sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Alguém gostaria de viver até os 140 anos?


Alguém gostaria de viver até os 140 anos de idade?

Ao adentrar o ônibus, lotado, passei pela roleta, usando o meu cartão de idoso (cartão de velhinho, como eu jocosamente o chamo), e postei-me de pé, para o que seria uma curta viagem. Para minha surpresa, uma jovem, que se sentava em um dos bancos traseiros, acenou para mim e ofereceu-me seu lugar. Fiz um gesto de agradecimento, como quem dispensava a gentileza, mas ela insistiu. Atravessei então o corredor do ônibus e sentei-me no lugar que me era oferecido e novamente expressei o meu agradecimento. De uns anos para cá essa cena tem se repetido, especialmente no metrô, onde os assentos destinados aos “velhinhos” estão bem demarcados. Claro que não são todos os que cedem seu lugar, há aqueles que não descolam os olhos de seus celulares, de um cada vez mais raro livro impresso, os simplesmente distraídos, os que fingem dormir. De minha parte, eu também cedo o lugar para alguém claramente mais necessitado do que eu. Afinal, estou perfeitamente bem.

O que caracteriza um idoso, um velho? Depende da época. Quando eu era criança, idoso era para os homens o atingimento dos quarenta anos de idade, o famoso quarentão. Para as mulheres, pior ainda, aos trinta já se poderia considerá-la velha. Aí está o famoso livro de Balzac, “A mulher de trinta”. Lembro-me do meu avô. Faleceu aos sessenta e poucos anos de idade. Olhos azuis, era um homem sisudo, de poucas palavras, embora não destituído de um sutil senso de humor. Eu o via como muito velho e, de fato, falecer sessentão não era nada incomum naqueles tempos. Com o passar do tempo a expectativa de vida foi aumentando. De minha parte, lembro-me perfeitamente do dia em que completei 60 anos, era um sessentão, e estava muito feliz, me sentia maravilhosamente bem.

Diversos fatores são creditados ao aumento da expectativa de vida - melhoria no saneamento básico, nos hábitos alimentares, a prática regular de exercícios físicos e, principalmente, ao mais visível dele: o avanço da medicina, na prevenção e cura das doenças. E este é um ponto sobre o qual quero tecer alguns comentários. No dia 30/11/2018 assisti a um ciclo de palestras dentro do primeiro dia do evento denominado Wired Festival, na Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro. Vários palestrantes abordaram o tema da genética e da inteligência artificial como fatores alterando radicalmente a abordagem da saúde. Debateu-se o uso de algoritmos (1) para prever a mortalidade e o mapeamento dos genomas (2) na prevenção de doenças como o câncer, e oferecendo a possibilidade de tratamentos individualizados. Seguem-se extratos da fala de alguns palestrantes.

Fábio Coelho, presidente da Google Brasil, em sua apresentação, fez a seguinte colocação, reproduzida no jornal O Globo, edição de 01/12/2018 “Hoje se estuda uma maneira de não precisarmos de medicamentos. Você engole uma pílula que, durante 30 dias, registra todos os seus sinais vitais e os transmite para o celular. À mediada que você vê os sinais se alterando, o nível de açúcar ou de colesterol no sangue, por exemplo, consegue agir, mudar para corrigir.”

James Dahlman, do Departamento de Engenharia Biomédica do Instituto de Tecnologia da Georgia, abordou o tema CRISPR e a edição de DNA no combate a doenças.  CRISPR, cujo nome completo é CRISPR/Cas9, é sigla para “clustered regularly interspaced short palindromic repeats”, uma técnica, precisa e potente de correção de um ou mais genes em qualquer célula viva, mas que envolve sérias questões de ordem ética. Dahlman criticou severamente uma experiência supostamente realizada na China e pela qual um cientista chinês, divulgada por ele próprio em um vídeo postado no youtube, teria criado os primeiros bebês geneticamente editados no mundo. Afirmou que, confirmada, seria algo terrível e antiético, além de uma ideia estúpida do ponto de vista científico. Ressalte-se que a suposta experiência, e sua forma de divulgação, receberam uma torrente de críticas da comunidade científica internacional, inclusive na própria China: “Após o anúncio, mais de 120 cientistas chineses divulgaram uma carta aberta a He Jiankui, na qual condenam a sua experiência de edição genética e alertam sobre profundas implicações médicas e éticas. Experiências em seres humanos são uma insanidade e podem gerar graves consequências, afirmaram os signatários, de várias instituições, incluindo as renomadas universidades de Tsinghua e Pequim e a Acadêmica Chinesa de Ciências.”, conforme transcrevemos do link
Visita em 08/12/2018

João Bosco, médico fundador da Genomika Diagnósticos, discorreu sobre a técnica de sequenciamento de genomas que, segundo ele, pode ser usada, por exemplo, na oncologia, mesmo antes do aparecimento do câncer. Uma pessoa, ao saber que tem um risco maior do que outras de desenvolver uma doença – câncer, cardiopatias, por exemplo – pode recorrer a tratamentos específicos antes do aparecimento da doença. Bosco prevê que no futuro já ao nascer, os bebês terão o seu genoma sequenciado para a previsão imediata de possíveis doenças. Mas alerta para o dilema ético de como proteger essa informação. Os planos de saúde poderiam cobrar mais por clientes de alto risco e potenciais empregadores poderiam descartar a contratação de pessoas cujo horizonte de vida tenha sido mapeado.

Alexandre Chiavegatto Filho, diretor do Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde, da USP, afirma de forma categórica que a inteligência artificial “não é um hype (uma ficção) criado pela mídia” , mas que através de algoritmos capazes de aprender sozinhos e dispondo de muita informação sobre as pessoas analisadas será possível a fazer a previsão de quem vai morrer, em que período de tempo e de qual doença.

São depoimentos fascinantes e, ao mesmo tempo, perturbadores. Imagine-se, como foi aventado, que alguém, que se considere em boa saúde à luz dos resultados dos exames atualmente disponíveis, virá a sentir, quando submetido às novas técnicas, ao ter o seu tempo de vida determinado com boa precisão, digamos, num prazo de cinco anos? Quais serão as consequências psicológicas para tal pessoa? Um contraponto à essa visão determinista veio de uma outra palestrante, a endocrinologista Vania Assaly, especialista na área de medicina do estilo de vida e diretora da Latin American Lifestyle Madicine Association. A médica pondera que, embora a genética possa ser uma aliada da saúde, ela não é um destino: “Se fizermos uma boa escolha em relação ao estilo de vida, boa parte das doenças crônicas são reduzidas.”

E, naturalmente, surgiram durante os debates diversas afirmações típicas da crença no inexorável avanço da ciência: “Já está entre nós aquele que vai viver até os 140 anos de idade”; “No futuro será possível alcançarmos a imortalidade.” Curiosamente ao perguntar-se à audiência quem gostaria de viver até os 140 anos, numa rápida olhada só vi uma pessoa manifestar esse desejo. Pode ser uma possibilidade, sim, para um conjunto de pessoas, mas certamente não será para uma percentagem significativa da humanidade, haja vista que os parâmetros de longevidade variam extraordinariamente através das diversas regiões do planeta. E há de questionar-se com que qualidade de vida se chegaria aos 140 anos de vida. O prolongamento da vida média tem sido acompanhado de doenças degenerativas que normalmente acometem os mais idosos, como o Mal de Alzheimer, a Demência Senil, o Mal de Parkinson e tantas outras diretamente associadas ao enfraquecimento da estrutura óssea e muscular. E quanto à imortalidade (e aí vai implícito uma imortalidade em pleno gozo de boa saúde, caso contrário, qual a vantagem?), trata-se claramente de uma quimera. Ainda que, num esforço fundamentalista em acreditar-se na capacidade da ciência em erradicar as doenças, elas não são a única causa mortis da humanidade. Morre-se do desatino das guerras e da violência em geral, de acidentes, de subnutrição, de condições meteorológicas extremas, de desastres naturais, de acidentes e de uma infinidade de outras causas. Não, o ser humano não alcançará a imortalidade, nem individualmente e nem em sua coletividade. E, se por hipótese, a morte deixasse de exercer as suas funções, como o grande escritor português José Saramago imagina em seu livro “As intermitências da morte” (do qual fiz uma resenha postada neste blog), as consequências seriam tão terríveis que logo os humanos clamariam pelo seu retorno.

Comecei este ensaio falando de um prosaico acontecimento envolvendo a minha pessoa a bordo de ônibus para evocar o que ouvi no evento Wired Festival, do qual eu participara dois dias antes daquele episódio. Definitivamente não gostaria de sobreviver ao término de uma razoável saúde física e mental. Sou velho? Idoso? Estou na Melhor Idade? Sei lá. Importante é o quanto serei ainda capaz de me emocionar com o carinho dos entes queridos, de manifestações artísticas e culturais, de viajar, de contemplar belas paisagens, de afagar animais, de acalentar o meu paladar com as minhas comidas  preferidas e bons vinhos, e outras coisas mais.

Dezembro/2018


(1) Algoritmo: conjunto de regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de um problema em um número finito de etapas. Um algoritmo coleta informações de um usuário das redes, faz correlações e oferece alternativas. É por isso que quando, por exemplo, o usuário assiste a um vídeo no youtube, da próxima vez que ele acessar a rede lhe serão oferecidos vídeos semelhantes àquele visto primeiramente. O algoritmo é “inteligente”.

(2) Genoma: é um código genético, que possui toda a informação hereditária de um ser, e é codificada no DNA. É o conjunto de todos os diferentes genes que se encontram em cada núcleo de uma determinada espécie. O termo foi criado em 1920, por Hans Winkler, um professor da Universidade de Hamburgo. O genoma humano dispõe das informações básicas e necessárias para o desenvolvimento físico de um ser humano, e é formado pela sequência de 23 pares de cromossomos.O genoma é a soma de genes que define como vai se desenvolver e funcionar um ser vivo. O genoma é transmitido de geração em geração e determina a espécie do ser vivo, no genoma encontram-se gravadas características hereditárias encarregadas de dirigir o desenvolvimento biológico de cada indivíduo. As doenças hereditárias também estão escritas no genoma. Todos os seres vivos, desde os maiores, como o elefante, até os minúsculos, como as bactérias, têm genoma. https://www.significados.com.br/genoma/  Visita em 03/12/2018

7 comentários:

  1. Muito oportuno e providencial o seu texto, meu amigo. E muito bem citado o livro "Intermitências da Morte", do Saramago. De fato, a estrutura ontológica do ser-para-a-morte traz consigo o caráter irremíssivel da finitude, do já-não-mais-aí-estar. Com isso, descerra diversas manifestações ônticas, concretas, de pronunciamento da angústia. Noutro dia desses li em algum lugar que há pessoas financeiramente abastadas que ingerem dezenas de cápsulas de medicamentos e suplementos alimentares todos os dias, em jejum, pelas manhãs. Isto, com o objetivo de "prevenir doenças e viver bem durante o maior tempo possível". Parecem não pensar que as próprias cápsulas que ingerem podem vir a sobrecarregar, e com isso, acelerar o processo de degradação e consequente colapso de órgãos vitais como fígado e rins. Enfim, de minha parte considero que viver até os 140 anos seria mais uma distopia, do que propriamente uma utopia. Grande abraço.

    ResponderExcluir
  2. Perfeito, amigo. Sou plenamente favorável aos avanços da medicina, mas, como em todos os campos da atividade humana, há que se ter bom senso, equilíbrio.Cuidado com o célebre enfeitiçamento pela técnica.Chega um ponto em que simplesmente... morre-se.

    ResponderExcluir
  3. Amigo, lembrei-me também de Heidegger, ao saborear seu reflexivo e informativo texto. Se vivesse hoje, ele certamente ficaria surpreso com o caminho tomado pela técnica. Concordo com a ideia do bom uso dos recursos e avanços tecnológicos e isso envolve olhar a vida com a certeza da finitude. Maravilha de texto!

    ResponderExcluir
  4. Excelente texto abordando temas muito complexos. Os avanços da ciência e da tecnologia trazem inegáveis benefícios às pessoas. Entretanto, esses benefícios serão colhidos por uma pequena fração da humanidade em função dos elevados custos envolvidos. E presume-se que o prolongamento da vida a partir de uma determinada idade trará um impacto relevante para a manutenção da saúde em níveis razoáveis. Como exemplo, quantos poderão pagar planos de saúde compatíveis? Os governos darão suporte financeiro para os necessitados? Não quero e não conseguirei viver até os 140 anos de idade.

    ResponderExcluir
  5. Me veio a mente várias questões lendo seu texto.
    Uma delas é: a necessidade do ego humano se perpetuar. Disso decorre nosso interesse em saber sobre vida depois da morte, sobre
    tecnologias de prolongamento da vida e etc.
    Pensei também que essa medicina descrita será para os que tiverem um poder econômico. Será que esse abismo, que já existe na humanidade, não será intensificado? Aqueles que continuarão a morrer, precocemente, de fome e miséria e aqueles que com pirulas viverão ate 140 anos?
    Enquanto se pensa em viver mais existem estudos que mostram a precariedade da qualidade de vida, mesmo em países desenvolvidos. Altos índices de angústia, depressão e ansiedade.
    Por isso, penso que o melhor é viver. Viver cada momento, seja do jeito que for. Aprendendo com cada sentimento. Acolhendo ternamente a vida vivida, vamos nos e-ternizando...

    ResponderExcluir
  6. Apreciei muito os seus comentários, amiga. Super pertinentes. Abraços.

    ResponderExcluir