou, enquanto dirigia seu calhambeque cacarecado e barulhento, lobrigando, pelo retrovisor, um ríctus de desconforto na fisionomia de Pedroso, sentado no banco traseiro.

Particularmente, o prédio do BANCO é um glorioso atentado ao bom senso, com sua fria estrutura toda guarnecida em vidro fumê, em pleno inferno tropical, a consumir inimagináveis quantidades de energia em seu sistema de ar condicionado central, e a gerar fungos e ácaros, gostosamente refestelados em felpudos tapetes de asmática ostentação. Pigarreando muito, com o nariz coçando, Adolfo sai do BANCO e caminha pela passarela no sentido da MONOPOL, quando a visão literalmente o imobiliza.

- Posso fazer alguma coisa? Pergunta Vera. Não obtém resposta. Pedroso caminha obstinado, com uma determinação de assustar.

Chegando à frente da MONOPOL, Pedroso, enfim, pára. Caminha em direção ao meio da passarela por sobre a Avenida do Planejamento, frente à mureta lateral, contempla o horizonte, num olhar de adeus.

Subitamente aterrorizada pelo pressentimento de um tresloucado gesto, Vera o segura pelo paletó: - Não, por favor! Fica com o paletó nas mãos. Pedroso não mais pertencia a este mundo. Afrouxa a gravata e calmamente põe-se a desabotoar a camisa. Retira-a e a pousa cuidadosamente sobre a mureta.

Alguns transeuntes começam a diminuir o passo. Pedroso descalça os sapatos e, inacreditavelmente, afrouxa o cinto. Num gesto firme saem, de uma só vez, as calças e a cueca, igualmente pousadas sobre a mureta, ao lado da camisa, deixando-o, salvo pela elegante gravata de seda pura, irremediavelmente pelado. Calça os sapatos, ajeita cuidadosamente o nó da gravata, pega sua inseparável maleta de executivo e posta-se, por inteiro, diante do grande monumento estatal. No desespero da compreensão da auto-imolação do seu já ex-chefe, Vera retira-se e vê, de soslaio, a figura embasbacada de Adolfo. Não tem ânimo sequer de cumprimentá-lo, e começa a chorar.

Pedroso está agora, em sua nudez redentora, caminhando por sobre a passarela, no sentido do BANCO. Pára, repete o gesto de contemplação que fizera ante a MONOPOL e retorna no sentido oposto. Em sua metódica loucura flana, olímpico, para lá e para cá, por sobre a passarela, detendo-se sempre, em cada uma de suas extremidades, para contemplar, ora um, ora outro, os dois esteios da economia nacional.

A cena causa grande comoção na platéia, muda, extasiada ante aquela figura que, salvo pelos últimos símbolos que a ligavam a uma existência real - a gravata, os sapatos, as meias e a maleta executiva - parecia ter atingido a transcendência. Ninguém ousa interferir, todos estão tocados pela graça de uma renúncia tão óbvia quanto enigmática em seu significado. Nem mesmo os homens da lei se dispõem a perturbar aquele rito: o cabo Aristeu e o soldado Moura, que acorrreram ao local, recuam desconcertados, abandonam o local.

Os dias vão se passando, as pessoas vão se acostumando àquela visão diuturna de um homem nu, a executar uma caminhada sem fim. A vida volta ao seu normal na Esplanada das Estatais, os executivos cuidam de seus afazeres, os camelôs camelotam, os pivetes piveteiam. Pedroso continua caminhando. Sua barba crescida, seu cabelo totalmente desgrenhado, sua fina gravata de seda francesa, já um trapo sebento, tudo lhe confere um ar de um santo de Caxemira. Baianas lhe oferecem cuscuz que ele sequer enxerga, mendigos tentam lhe oferecer tocos de pão, Adolfo e Vera desistem de lhe trazer as quentinhas que nunca serão tocadas. Pedroso se desconectara deste mundo e as pessoas acabaram, finalmente, se desconectando de Pedroso.

A cerimônia de posse de Buzzinatto na MONOPOL foi bastante concorrida. Em seu estentóreo discurso, o grande profissional traçara em poucas palavras a tônica de sua atuação: o combate à ineficiência, ao corporativismo e, sobretudo, à corrupção. Foi demoradamente aplaudido.

Assomando à janela, copinho de uísque na mão, dois participantes da solenidade avistam uma figura esquálida, movimentando-se com dificuldade, quase vergando ao peso de uma pasta, que parecia pesar como uma cruz. Atirando displicentemente a guimba ainda acesa de seu cigarro pela janela, um deles vira-se e pergunta, casualmente, sem de fato esperar ou desejar uma resposta:

- Afinal, por que ele faz aquilo?

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