ANOTAÇÕES SOBRE O
LIVRO A NÁUSEA, DE SARTRE
As anotações
que se seguem tomaram por base a versão em português editada em 2006 pela
Editora Nova Fronteira S.A., a partir do original da obra em francês de
Jean-Paul Sartre, La Nausée.
A obra de Sartre compõe um retrato da
condição existencial do homem através do personagem Roquentin, pautada em
anotações feitas por este em um diário de onde ressalta uma vida sem qualquer
sentido, passada numa cidadezinha provinciana chamada Bouville.
O personagem
chega a tal lugar após vagar por diversos países, com um frouxo propósito de
escrever uma biografia sobre um certo Sr. de Rollebon, um ilustre e já falecido
membro da aristocracia de Bouville. Escrever sobre o Sr. de Rollebon, uma
tarefa que Roquentin vai desempenhando com desagrado, é, de certa forma, uma
artimanha para preencher o tempo do personagem. Mas o projeto será abandonado:
“... um livro de história, isso fala do que existiu-jamais um ente pode
justificar a existência de outro ente. Meu erro foi querer ressuscitar o Sr. de
Rollebon” (p.220). Roquentin perde mais uma referência em sua vida quando no
seu reencontro com uma antiga namorada, Anny, ele se vê irreversivelmente
apartado dela.
Roquentin
vive intensamente sua angústia e sabe que os expedientes e as ocupações do dia
a dia nada mais são do que artimanhas para disfarçar esta condição. A família,
os passeios dominicais, o enamoramento, tudo tem como única finalidade mascarar
a angústia constitutiva do ser humano. Não há nenhuma razão para existir e,
apesar disso, comemos e bebemos para conservar nossa preciosa existência
(p.142). Ao contemplar um casal de jovens que almoça em uma mesa próxima à sua,
reflete: “Estão à vontade... acham que o mundo está bem como está, exatamente
como é, e cada um deles provisoriamente colhe o sentido de sua vida no outro.
Dentro em breve constituirão uma só vida para ambos, uma vida lenta e morna que
não terá qualquer sentido- mas eles não se aperceberão disso” (p.136). E
prossegue: “...eles vão várias vezes por semana aos bailes e aos restaurantes,
para oferecer o espetáculo de suas dancinhas rituais e mecânicas... Afinal é
preciso matar o tempo. São jovens... dão tempo ao tempo, e não estão errados
nisso. Quando tiverem dormido juntos, terão que descobrir outra coisa para
encobrir o enorme absurdo de suas existências” (p.141).
O personagem
está todo o tempo emitindo juízo sobre o Ser, em aguda consciência reflexiva. É
capaz de viver a contingência, a gratuidade e o absurdo do Ser: “Todo ente
nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso”. A náusea surge
dessa revelação. É um sentimento que vai se desenhando já a partir das
primeiras páginas do livro, se intensificando, até eclodir quando Roquentin
está sentado em um banco num jardim público, ao contemplar a raiz de um
castanheiro que se enfiava na terra por baixo do banco. Este é um momento chave
na vida do personagem. “Roquentin percebe que não é apenas a árvore, mas o Ser
da árvore que o incomoda. É o modo como ela está simplesmente ali, inexplicável
e sem qualquer razão, negando-se a fazer sentido ou a se enquadrar em alguma
coisa”, conforme descreve Sarah Bakewell em seu livro “No Café EXISTENCIALISTA”
(OBJETIVA, 2016). E desiste de continuar a escrever a biografia do Sr. de
Rollebon.
O conceito de náusea refere-se
justamente ao sentimento experimentado diante do real, quando se toma
consciência de que ele é desprovido de razão, absurdo. “O essencial é a
contingência... a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar aqui; os entes aparecem, deixam
que os encontremos, mas nunca podemos
deduzi-los” (p.165). Roquentin crê
que há pessoas que compreenderam isso, mas que tentaram superar essa
contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. “Ora, nenhum
ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma
aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade
perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade, eu próprio” (p.165). A
náusea, explica ele, ocorre quando nos apercebemos disso, sentimos o estomago
embrulhar, e tudo se põe a flutuar. A náusea é constitutiva: “A náusea não me
abandonou e não creio que me abandone tão cedo; mas já não estou submetido a
ela, já não se trata de uma doença, nem de um acesso passageiro: a náusea sou
eu” (p.159). Roquentin exerce agudamente a consciência reflexiva.
Ao final do texto, Roquentin, escuta
repetidas vezes uma canção norte-americana, na qual uma voz de negra canta um
estribilho Some
of these days; you´ll miss me honey [Um dia desses você vai me perder,
querido(a)] e se põe a refletir sobre o milagre que produziu a canção, sobre o autor
norte-americano que a compusera, e que ele visualiza gordo e suarento diante do
piano em seu esforço criativo, e se pergunta: “E por que não eu? Por que era
preciso exatamente aquele bezerro gordo, cheio de cerveja imunda e de álcool,
para que esse milagre se produzisse?”. Roquentin se dá conta de que é a
primeira vez em anos que um homem lhe parece comovente, e que gostaria de saber
alguma coisa sobre esse sujeito. Ao escutar pela última vez a canção, antes de
deixar definitivamente Bouville, escreve: “A negra canta. Então pode-se
justificar sua existência?” Só um pouquinho?” (p.221). Abre-se para ele uma
possibilidade até então impensada. Poderia tentar, não através da música, não
tinha jeito para isso. Seria um livro, a única coisa que ele sabia fazer. Uma
história. “Seria preciso que fosse bela e dura como aço e que fizesse com que
as pessoas se envergonhassem de sua existência” (p.220).
O livro “A Náusea” foi originalmente
publicado em 1938. A possibilidade impensada concretizou-se, a existência do
escritor teria então sido justificada “só um pouquinho?” Em 1964 o Prêmio Nobel
de Literatura foi outorgado a Sartre, que o recusou, sob o argumento de que um
escritor deve permanecer independente das instituições que concedem tais
prêmios.
Nota: Sartre era um apaixonado pelo
Jazz, pela música negra norte-americana, tendo conhecido alguns dos maiores ícones
do gênero, como o saxofonista Charlie Parker e o trompetista norte-americano Miles
Davis, que passou uns tempos em Paris, tendo convivido com o círculo de pessoas
que gravitavam em torno do filósofo. Davis teve inclusive um caso com uma das
frequentadoras daquele círculo, Juliette Greco, conhecida como “A Musa do
Existencialismo”. Por fim, “Some of these
days; you´ll miss me honey”, que dá um sentido, ainda que provisório ao
personagem, é uma canção triste, melancólica, e que foi gravada por grandes
intérpretes da música norte-americana, como Ella Fitzgerald, Bing Crosby e
Bobby Darin. Especula-se que a versão que marcou Sartre foi a da cantora Sophie
Tucker.
José Antonio de Carvalho e Silva
Set/2018
Como sempre um ensaio impecável. Seu passeio pela obra de Sartre nos oferece uma excelente oportunidade de reflexão. Gostei muito.
ResponderExcluirNuma síntese didática e objetiva,você consegue passar com clareza as idéias complexas de Sartre sobre a angústia . Faz parecer simples a visão deste filósofo sobre este tema .A tarefa não é fácil .Parabéns !
ResponderExcluirDiz-se que Sartre escrevia romances e peças teatrais para facilitar o entendimento de seus complexos conceitos expostos em textos filosóficos. Foi o que ele fez em relação à angústia, vivenciada pelo personagem de "A náusea".
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