segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O Anjo Exterminador - Uma visão existencial



O Anjo Exterminador – Uma visão existencial

Em um conhecido filme de Woody Allen, “Meia Noite em Paris”, o genial diretor transporta o protagonista do filme da Paris atual para a Paris da década de 1920, onde fervilhavam muitos dos maiores talentos daquele século, tais como: os pintores Pablo Picasso, Salvador Dali e Man Ray, os escritores Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald, o compositor Cole Porter e o cineasta Luiz Buñuel. Em um dado momento o protagonista lança ao então jovem Buñuel a seguinte provocação: Por que você não faz um filme reunindo todos os personagens em uma sala da qual eles não conseguem sair? E Buñuel, intrigado, responde: Mas porque eles não conseguem sair? Esse é o argumento do filme O Anjo Exterminador, que o diretor viria a realizar em 1962. Buñuel tornou-se conhecido ainda naquela década de vinte ao realizar, juntamente com Salvador Dali, o filme Um Cão Andaluz, uma obra bastante representativa de um movimento artístico e literário iniciado em Paris e que foi denominado Surrealismo.
O Surrealismo, ou Super-realismo, que teve como seu mentor e principal líder o poeta e crítico André Breton, foi fortemente influenciado pela teoria psicanalítica de Sigmund Freud e enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa. Outra influência exercida sobre o movimento foi a do marxismo. O surrealismo teve como um de seus objetivos produzir uma arte que se pretendia liberta das exigências da lógica e da razão, indo além da consciência cotidiana e visando expressar o mundo do inconsciente e dos sonhos. Os surrealistas repudiaram a chamada ditadura da razão e valores burgueses como pátria, família, religião, trabalho e honra. Contra esses valores a nova ordem se valeria de recursos como o humor, o sonho e a contra-lógica para libertar o homem de sua existência utilitária, subvertendo as idéias de bom gosto e decoro. Na arte surrealista, seja nos quadros de Picasso e de Salvado Dali, seja nos filmes de Luis Buñuel, não há lugar para a ordem, a lógica, a explicação racional, um fechamento. Ela é aberta, deve ser apreendida pelos sentidos, pois nela o irreal é tão verdadeiro quanto o real, o sonho e a realidade são vasos comunicantes, como prega o manifesto escrito por André Breton. Extremamente perspicazes são os comentários sobre Picasso emitidos por Kafka (ele próprio autor de uma obra literária com traços surrealistas), conforme anotados por seu tradutor e comentador Modesto Carone (1): “Ele [Picasso] apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”... “a arte é um espelho que adianta como um relógio”, e nesse ponto Kafka sugeriria que Picasso estaria refletindo alguma coisa que um dia seria lugar comum da percepção – “não as nossas formas, mas as nossas deformidades”.
O Anjo Exterminador − o filme é praticamente todo rodado em um ambiente claustrofóbico: cerca de vinte convidados, saídos de uma ópera juntamente com o casal anfitrião, chegam a uma grande mansão para um requintado jantar, após o qual se dirigem a uma sala de estar da qual não conseguem sair. Muitos dos elementos do surrealismo encontram-se presentes nesse filme, assim como em tantos outros do diretor. Lá encontra-se a feroz crítica à burguesia − um posicionamento marxista − retratada em personagens empostados, arrogantes, hipócritas, destituídos de solidariedade. Na medida em que os dias e as noites vão se passando esses personagens, sob a pressão psicológica do íntimo convívio a que se auto-impuseram, e privados até mesmo de comida, vão perdendo seu verniz de civilização e mostrando sua face mais sórdida. Em um crescente conflito entre si eles descobrem, como os três condenados ao inferno no texto “Huis Clos” (traduzido em português como Entre Quatro Paredes), do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, que "o inferno são os outros". Sem uma explicação para a insólita condição em que eles próprios se colocaram buscam um culpado: seria o anfitrião, que os teriam conduzido àquela condição e, por isso, deveria ser executado. A salvo da ignominia foi colocada a criadagem que, numa espécie de premonição do que iria acontecer decide, pouco antes do início do jantar e sem qualquer explicação aceitável, abandonar o serviço. Fica apenas o submisso mordomo, uma espécie de pelego de seus patrões. Aqui transparece uma simpatia de Buñuel com as classes menos favorecidas, assim como na cena final em que a polícia surge distribuindo pancadas a torto e a direito no povo nas ruas. Configura-se, novamente, um posicionamento marxista do diretor. O surrealismo - a falta de explicação lógica -  está em muitas cenas: a mão “solta” que se move pelo chão da sala, o braço de um morto que se projeta para fora de um compartimento, uma mulher que guarda duas patas de galinha em sua bolsa, um urso que vaga pela mansão, uma mulher que atira uma pedra quebrando uma vidraça etc. E há o momento em que um dos personagens, uma outra mulher, se dá conta de que, após tantos dias confinados, ocupando aleatoriamente inúmeras posições na sala, eles encontram-se exatamente na mesma posição em que a inusitada situação principiara. Ela pede a todos que permaneçam onde estão, e que uma das convidadas volte a tocar ao piano a mesma obra que executara pouco antes que o “encanto” se apoderasse de todos. E pede ainda que o diálogo subseqüente ao término da execução seja repetido exatamente como ocorrera. É uma situação que nos faz recordar a teoria do eterno retorno de Nietzsche. A magia então se desfaz e todos já podem sair livremente. E saem apenas para se verem, ao final da película, novamente confinados em uma igreja ao término da cerimônia religiosa. Até mesmo o próprio padre, e seus assistentes, se sentem impedidos de deixar a igreja. A religiosidade e a hipocrisia da instituição religiosa estão sempre presentes no filme através de imagens, de cantos gregorianos, de apelações a Cristo apenas em momentos de aflição, do badalar de sinos a chamar as ovelhas, os “cordeiros de Deus” para a Igreja.
Resta a grande pergunta: por que as pessoas sofrem, e até morrem, mas não conseguem sair de um local onde as portas estão abertas, e até mesmo as pessoas que estão aglomeradas fora da mansão não conseguem entrar? Deixaremos de lado uma possível variedade de explicações psicanalíticas (pulsão de morte...) e/ou marxistas e partiremos do comentário do próprio Buñuel em sua autobiografia (Meu Último Suspiro) conforme anotado por Ariana Gondim (2). Segundo essa anotação, o entendimento de Buñuel é o de que o seu filme “é um estudo sobre a vontade: o que faz alguém caminhar para alguma direção ou mover um braço, por exemplo? Os personagens querem passar pela porta, mas parecem que simplesmente se esqueceram como se faz para isto...”. Uma abordagem existencialista teria um entendimento diverso. Segundo Sartre, o homem está condenado a ser livre. Ele é livre, em quaisquer circunstâncias, para fazer suas escolhas, e ser responsável por elas. Se os personagens decidiram não cruzar os umbrais da sala que os confinava foi por sua própria escolha, e não porque se haviam esquecido de como fazê-lo ou por outra razão qualquer. Se decidiram ficar, e continuar na sala com todo o sofrimento que isso lhes trazia, sem que houvesse qualquer impedimento concreto para dela se libertarem, foi porque assim escolheram. E quando naquele momento do “eterno retorno” decidiram sair foi novamente por ter interpretado que a volta àquelas exatas circunstâncias que os haviam paralisado era agora, inversamente, um sinal de que estavam livres para sair. E, por fim, novamente escolheram não sair da igreja após a missa, sem que, uma vez mais, concretamente nada os impedissem de fazê-lo. Agora, permanece outra questão: por que optaram pelo sofrimento, e repetiram a mesma escolha após ter experimentado suas agruras? Isso, longe de configurar um comportamento absurdo, apenas exibe um modo de ser, no dizer de outro filósofo existencialista, Martin Heidegger, dentre tantas outras possibilidades abertas ao homem: permanecer numa condição de restrição de liberdade. Para o existencialista, opta pelo sofrimento todo aquele que inventa justificativas inculpando o Outro para persistir em situações adversas – em um emprego torturante, em uma relação conflituosa, na adição a drogas etc. E opta pelo sofrimento extremo – sua auto-aniquilação − a própria humanidade quando persiste em suas guerras e na insensata destruição da natureza para satisfazer os seus caprichos. A escolha do sofrimento é algo demasiadamente humano.

Notas:
(1)    CARONE, Modesto, in Franz Kafka Essencial. São Paulo: São Paulo, 2011, p.153.
(acesso em 19/07/2018)

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