domingo, 1 de abril de 2018

Finitude





Finitude

Durante alguns anos, eu e um prezado amigo cultivamos um gosto comum: o de escrever crônicas e outras formas de manifestação literária, e postá-las, cada um em seu próprio blog.  Sempre que fazíamos uma nova postagem alertávamos um ao outro, na expectativa do recebimento de uma generosa recepção. Nossos contatos eram basicamente no mundo virtual, eu o conhecia, assim como a sua família, mas nossos encontros físicos eram pouco frequentes. Circunstâncias da vida.
 Esse amigo tinha uma escrita elegante e de grande apreço ao vernáculo. Deliciei-me, particularmente, em acompanhar a sua querela com Millôr Fernandes a propósito de uma crase, quando o grande humorista escrevia no antigo Jornal do Brasil. Millôr era conhecido por sua brilhante inteligência, talento múltiplo, humor ferino e domínio do idioma, mas, também, por um temperamento irascível. Pois não é que o meu amigo ousou argumentar que não cabia uma crase em um texto do Millôr? Contrariando todas as expectativas, sua colocação foi educadamente recebida, embora contestada. Na tréplica, meu amigo apresentou novos argumentos contra a crase. Mais uma vez Millôr respeitosamente analisou a argumentação, concordou que ela era válida de um modo geral, mas que, naquele caso específico, cabia, sim, a crase. Assim era o genial Millôr, osso duro de roer.
As crônicas do meu amigo eram, ao mesmo tempo, ligeiras e de aguda percepção do ser humano. Prosa gostosa, delicada e ao mesmo tempo profunda.  Era com muita alegria que eu as degustava e, ainda com mais alegria, que recebia seus elogios. Ele era de uma geração anterior à minha, eu ainda nos sessenta, ele já entrado nos oitenta, sobrevivera a muitos encontros com a Dama de Negro, descritos com senso de humor em seus textos, sempre ressurgindo com espírito jovem e estoicamente aceitando as adversidades da vida. Nunca temeu o dia em que partiria para sempre, escrevia sobre isso com naturalidade, sem qualquer receio ou amargura. Um dia ele faleceu, isso ocorreu há poucos anos. Não voltei a ter contato com seus queridos familiares, dentre ao quais já não se encontrava sua amada esposa, companheira de muitas décadas e que partira alguns anos antes dele.
Por que estou falando desse meu amigo? Creio que pela sensação da minha própria finitude. Inspecionando a barra de “favoritos” em meu computador (mero acaso?), vi que o link do seu blog ainda lá estava. Curioso, fui ao blog, reli diversas daquelas crônicas, a última delas postada em 08 de maio de 2015. Meu amigo se fora, não haveria mais crônicas naquele espaço. Sensação estranha para mim. Diferentemente de um livro, e ele escrevera alguns, um produto pronto e acabado, um blog é um organismo vivo, em frequente mutação. Certa feita li que uma pessoa sobrevive à própria morte enquanto sua lembrança permanecer na memória de alguém. Obviamente não se falava de personalidades históricas como Napoleão Bonaparte, Abraham Lincoln, Lev Tolstói, Albert Einstein, Beethoven, Aristóteles e um vasto ciclo de personagens que, em suas áreas de atuação, deixaram marcas indeléveis na História, mas, sim, das pessoas comuns, aquelas que foram importantes tão somente para um limitado séquito de parentes e amigos. Livros escritos por essas pessoas estariam condenados ao esquecimento nas estantes de seus descendentes e dos amigos, até o descarte final. Cartas, bilhetes e registros de sua presença em papel fotográfico teriam idêntico destino, assim como trabalhos arquivados, já na era digital, no HD de um computar pessoal, disquetes ou CD´s. Todos esses artefatos, de existência física, mais cedo ou mais tarde simplesmente desapareceriam. Sobre essas pessoas, compondo a imensa maioria da humanidade, nenhum historiador jamais se debruçaria para discutir sua trajetória de vida, inclusive pela completa falta de material de pesquisa.
Mas, e um blog? Ele não tem existência física, é uma coletânea de dados registrados na nuvem. Mesmo que apagado do computador onde foi plantado, ele poderia ser acessado de algum lugar qualquer, ainda que congelado na última postagem, após o desaparecimento físico de seu autor, por um tempo indefinido. Não estaria, dessa forma, perpetuado? Mas, afinal, o que é a tal nuvem? É apenas uma metáfora. O conteúdo da nuvem é armazenado em um servidor, essencialmente um conjunto de HDs ligados em rede. Os prédios que abrigam os servidores, os data centers, estão espalhados em todo o mundo, são verdadeiras fortalezas, com vários níveis de segurança, tanto digital como física. Mas, é claro, não estão imunes a uma destruição provocada pela ação da natureza ou do homem, circunstância que vem preocupando a mente de cientistas afetos à Informática, à Física, à Matemática e a campos correlatos. Um apagão digital poderia trazer consequências inimagináveis à humanidade.
Então, onde ficamos? Sejam religiosos, aqueles que creem na vida após a morte, ou ateus, a vida terrena um dia se extingue, e os traços deixados pelo comum dos mortais aqui no planeta mais cedo ou mais tarde, também se extinguirão. Desolador? Não necessariamente, embora esse pensamento possa nos entristecer por instantes. Certamente nossa partida será sentida durante um tempo indeterminado por aqueles com quem mantivemos um convívio de amor e de amizade. Mas, sobretudo, devemos evocar os nossos entes queridos que já partiram não através de sofridas lembranças, mas, sim, da graça de termos com eles compartilhado momentos de felicidade neste nosso efêmero caminhar pela existência.
12/03/2018

2 comentários:

  1. Belíssima crônica, amigo querido. Oportunidade para refletir sobre a fragilidade e efemeridade da vida. Gratidão.

    ResponderExcluir
  2. Lindos pontos e belíssima escrita!

    ResponderExcluir