Uma questão de Ética (2)
Há cerca de um ano postei novamente
no meu blog um texto sob o título “Uma questão de Ética”, no qual o professor
Ben Dupré, em seu livro “50 ideias de filosofia que você precisa aprender”
(Planeta, 2007) coloca a seguinte situação:
“O sr. Quelch não sabia se tubarões
tinham lábios e, se tinham, se podiam lambê-los; mas sabia que, se tivessem e
pudessem, era exatamente isso que estavam fazendo agora. O balão caía cada vez
mais rápido na direção do mar, e ele podia ver claramente, descrevendo círculos
na água, as muitas barbatanas dos tubarões reunidos para jantar (...) O
sr. Quelch sabia que nos próximos dois minutos ele e os melhores alunos
de Greyfriars [uma escola fictícia britânica] virariam isca de tubarão ― a menos
que se livrassem de mais lastro. Mas tudo já havia sido jogado fora do cesto ―
tudo o que restava eram os seis meninos e ele. Era óbvio que só Bunter tinha
peso suficiente para salvar o dia. Uma situação difícil para o Corujão Gordo,
mas não havia outra saída... [está implícito que o sr. Quelch, o único capaz de
manejar o balão, não seria uma opção de alívio de lastro].”
Só existem mesmo duas opções: os seis meninos, incluindo Bunter, caem no mar e
são devorados pelos tubarões, ou apenas Bunter é jogado no mar e comido. Para
Bunter, o desfecho seria o mesmo, iria morrer de qualquer forma, mas, no caso
dele ser atirado fora do balão, os demais se salvariam. É o que se chamaria uma
“Escolha de Sofia”. Dupré provoca: é valido sacrificar Bunter? O fim (salvar
várias vidas inocentes) justifica o meio (tirar uma vida inocente)? O que você
faria? Está em jogo uma importante linha divisória de ética ― a linha que
separa as teorias baseadas no dever (deontológicas) e as baseadas nas
consequências (consequencialistas).
A postagem
original gerou um estimulante debate. Voltei a refletir sobre o tema ao ler um
dilema semelhante, mas em escala imensamente mais radical, proposto por
Dostoiévski em seu livro “Os Irmãos Karamazóv”, evocado pela escritora Sara
Bakewell em seu livro “No café EXISTENCIALISTA”. Ivan Karamázov propõe ao seu
irmão Aliócha que ele se imagine possuído de um poder tal que fosse capaz de
criar um mundo no qual as pessoas vivessem em completa paz e felicidade até o
fim da História. Mas há um preço a pagar, esclarece Ivan. Para isso, Aliócha
teria que torturar até a morte uma pequena criatura, um bebê, por exemplo. Você
faria isso? - Inquire Ivan, recebendo como resposta um categórico não de seu
irmão, para quem nada justificaria a tortura de um bebê, não importa a título
de que. Trata-se novamente de uma posição deontológica, semelhante àquela
adotada por aqueles que, no dilema anterior, não atirariam o jovem Bunter ao
mar para salvar o restante dos ocupantes do balão.
Dostoiévski era uma importante
referência para muitos dos filósofos existencialistas. Assim sendo, a colocação
do grande escritor foi objeto de manifestação da parte de diversos expoentes
dessa corrente filosófica. Albert Camus posicionou-se inteiramente favorável à
escolha de Aliócha. Em seu ensaio “Nem vítimas nem carrascos” escreveu: “Jamais
voltarei a ser um daqueles, sejam quem forem, que fazem concessões ao
assassinato”. Qualquer que fosse o resultado, comenta Bakewell, “ele não
apoiaria nenhuma justificativa formal da violência, sobretudo por parte do
Estado.” Jean-Paul Sartre, em meados da década de 1940, tinha uma posição
semelhante à de Camus, pelo que veio a ser criticado por outro expoente do
existencialismo, Maurice Merleau-Ponty, em sua fase pró soviética.
Posteriormente Sartre, assim como Simone de Beauvoir, se afastaram daquela
posição, considerando “que era possível e até necessário pesar e medir as vidas
de uma maneira judiciosa, e que Aliócha, com sua posição, fugia a tal dever.
Passaram a achar que não fazer esse cálculo - contrapor um bebê agora a milhões
de futuros bebês - era puro egoísmo, ou simples melindre.” Sartre faz uma
contundente crítica à postura deontológica de Aliócha, o
personagem fictício de Dostóievski (qual seria a escolha do grande escritor?),
e de Camus, personagem bastante concreto. Mas seria o caso de se perguntar a
Sartre qual a garantia de que matando o bebê daquela maneira perversa se
estaria salvando milhões de bebês futuros. Não há garantia alguma, uma decisão
consequencialista numa situação extrema como essa, ou em qualquer outra que
envolva derramamento de sangue e mortes em larga escala, será alicerçada em uma
profunda convicção de que esse será o preço para atingir-se uma sonhada utopia,
entendida como “qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal,
fundamentada em leis justas e em instituições políticas e econômicas
verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da comunidade” (Houaiss). Nessas
situações a decisão será sempre uma aposta, diferentemente do dilema do balão,
onde se poderia estar certo de que o sacrifício de um dos meninos salvaria o
restante dos seus ocupantes. Poderíamos configurar ainda uma infindável série
de situações em que a opção consequencialista atingiria as consequências
almejadas. Imagine-se, por exemplo, um médico num campo de batalha ao se
defrontar com um soldado com ferimentos extremamente graves em uma das pernas,
já em vias de gangrenar. Não há cura possível para a perna, mas a amputação
muito provavelmente terá como consequência salvar a vida do soldado. Vale o
sacrifício da perna condenada. O médico exerce essa escolha, em si pesarosa,
mas necessária se o objetivo primordial é salvar uma vida.
É natural que em situações em que
numa sociedade submetida a condições de extremo sofrimento e injustiça muitos
se sentirão tentados a optar por alternativa consequencialista, uma revolução
por exemplo, na esperança, ou profunda convicção, de que o derramamento de
sangue será o preço a o pagar para mudar radicalmente a condição opressora da
sociedade. A opção seria justa, os
fins justificariam os meios, como creem os marxistas. Mas, novamente, não há
garantia de que, findo o processo, a nova ordem será melhor do que a anterior.
Superado aquilo que o sociólogo Francesco Alberoni chama “de estado nascente”, do
encantamento do povo com a nova condição, poderá advir um progressivo
desencantamento com a transformação atingida. Tal situação é ilustrada por
George Orwell em sua fábula política “A Revolução dos Bichos)”: “As criaturas
de fora [da sala] olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco
e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem
era homem, quem era porco.” ― constatavam os demais bichos que os porcos, tendo
assumido ditatorialmente o poder após a revolução dos bichos, que expulsara os
donos da fazenda, seus exploradores, com o apoio e o entusiasmo de todos os
bichos da fazenda, agora adotavam os vícios dos humanos e confraternizavam com
eles num festim de falsidades, jogatina e bebedeira.
Quem está certo? Trotsky, ao afirmar que “O fim pode justificar os meios
enquanto houver algo que justifique o fim.”, ou Immanuel Kant, que delineia um
caminho o mais oposto possível de se conceber aos sistemas cuja ética seja
baseada nas consequências? Cabe a cada um exercer com integridade a sua escolha
diante de uma situação concreta, muitas vezes demandando reação imediata.
Ressalve-se, por fim, que tal escolha poderá ser oposta àquela exercida no
momento do mero exercício intelectual. Conhecendo-se a personalidade e a história
de vida de Sartre, Trotsky e Camus podemos acreditar firmemente que eles numa
situação real seriam coerentes com suas concepções filosóficas: Sartre e
Trotsky pelo consequencialismo, e Camus
pela deontologia. O comum dos mortais teria tal coerência?
Abril/2018
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