quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Anotações sobre o livro A Náusea, de Sartre



ANOTAÇÕES SOBRE O LIVRO A NÁUSEA, DE SARTRE

                As anotações que se seguem tomaram por base a versão em português editada em 2006 pela Editora Nova Fronteira S.A., a partir do original da obra em francês de Jean-Paul Sartre, La Nausée.

           A obra de Sartre compõe um retrato da condição existencial do homem através do personagem Roquentin, pautada em anotações feitas por este em um diário de onde ressalta uma vida sem qualquer sentido, passada numa cidadezinha provinciana chamada Bouville.

            O personagem chega a tal lugar após vagar por diversos países, com um frouxo propósito de escrever uma biografia sobre um certo Sr. de Rollebon, um ilustre e já falecido membro da aristocracia de Bouville. Escrever sobre o Sr. de Rollebon, uma tarefa que Roquentin vai desempenhando com desagrado, é, de certa forma, uma artimanha para preencher o tempo do personagem. Mas o projeto será abandonado: “... um livro de história, isso fala do que existiu-jamais um ente pode justificar a existência de outro ente. Meu erro foi querer ressuscitar o Sr. de Rollebon” (p.220). Roquentin perde mais uma referência em sua vida quando no seu reencontro com uma antiga namorada, Anny, ele se vê irreversivelmente apartado dela.

            Roquentin vive intensamente sua angústia e sabe que os expedientes e as ocupações do dia a dia nada mais são do que artimanhas para disfarçar esta condição. A família, os passeios dominicais, o enamoramento, tudo tem como única finalidade mascarar a angústia constitutiva do ser humano. Não há nenhuma razão para existir e, apesar disso, comemos e bebemos para conservar nossa preciosa existência (p.142). Ao contemplar um casal de jovens que almoça em uma mesa próxima à sua, reflete: “Estão à vontade... acham que o mundo está bem como está, exatamente como é, e cada um deles provisoriamente colhe o sentido de sua vida no outro. Dentro em breve constituirão uma só vida para ambos, uma vida lenta e morna que não terá qualquer sentido- mas eles não se aperceberão disso” (p.136). E prossegue: “...eles vão várias vezes por semana aos bailes e aos restaurantes, para oferecer o espetáculo de suas dancinhas rituais e mecânicas... Afinal é preciso matar o tempo. São jovens... dão tempo ao tempo, e não estão errados nisso. Quando tiverem dormido juntos, terão que descobrir outra coisa para encobrir o enorme absurdo de suas existências” (p.141).

            O personagem está todo o tempo emitindo juízo sobre o Ser, em aguda consciência reflexiva. É capaz de viver a contingência, a gratuidade e o absurdo do Ser: “Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso”. A náusea surge dessa revelação. É um sentimento que vai se desenhando já a partir das primeiras páginas do livro, se intensificando, até eclodir quando Roquentin está sentado em um banco num jardim público, ao contemplar a raiz de um castanheiro que se enfiava na terra por baixo do banco. Este é um momento chave na vida do personagem. “Roquentin percebe que não é apenas a árvore, mas o Ser da árvore que o incomoda. É o modo como ela está simplesmente ali, inexplicável e sem qualquer razão, negando-se a fazer sentido ou a se enquadrar em alguma coisa”, conforme descreve Sarah Bakewell em seu livro “No Café EXISTENCIALISTA” (OBJETIVA, 2016). E desiste de continuar a escrever a biografia do Sr. de Rollebon.

O conceito de náusea refere-se justamente ao sentimento experimentado diante do real, quando se toma consciência de que ele é desprovido de razão, absurdo. “O essencial é a contingência... a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar aqui; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los” (p.165). Roquentin crê que há pessoas que compreenderam isso, mas que tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. “Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade, eu próprio” (p.165). A náusea, explica ele, ocorre quando nos apercebemos disso, sentimos o estomago embrulhar, e tudo se põe a flutuar. A náusea é constitutiva: “A náusea não me abandonou e não creio que me abandone tão cedo; mas já não estou submetido a ela, já não se trata de uma doença, nem de um acesso passageiro: a náusea sou eu” (p.159). Roquentin exerce agudamente a consciência reflexiva.

Ao final do texto, Roquentin, escuta repetidas vezes uma canção norte-americana, na qual uma voz de negra canta um estribilho Some of these days; you´ll miss me honey [Um dia desses você vai me perder, querido(a)] e se põe a refletir sobre o milagre que produziu a canção, sobre o autor norte-americano que a compusera, e que ele visualiza gordo e suarento diante do piano em seu esforço criativo, e se pergunta: “E por que não eu? Por que era preciso exatamente aquele bezerro gordo, cheio de cerveja imunda e de álcool, para que esse milagre se produzisse?”. Roquentin se dá conta de que é a primeira vez em anos que um homem lhe parece comovente, e que gostaria de saber alguma coisa sobre esse sujeito. Ao escutar pela última vez a canção, antes de deixar definitivamente Bouville, escreve: “A negra canta. Então pode-se justificar sua existência?” Só um pouquinho?” (p.221). Abre-se para ele uma possibilidade até então impensada. Poderia tentar, não através da música, não tinha jeito para isso. Seria um livro, a única coisa que ele sabia fazer. Uma história. “Seria preciso que fosse bela e dura como aço e que fizesse com que as pessoas se envergonhassem de sua existência” (p.220).

O livro “A Náusea” foi originalmente publicado em 1938. A possibilidade impensada concretizou-se, a existência do escritor teria então sido justificada “só um pouquinho?” Em 1964 o Prêmio Nobel de Literatura foi outorgado a Sartre, que o recusou, sob o argumento de que um escritor deve permanecer independente das instituições que concedem tais prêmios.

Nota: Sartre era um apaixonado pelo Jazz, pela música negra norte-americana, tendo conhecido alguns dos maiores ícones do gênero, como o saxofonista Charlie Parker e o trompetista norte-americano Miles Davis, que passou uns tempos em Paris, tendo convivido com o círculo de pessoas que gravitavam em torno do filósofo. Davis teve inclusive um caso com uma das frequentadoras daquele círculo, Juliette Greco, conhecida como “A Musa do Existencialismo”. Por fim, “Some of these days; you´ll miss me honey”, que dá um sentido, ainda que provisório ao personagem, é uma canção triste, melancólica, e que foi gravada por grandes intérpretes da música norte-americana, como Ella Fitzgerald, Bing Crosby e Bobby Darin. Especula-se que a versão que marcou Sartre foi a da cantora Sophie Tucker.

José Antonio de Carvalho e Silva
Set/2018

3 comentários:

  1. Como sempre um ensaio impecável. Seu passeio pela obra de Sartre nos oferece uma excelente oportunidade de reflexão. Gostei muito.

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  2. Numa síntese didática e objetiva,você consegue passar com clareza as idéias complexas de Sartre sobre a angústia . Faz parecer simples a visão deste filósofo sobre este tema .A tarefa não é fácil .Parabéns !

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  3. Diz-se que Sartre escrevia romances e peças teatrais para facilitar o entendimento de seus complexos conceitos expostos em textos filosóficos. Foi o que ele fez em relação à angústia, vivenciada pelo personagem de "A náusea".

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