Finitude
Durante alguns anos, eu e um
prezado amigo cultivamos um gosto comum: o de escrever crônicas e outras formas
de manifestação literária, e postá-las, cada um em seu próprio blog. Sempre que fazíamos uma nova postagem alertávamos
um ao outro, na expectativa do recebimento de uma generosa recepção. Nossos
contatos eram basicamente no mundo virtual, eu o conhecia, assim como a sua
família, mas nossos encontros físicos eram pouco frequentes. Circunstâncias da
vida.
Esse amigo tinha uma escrita elegante e de
grande apreço ao vernáculo. Deliciei-me, particularmente, em acompanhar a sua
querela com Millôr Fernandes a propósito de uma crase, quando o grande
humorista escrevia no antigo Jornal do Brasil. Millôr era conhecido por sua
brilhante inteligência, talento múltiplo, humor ferino e domínio do idioma,
mas, também, por um temperamento irascível. Pois não é que o meu amigo ousou
argumentar que não cabia uma crase em um texto do Millôr? Contrariando todas as
expectativas, sua colocação foi educadamente recebida, embora contestada. Na
tréplica, meu amigo apresentou novos argumentos contra a crase. Mais uma vez
Millôr respeitosamente analisou a argumentação, concordou que ela era válida de
um modo geral, mas que, naquele caso específico, cabia, sim, a crase. Assim era
o genial Millôr, osso duro de roer.
As crônicas do meu amigo eram, ao
mesmo tempo, ligeiras e de aguda percepção do ser humano. Prosa gostosa,
delicada e ao mesmo tempo profunda. Era
com muita alegria que eu as degustava e, ainda com mais alegria, que recebia
seus elogios. Ele era de uma geração anterior à minha, eu ainda nos sessenta,
ele já entrado nos oitenta, sobrevivera a muitos encontros com a Dama de Negro,
descritos com senso de humor em seus textos, sempre ressurgindo com espírito
jovem e estoicamente aceitando as adversidades da vida. Nunca temeu o dia em
que partiria para sempre, escrevia sobre isso com naturalidade, sem qualquer receio
ou amargura. Um dia ele faleceu, isso ocorreu há poucos anos. Não voltei a ter
contato com seus queridos familiares, dentre ao quais já não se encontrava sua
amada esposa, companheira de muitas décadas e que partira alguns anos antes
dele.
Por que estou falando desse meu
amigo? Creio que pela sensação da minha própria finitude. Inspecionando a barra
de “favoritos” em meu computador (mero acaso?), vi que o link do seu blog ainda
lá estava. Curioso, fui ao blog, reli diversas daquelas crônicas, a última
delas postada em 08 de maio de 2015. Meu amigo se fora, não haveria mais
crônicas naquele espaço. Sensação estranha para mim. Diferentemente de um
livro, e ele escrevera alguns, um produto pronto e acabado, um blog é um
organismo vivo, em frequente mutação. Certa feita li que uma pessoa sobrevive à
própria morte enquanto sua lembrança permanecer na memória de alguém.
Obviamente não se falava de personalidades históricas como Napoleão Bonaparte,
Abraham Lincoln, Lev Tolstói, Albert Einstein, Beethoven, Aristóteles e um
vasto ciclo de personagens que, em suas áreas de atuação, deixaram marcas indeléveis
na História, mas, sim, das pessoas comuns, aquelas que foram importantes tão
somente para um limitado séquito de parentes e amigos. Livros escritos por
essas pessoas estariam condenados ao esquecimento nas estantes de seus
descendentes e dos amigos, até o descarte final. Cartas, bilhetes e registros
de sua presença em papel fotográfico teriam idêntico destino, assim como
trabalhos arquivados, já na era digital, no HD de um computar pessoal, disquetes
ou CD´s. Todos esses artefatos, de existência física, mais cedo ou mais tarde
simplesmente desapareceriam. Sobre essas pessoas, compondo a imensa maioria da
humanidade, nenhum historiador jamais se debruçaria para discutir sua trajetória
de vida, inclusive pela completa falta de material de pesquisa.
Mas, e um blog? Ele não tem
existência física, é uma coletânea de dados registrados na nuvem. Mesmo que apagado do computador onde foi plantado, ele
poderia ser acessado de algum lugar qualquer, ainda que congelado na última
postagem, após o desaparecimento físico de seu autor, por um tempo indefinido. Não
estaria, dessa forma, perpetuado? Mas, afinal, o que é a tal nuvem? É apenas
uma metáfora. O conteúdo da nuvem é armazenado em um servidor, essencialmente
um conjunto de HDs ligados em rede. Os prédios que abrigam os servidores, os
data centers, estão espalhados em todo o mundo, são verdadeiras fortalezas, com
vários níveis de segurança, tanto digital como física. Mas, é claro, não estão
imunes a uma destruição provocada pela ação da natureza ou do homem,
circunstância que vem preocupando a mente de cientistas afetos à Informática, à
Física, à Matemática e a campos correlatos. Um apagão digital poderia trazer
consequências inimagináveis à humanidade.
Então, onde ficamos? Sejam
religiosos, aqueles que creem na vida após a morte, ou ateus, a vida terrena um
dia se extingue, e os traços deixados pelo comum dos mortais aqui no planeta
mais cedo ou mais tarde, também se extinguirão. Desolador? Não necessariamente,
embora esse pensamento possa nos entristecer por instantes. Certamente nossa
partida será sentida durante um tempo indeterminado por aqueles com quem mantivemos
um convívio de amor e de amizade. Mas, sobretudo, devemos evocar os nossos
entes queridos que já partiram não através de sofridas lembranças, mas, sim, da
graça de termos com eles compartilhado momentos de felicidade neste nosso
efêmero caminhar pela existência.
12/03/2018
Belíssima crônica, amigo querido. Oportunidade para refletir sobre a fragilidade e efemeridade da vida. Gratidão.
ResponderExcluirLindos pontos e belíssima escrita!
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