Natasha e Eu
Ela era linda, pelo menos aos meus
olhos. E eu me enfeiticei por ela. Não foi uma iluminação súbita, um amor à
primeira vista. Não. Foi um processo. Estudávamos na mesma turma de um
prestigioso instituto educacional, uma escola pública, onde muito se exigia dos
alunos. Eu era tímido, Natasha também. O que pouco a pouco foi despertando meu
interesse? Ela certamente não era nenhum tipo cuja beleza chamasse a atenção,
salvo pelos seus olhos azuis. Era do tipo rechonchudinha, não desinteressante
de corpo, muito loirinha, de cabelos lisos, escorridos. Esses lindos, muito
expressivos e sempre bem abertos olhos azuis certamente foram um fator de minha
atração por ela. Mas, havia nela muitas outras coisas para se apreciar. Sua
inteligência e sua cultura. Filha de pais estrangeiros, nascida na China (por
circunstancias que desconheço; seus pais não eram chineses) e logo vinda para o
Brasil, dominava diversas línguas além do português. Era fluente em inglês, francês,
russo e, se não me engano – já se passaram tantos anos! -, compreendia alemão e
até mesmo chinês (pura imaginação minha?). Mas as suas aptidões não se
limitavam ao conhecimento de idiomas. Era brilhante em praticamente todas as
disciplinas, notadamente matemática. Tinha como hobbies a leitura – lia os
clássicos da literatura universal-, o cinema, o jogo de xadrez. E a música,
especialmente a clássica! Não somente ouvia como executava peças ao piano.
E esses atributos não passavam
despercebidos àquele adolescente precocemente feito adulto em seus 17 anos de
idade. Eu também era interessado em música, não propriamente a clássica, no
jogo de xadrez, em literatura e em diversas disciplinas que nos eram
ministradas. Assim, compartilhando interesses, fomos pouco a pouco nos
aproximando. Morávamos perto, eu passei a frequentar a casa dela, onde era
recebido com muito carinho pela sua mãe, Ekaterina. Do pai eu nada sabia: onde
vivia e sequer se era vivo. Havia uma terceira pessoa na casa, Aleksandra,
filha mais nova de Ekaterina. Eu e Natasha fomos nos acostumando àqueles
encontros, quando estudávamos e conversávamos, notadamente sobre filmes e
livros. Natasha usava um perfume forte, o que acabou sendo um elemento a mais
na minha atração por ela. Tímidos, não expressávamos nossos sentimentos. Mas, é
fato que eu já estava em pleno processo de enfeitiçamento. Ela tocava piano,
pelo que me interessei em aprender a tocar este instrumento, cujo som, ademais,
me agradava bastante. Decidi, então, tomar lições com a mesma professora da
minha amiga. Comecei com o dó-ré-mi-fá-sol-lá-si-ré-dó
(soava como tem-galinha-choca-no-quintal),
praticando no piano de uma tia avó vizinha de onde eu morava. Aos poucos fui
evoluindo e conseguindo tocar algumas polcas e mazurcas seguindo pautas
musicais. Natasha era outro caso, estava anos-luz à minha frente.
Nossa relação seguia sem qualquer
mudança em seu curso, até que um acontecimento fortuito abriria uma
possibilidade. Minha irmã mais velha era muito festeira, gostava de realizar
bailes em nossa casa. Tinha um grande círculo de amizades e convidava sempre um
seleto grupo de moças e rapazes para essas ocasiões. De minha parte, eu tinha
dois grandes amigos, também colegas de sala de aulas, que igualmente
participavam das festas. Eram eventos muito prazerosos e românticos, com os
pares dançando coladinhos ao som de baladas, foxes e boleros provenientes de
discos de vinil rodando na vitrola. Cuba-libre e Hi-Fi, os drinques da moda, contribuíam para a descontração geral. E
para uma dessas festas decidimos convidar Natasha e sua irmã Aleksandra, que se
fizeram presentes levando com elas uma linda moça norte-americana que estava
hospedada em sua casa na ocasião. E chegou a grande noite. Nossas convidadas
compareceram – Natasha, Aleksandra e a norte-americana. Havia muita gente, o
baile seguia alegre, e eu, petrificado, não tomava a iniciativa de tirar a
minha musa para dançar. Já quase ao final, finalmente criei coragem e tomei
Natasha pelo braço e tirei-a para dançar. Dançamos como que congelados, sem
trocar uma só palavra. Nunca soube explicar a mim mesmo o que se passara. Era
noite de sábado. Terminado o baile, eu e meus dois amigos combinamos passar na
casa das moças na manhã de domingo, para irmos todos à praia. E assim fizemos.
Nos esperavam Aleksandra e a americana, com um recado de que Natasha não iria,
por uma razão qualquer. Fomos a praia, nos divertimos, mas eu sentia que algo
muito sério estava por acontecer.
E esse algo muito sério de fato
aconteceu logo na segunda feira. Ao sentarem-se todos os alunos em seus lugares
costumeiros na sala de aula, Natasha sentou-se na última carteira, encostada à
parede, umas três fileiras atrás de carteiras que ficavam desocupadas. E, desde
então, manteve sempre essa posição, além de não mais dirigir a palavra a quem
quer que fosse, salvo em casos de ordem eminentemente prática.
Cursávamos o último ano do módulo
então chamado Científico, e todos os alunos já se questionavam sobre qual curso
superior escolheriam, seria necessária uma grande dedicação aos estudos para
enfrentarem o exame vestibular de acesso às universidades públicas. Essa preocupação com os estudos de certa forma
me protegia da obsessão com Natasha. E continuei com as minhas aulas de piano, prudentemente
em dias diferentes daqueles em que a enigmática criatura comparecia. Tudo ia
bem, até o fatídico dia em que eu, já prestes a terminar a minha aula, tocava
uma singela mazurca e o sinal da campainha da porta de entrada soou. Minha
professora levantou-se, atendeu ao chamado, e eu, sentado no banquinho do
piano, de costas para a porta, senti-me invadido por aquele perfume
embriagador. Era ela, que por algum
motivo tivera seu horário remarcado, justamente coincidindo com o término da
minha aula. Desconcertei-me por
completo, não consegui terminar coerentemente a mazurca, juntei os meus papéis
e despedi-me rapidamente da professora, sem olhar para ela. Abandonei o piano para sempre, até mesmo pela razão bem
prática de falta de tempo, como se verá a seguir.
O vestibular chegou finalmente, eu e
meus dois amigos tivemos a imensa felicidade de estar entre os classificados,
e, assim, continuarmos juntos por todo o período universitário. O ingresso na
faculdade, situada na Praia Vermelha, e onde se cumpria horário integral, foi
uma mudança extremamente significativa para os três amigos que moravam em
Niterói. Não havia ainda a Ponte Rio-Niterói, assim sendo eu e um dos amigos, o
Pacci, decidimos alugar um quarto num apartamento na Praia de Botafogo. Eu me
propunha a passar apenas os dias de semana naquele local, pois me era difícil
cortar o cordão umbilical familiar: chegava ao apartamento nas noites das
segundas feiras, após a jornada na faculdade, e já o deixava nas manhãs das
sextas feiras. O meu amigo Pacci se permitia ficar um pouco mais por lá. Foi um
período de difícil adaptação para nós, colegas de turma saídos de um ambiente
escolar ao qual nos acostumáramos durante os sete anos dos cursos ginasial e
científico, em nossa pacata cidade natal, e transportados para outra realidade.
A faculdade exigia muito de nós e,
para complicar, ambos amargávamos uma dolorosa frustração amorosa. Pacci, ao
declarar seu recôndito amor à Narinha, a suave, doce coleguinha de turma no
Científico, recebera um delicado, mas definitivo fora. Eu, num processo bem
mais complicado, conforme descrevi, não conseguira declarar a minha imensa
paixão de adolescente a Natasha, outra coleguinha de turma. Éramos grandes
amigos, tínhamos muito em comum e, desgraçadamente, o retraimento. Essa paixão
não declarada acabou por nos afastar abruptamente, na forma totalmente
inusitada, e a nunca mais nos falarmos, embora frequentássemos a mesma sala de
aula ainda por muitos meses. E ardeu em mim durante um longo tempo, assim como
doeu em Pacci aquele seu momento de frustração amorosa. Ao relembrar tantas
vezes a sua desventura o pobre Pacci se lamentava: “É como um filme que
subitamente começa a se desenrolar na minha cabeça; nada posso fazer para
interrompê-lo, tenho que aguardar que ele simplesmente vá até o fim”. Excelente
definição que a mim também se aplicava no incontrolável irromper das minhas
lembranças da oportunidade perdida.
Onde andará Natasha? O que ela terá
sentido por mim? O que eu realmente senti por ela? Qual a importância disso,
passadas tantas décadas?
Setembro/2018
José Antônio,... Enquanto lia o seu texto minha sensação era de estar assistindo a um filme devido à sua maneira elegante de escrever e ao seu talento de transformar palavras em uma bela história . Parabéns !
ResponderExcluirÉ sempre gratificante receber comentários elogiosos aos meus textos vindo de pessoas como você. Abraços.
ExcluirUau!Voce fez aulas de piano!? Gostei de saber! O piano tem sido para mim uma linda paixão da maturidade assim como foi Natasha na sua juventude. Ler seu conto foi uma viagem aos encantos da juventude. Abraços amigo.
ResponderExcluirFiz aulas de piano, sim! A minha entrada na faculdade e o incidente com a Natasha cortaram a carreira de um futura grande concertista. Na música clássica e no jazz! Há!Há!Há!
ResponderExcluirCaro amigo, senti certa nostalgia ao ler este seu conto. E isto, mesmo sem ter vivido a época descrita. Suas palavras me fazem imaginar que tudo parecia ser tão singelo e, ao mesmo tempo, tão pungente...Como disse William Faulkner: "O passado nunca está morto. Nem sequer passou." Forte abraço e parabéns por mais este belo conto, repleto de talento e emotividade.
ResponderExcluirDo seu amigo,
Cesar Margato.
Acompanhei esse drama. Sou a irmã que organizou o baile referido na crônica (risos).
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