Pedroso
A princípio Adolfo, um
diligente executivo que deixava o Edifício do BANCO na Avenida do Planejamento,
no centro da cidade de Malversalhes, não quis admitir para si próprio o que os
seus olhos teimavam em lhe informar. Deveria ser, é claro, efeito do calor.
Decerto, o calor em Malversalhes em pleno verão era de lascar. Ademais, Adolfo
vinha trabalhando muito, e sob situação de estresse cada vez maior. A brutal
recessão, o enxugamento do quadro de empregados, a mudança permanente das
regras do jogo dos negócios o estavam deixando presa fácil para todo um séquito
de mazelas psicossomáticas. Outro dia mesmo sentira uma tonteira em pleno
escritório e, pela janela, julgara divisar sombras estranhas. Já pensava em
tirar umas férias, fazer um relax. Agora, acontecia aquilo. Realmente, não
deveria estar bem: "aquilo", não era possível.
Duas freiras passam
contritas, em seu hábito de abrasar, a caminho da Catedral Metropolitana e, ao
avistarem aquilo param, de súbito, como que fulminadas. Apertam as mãos e,
transidas, murmuram, com os lábios trêmulos: coitado...
Uma velha mendiga, das
muitas que deambulam pela Esplanada das Estatais, onde se concentram os grandes
templos do estatismo de Cornucópia -
olha, extasiada, um leve e doce sorriso a trair recordações de um tempo de
passados enlevos.
Uma mulher chorando
tristemente se afasta da cena, camelôs suspendem seus negócios, alguns cães
vadios ladram, enquanto uma pequena multidão de passantes começa a parar,
estarrecida.
Todos olham aquilo.
Roubava muito. Insaciável.
Não roubava por necessidade, há muito nem mais por prazer. Era por inércia,
aquela propriedade física que faz com que o movimento, uma vez iniciado,
necessite da aplicação de uma força para detê-lo. E força para detê-lo era tudo
o que não havia, muito pelo contrário. Roubavam o Presidente da República e sua
malta, roubavam parlamentares, roubavam juizes, roubavam médicos e dentistas,
roubavam síndicos, roubavam policiais, roubavam, é claro, os ladrões
propriamente ditos, enfim... Roubavam!
Buzzinatto era um corrupto
visceral. Levar vantagem em qualquer transação era para ele um dogma, algo cujo
questionamento sequer roçava o nível mais recôndito de sua consciência. Levava
o seu em transações comerciais e financeiras, locupletava-se na compra e na
venda de produtos, na contratação de serviços e até no recolhimento de
impostos. Buzzinatto estava sempre ocupando a diretoria de alguma grande
empresa e, por azar dos contribuintes, alguma empresa pública. Homem de
inteligência e competência profissional pouco mais que mediana, destacava-se,
contudo, por sua grande esperteza, falta de escrúpulos e apetite pelo poder e,
sobretudo, pela obsessão por dinheiro.
Buzzinatto era um homem de
métodos mafiosos, um homem de esquemas. Isto em um país de leis indulgentes e
vontade de aplicá-las ainda mais frouxa lhe deixava em grande vantagem.
Especialista em maracutaias, cercava-se sempre, nas empresas, de uma turba de
vassalos complacentes e puxa-sacos, os quais, lhe ajudando a montar a teia de
dilapidação do erário, recebiam as migalhas que lhes comprariam o eterno
silêncio. Seus critérios de decisão eram sempre sórdidos, a fundamentar-se no
seu interesse pessoal ou no de algum amigo que, no futuro, se sentiria
compelido a dar a contrapartida ao nobre gesto.
Mas, Buzzinatto roubava
demais. Apesar de sua comprovada competência nas artes da rapinagem, todo o
mercado de trabalho sabia de sua fama e manifestava desconforto com a sua
presença. A teia mafiosa que ele tecera era, entretanto, inexpugnável garantia
contra a ameaça que pairava sobre a cabeça de tantos e tantos trabalhadores
honestos: "a rua da amargura". Porque aos honestos compete trabalhar,
trabalhar sempre e bem; seu único patrimônio, sua moeda de troca, é seu próprio
esforço.
Pedroso era um homem sério,
seriedade era o que ressaltava em sua passagem por tantas empresas,
especializado que era em implantação de novos empreendimentos industriais. Em
sua saga profissional, que já durava quase trinta anos, fora responsável por
negociações que chegavam à ordem do bilhão de dólares. Administrara, com total
carta branca dos acionistas, incontáveis operações nacionais e internacionais,
que iam da deliqüescente moeda nacional, o Cruz-Credo Novo, ao sonante Dólar,
das exóticas Rúpias de Siri-Lanka ao classudo Franco-Suíço, do lusitano Escudo
ao cobiçado Yen Japonês. Uma cesta de moedas que não tinha fim.
Pedroso era, repita-se, um
homem sério. De poucas palavras, enfrentava cada desafio profissional como uma
missão. No seu metier era conhecido como um profissional correto, competente,
embora com um certo quê de ingenuidade. Não jogava para as arquibancadas.
Trabalhava. Era um homem em paz com sua consciência, conquanto se sentisse, às
vezes, com uma sensação de ser um alienígena em meio a tantas safadezas perpetradas
pelos espertos. Quem sabe ele não seria apenas um idiota, ruminava em momentos
cada vez mais freqüentes de depressão. Tentava continuar acreditando que sua
honestidade seria, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde,
reconhecida. Entretanto, mais e mais o triunfo dos espertos o incomodava, a
chafurda dos corruptos, a impunidade e, por fim, a glorificação da
sem-vergonhice estavam lhe corroendo a alma. Era preciso fazer alguma coisa, se
imbuía de um sentimento de santa e urgente responsabilidade.
A caminhada pela Avenida
Central, até o restaurante "O Caçaralho" não foi nem mais nem menos
constrangedora para Pedroso do que o fôra em tantas outras vezes, embora,
dentro de si, surgisse a angústia de uma aziaga premonição. A degradação
da qualidade de vida impingida aos habitantes de Malversalhes tem a sua
apoteose na Avenida Central na hora do almoço, em mês de verão. Pedroso
caminhava adivinhando espaços entre a miríade
de transeuntes, as bancas de camelôs e as bancas de jornal, os
deficientes físicos e os miseráveis espalhados pelas calçadas, os buracos, o
lixo e o cocô. Sabia que a qualquer momento poderia ser colhido por um arrastão
de pivetes ou, mais simplesmente, ser assaltado mediante a irrefutável ameaça
de um tresoitão de algum marginal ou pelo tranco de trombadinhas. Tudo isso já
incorporara de tal forma que passara a ser parte de sua realidade. Ônibus
jorravam em catadupas pela avenida, buzinavam, expeliam fumos lazarentos,
roncavam ameaçadores, imobilizados no congestionamento que a desobediência
geral aos sinais de trânsito causava.
Pedroso caminhava, a
canícula era abrasadora, mas o que realmente assomava a sua consciência, como a
quintessência da agressão, eram os fedores. Os fedores eram realmente
fantásticos. Fedor de merda pura. Fedor de mijo podre. Muitos passos adiante
penetrava em área de interesse de outro fedor: a morrinha de suor azedo de
roupas nunca lavadas. Mas, logo esse fedor cedia à hegemonia de um outro ainda
maior, o de esgotos arrebentados, geiseres de água pútrida espoucando nas
calçadas, o qual seria por sua vez substituído pela acre catinga de sarjetas
ressecadas. Havia áreas de confluência de fedores, onde exaustores de
lanchonetes esguichavam a nojeira de suas frituras e o escapamento dos ônibus
vomitavam seus restos de hidrocarbonetos mal queimados. Havia o lixo azedo dos
restaurantes, freqüentemente não recolhidos pela Prefeitura. Era um fedor
aterrador, e Pedroso às vezes imaginava que todos os fedores que se digladiavam
pela supremacia das ruas iriam um dia se unir e materializar-se num mega-fedor
que a todos asfixiaria.
No "O Caçaralho"
encontra seu velho amigo Adolfo. Fazem suas pedidas, ele uma franciscana
"posta de badejo com legumes cosidos" e água mineral sem gás, pois
não sentia ânimo para iguarias mais requintadas, e o amigo "limalhas de
ferro com aguarrás", que é como Adolfo gostava de designar os pesadíssimos
acepipes com os quais se empanturrava , no caso, um "viradinho à
paulista", e uma caipirinha. Conversam sem muita animação, relembrando
velhas passagens de suas trajetórias profissionais, inúmeras dificuldades
compartilhadas, muitas brincadeiras, até que, num dado momento, Adolfo faz a
pergunta:
-
Leu o jornal de hoje?
-
Não, responde um desinteressado Pedroso.
- Está lá, insiste Adolfo,
enquanto trincha uma enorme costeleta de porco, parece que o Buzzinatto vai
mesmo ser o presidente da MONOPOL. Completa a frase engolindo uma tora da
costeleta, barrada com um pedaço de ovo frito por cima, fitando Pedroso, que se
esmera em separar as grandes espinhas de sua posta de badejo.
Mas, Pedroso não tem reação
imediata. Suas feições assumem um ar de um infinito cansaço, um olhar meio
vago, subitamente desinteressado do repasto.
- É, mesmo? Murmura, enfim.
- É, confirma Adolfo. Faz
sentido. Repare só. Já roubou em tudo quanto é lugar. Sempre que é demitido,
acaba saindo para um lugar melhor. Isso é assim mesmo, acaba ministro!
Acabam de
almoçar e Adolfo despede-se rápido pois tinha que ir ao BANCO para mais um
"round" da extenuante maratona de conseguir contratar um
financiamento para o mais novo empreendimento a seu encargo.
Pedroso está de volta a seu
escritório, mas não consegue trabalhar. O jornal aberto sobre sua mesa dá, com
destaque, a já quase certa nomeação de Buzzinatto para a presidência da MONOPOL.
O olhar de Pedroso está parado. Não responde sequer quando sua fiel e amiga
secretária lhe oferece um cafezinho. Vera conhecia seu chefe de longa data, e
estava acostumada com suas atitudes um tanto exóticas. Entretanto, sente algo
de inquietante naquele olhar vidrado, alguma coisa escapando ao controle.
Subitamente, sem pressa, com
fria determinação, Pedroso levanta-se de sua cadeira, pega sua maleta de
executivo e dirige-se à porta de saída do escritório.Vera, temendo pelo pior,
nem lhe dirige a palavra. Corre à mesa do chefe e procura adivinhar, no jornal,
a razão de tão estranho comportamento. Acompanha o chefe no elevador, e ele não
lhe nota a presença. Sai à rua e Vera ainda o segue, atônita.
Na Avenida do Planejamento
defrontam-se dois monumentais símbolos da estatização da República de
Cornucópia, os edifícios-sede da MONOPOL, uma giga "holding" da
indústria, e do BANCO, o Banco Nacional de Cornucópia, a piramidal agência do
desenvolvimento de tudo, ligados por uma passarela. Muito próximo, avista-se um
outro ícone da "nomenclatura" nacional, o prédio do BHC, o Banco
Habitacional de Cornucópia. Os três compõem aquilo que certa feita um motorista
de táxi chamou de "O Triângulo das Bermudas". "É por aqui que o
nosso dinheiro desaparece", arriscou, enquanto dirigia seu calhambeque
cacarecado e barulhento, lobrigando, pelo retrovisor, um ríctus de desconforto
na fisionomia de Pedroso, sentado no banco traseiro.
Particularmente, o prédio do
BANCO é um glorioso atentado ao bom senso, com sua fria estrutura toda
guarnecida em vidro fumê, em pleno inferno tropical, a consumir inimagináveis
quantidades de energia em seu sistema de ar condicionado central, e a gerar
fungos e ácaros, gostosamente refestelados em felpudos tapetes de asmática ostentação.
Pigarreando muito, com o nariz coçando, Adolfo sai do BANCO e caminha pela
passarela no sentido da MONOPOL, quando a visão literalmente o imobiliza.
- Posso fazer alguma coisa?
Pergunta Vera. Não obtém resposta. Pedroso caminha obstinado, com uma
determinação de assustar.
Chegando à frente da
MONOPOL, Pedroso, enfim, pára. Caminha em direção ao meio da passarela por
sobre a Avenida do Planejamento, frente à mureta lateral, contempla o
horizonte, num olhar de adeus.
Subitamente aterrorizada
pelo pressentimento de um tresloucado gesto, Vera o segura pelo paletó: - Não,
por favor! Fica com o paletó nas mãos. Pedroso não mais pertencia a este mundo.
Afrouxa a gravata e calmamente põe-se a desabotoar a camisa. Retira-a e a pousa
cuidadosamente sobre a mureta.
Alguns transeuntes começam a
diminuir o passo. Pedroso descalça os sapatos e, inacreditavelmente, afrouxa o
cinto. Num gesto firme saem, de uma só vez, as calças e a cueca, igualmente
pousadas sobre a mureta, ao lado da camisa, deixando-o, salvo pela elegante gravata
de seda pura, irremediavelmente pelado. Calça os sapatos, ajeita cuidadosamente
o nó da gravata, pega sua inseparável maleta de executivo e posta-se, por
inteiro, diante do grande monumento estatal. No desespero da compreensão da
auto-imolação do seu já ex-chefe, Vera retira-se e vê, de soslaio, a figura
embasbacada de Adolfo. Não tem ânimo sequer de cumprimentá-lo, e começa a
chorar.
Pedroso está agora, em sua
nudez redentora, caminhando por sobre a passarela, no sentido do BANCO. Pára,
repete o gesto de contemplação que fizera ante a MONOPOL e retorna no sentido
oposto. Em sua metódica loucura flana, olímpico, para lá e para cá, por sobre a
passarela, detendo-se sempre, em cada uma de suas extremidades, para
contemplar, ora um, ora outro, os dois esteios da economia nacional.
A cena causa grande comoção
na platéia, muda, extasiada ante aquela figura que, salvo pelos últimos
símbolos que a ligavam a uma existência real - a gravata, os sapatos, as meias
e a maleta executiva - parecia ter atingido a transcendência. Ninguém ousa
interferir, todos estão tocados pela graça de uma renúncia tão óbvia quanto
enigmática em seu significado. Nem mesmo os homens da lei se dispõem a
perturbar aquele rito: o cabo Aristeu e o soldado Moura, que acorrreram ao
local, recuam desconcertados, abandonam o local.
Os dias vão se passando, as
pessoas vão se acostumando àquela visão diuturna de um homem nu, a executar uma
caminhada sem fim. A vida volta ao seu normal na Esplanada das Estatais, os
executivos cuidam de seus afazeres, os camelôs camelotam, os pivetes piveteiam.
Pedroso continua caminhando. Sua barba crescida, seu cabelo totalmente
desgrenhado, sua fina gravata de seda francesa, já um trapo sebento, tudo lhe
confere um ar de um santo de Caxemira. Baianas lhe oferecem cuscuz que ele
sequer enxerga, mendigos tentam lhe oferecer tocos de pão, Adolfo e Vera
desistem de lhe trazer as quentinhas que nunca serão tocadas. Pedroso se
desconectara deste mundo e as pessoas acabaram, finalmente, se desconectando de
Pedroso.
A cerimônia de posse de
Buzzinatto na MONOPOL foi bastante concorrida. Em seu estentóreo discurso, o
grande profissional traçara em poucas palavras a tônica de sua atuação: o
combate à ineficiência, ao corporativismo e, sobretudo, à corrupção. Foi
demoradamente aplaudido.
Assomando à janela, copinho
de uísque na mão, dois participantes da solenidade avistam uma figura
esquálida, movimentando-se com dificuldade, quase vergando ao peso de uma
pasta, que parecia pesar como uma cruz. Atirando displicentemente a guimba
ainda acesa de seu cigarro pela janela, um deles vira-se e pergunta,
casualmente, sem de fato esperar ou desejar uma resposta:
- Afinal, por que ele faz
aquilo?
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