Alguém gostaria de viver até os 140 anos de
idade?
Ao adentrar o ônibus, lotado, passei
pela roleta, usando o meu cartão de idoso (cartão de velhinho, como eu
jocosamente o chamo), e postei-me de pé, para o que seria uma curta viagem.
Para minha surpresa, uma jovem, que se sentava em um dos bancos traseiros,
acenou para mim e ofereceu-me seu lugar. Fiz um gesto de agradecimento, como
quem dispensava a gentileza, mas ela insistiu. Atravessei então o corredor do
ônibus e sentei-me no lugar que me era oferecido e novamente expressei o meu
agradecimento. De uns anos para cá essa cena tem se repetido, especialmente no
metrô, onde os assentos destinados aos “velhinhos” estão bem demarcados. Claro
que não são todos os que cedem seu lugar, há aqueles que não descolam os olhos
de seus celulares, de um cada vez mais raro livro impresso, os simplesmente
distraídos, os que fingem dormir. De minha parte, eu também cedo o lugar para
alguém claramente mais necessitado do que eu. Afinal, estou perfeitamente bem.
O que caracteriza um idoso, um velho?
Depende da época. Quando eu era criança, idoso era para os homens o atingimento
dos quarenta anos de idade, o famoso quarentão. Para as mulheres, pior ainda,
aos trinta já se poderia considerá-la velha. Aí está o famoso livro de Balzac,
“A mulher de trinta”. Lembro-me do meu avô. Faleceu aos sessenta e poucos anos
de idade. Olhos azuis, era um homem sisudo, de poucas palavras, embora não
destituído de um sutil senso de humor. Eu o via como muito velho e, de fato,
falecer sessentão não era nada incomum naqueles tempos. Com o passar do tempo a
expectativa de vida foi aumentando. De minha parte, lembro-me perfeitamente do
dia em que completei 60 anos, era um sessentão, e estava muito feliz, me sentia
maravilhosamente bem.
Diversos fatores são creditados ao
aumento da expectativa de vida - melhoria no saneamento básico, nos hábitos
alimentares, a prática regular de exercícios físicos e, principalmente, ao mais
visível dele: o avanço da medicina, na prevenção e cura das doenças. E este é
um ponto sobre o qual quero tecer alguns comentários. No dia 30/11/2018 assisti
a um ciclo de palestras dentro do primeiro dia do evento denominado Wired
Festival, na Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro. Vários palestrantes
abordaram o tema da genética e da inteligência artificial como fatores
alterando radicalmente a abordagem da saúde. Debateu-se o uso de algoritmos (1)
para prever a mortalidade e o mapeamento dos genomas (2) na prevenção de
doenças como o câncer, e oferecendo a possibilidade de tratamentos
individualizados. Seguem-se extratos da fala de alguns palestrantes.
Fábio Coelho, presidente da Google
Brasil, em sua apresentação, fez a seguinte colocação, reproduzida no jornal O
Globo, edição de 01/12/2018 “Hoje se estuda uma maneira de não precisarmos de
medicamentos. Você engole uma pílula que, durante 30 dias, registra todos os
seus sinais vitais e os transmite para o celular. À mediada que você vê os
sinais se alterando, o nível de açúcar ou de colesterol no sangue, por exemplo,
consegue agir, mudar para corrigir.”
James Dahlman, do Departamento de
Engenharia Biomédica do Instituto de Tecnologia da Georgia, abordou o tema
CRISPR e a edição de DNA no combate a doenças.
CRISPR, cujo nome completo é CRISPR/Cas9, é sigla para “clustered regularly interspaced short
palindromic repeats”, uma técnica, precisa e potente de correção de um ou
mais genes em qualquer célula viva, mas que envolve sérias questões de ordem
ética. Dahlman criticou severamente uma experiência supostamente realizada na
China e pela qual um cientista chinês, divulgada por ele próprio em um vídeo
postado no youtube, teria criado os primeiros bebês geneticamente editados no
mundo. Afirmou que, confirmada, seria algo terrível e antiético, além de uma
ideia estúpida do ponto de vista científico. Ressalte-se que a suposta
experiência, e sua forma de divulgação, receberam uma torrente de críticas da
comunidade científica internacional, inclusive na própria China: “Após o
anúncio, mais de 120 cientistas chineses divulgaram uma carta aberta a He
Jiankui, na qual condenam a sua experiência de edição genética e alertam sobre
profundas implicações médicas e éticas. Experiências em seres humanos são uma
insanidade e podem gerar graves consequências, afirmaram os signatários, de
várias instituições, incluindo as renomadas universidades de Tsinghua e Pequim
e a Acadêmica Chinesa de Ciências.”, conforme transcrevemos do link
Visita em 08/12/2018
João Bosco, médico fundador da
Genomika Diagnósticos, discorreu sobre a técnica de sequenciamento de genomas
que, segundo ele, pode ser usada, por exemplo, na oncologia, mesmo antes do
aparecimento do câncer. Uma pessoa, ao saber que tem um risco maior do que
outras de desenvolver uma doença – câncer, cardiopatias, por exemplo – pode
recorrer a tratamentos específicos antes do aparecimento da doença. Bosco prevê
que no futuro já ao nascer, os bebês terão o seu genoma sequenciado para a
previsão imediata de possíveis doenças. Mas alerta para o dilema ético de como
proteger essa informação. Os planos de saúde poderiam cobrar mais por clientes
de alto risco e potenciais empregadores poderiam descartar a contratação de
pessoas cujo horizonte de vida tenha sido mapeado.
Alexandre Chiavegatto Filho, diretor
do Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde, da USP, afirma de
forma categórica que a inteligência artificial “não é um hype (uma ficção) criado pela mídia” , mas que através de
algoritmos capazes de aprender sozinhos e dispondo de muita informação sobre as
pessoas analisadas será possível a fazer a previsão de quem vai morrer, em que
período de tempo e de qual doença.
São depoimentos fascinantes e, ao
mesmo tempo, perturbadores. Imagine-se, como foi aventado, que alguém, que se
considere em boa saúde à luz dos resultados dos exames atualmente disponíveis,
virá a sentir, quando submetido às novas técnicas, ao ter o seu tempo de vida
determinado com boa precisão, digamos, num prazo de cinco anos? Quais serão as
consequências psicológicas para tal pessoa? Um contraponto à essa visão
determinista veio de uma outra palestrante, a endocrinologista Vania Assaly,
especialista na área de medicina do estilo de vida e diretora da Latin American
Lifestyle Madicine Association. A médica pondera que, embora a genética possa
ser uma aliada da saúde, ela não é um destino: “Se fizermos uma boa escolha em
relação ao estilo de vida, boa parte das doenças crônicas são reduzidas.”
E, naturalmente, surgiram durante os
debates diversas afirmações típicas da crença no inexorável avanço da ciência:
“Já está entre nós aquele que vai viver até os 140 anos de idade”; “No futuro
será possível alcançarmos a imortalidade.” Curiosamente ao perguntar-se à
audiência quem gostaria de viver até os 140 anos, numa rápida olhada só vi uma
pessoa manifestar esse desejo. Pode ser uma possibilidade, sim, para um
conjunto de pessoas, mas certamente não será para uma percentagem significativa
da humanidade, haja vista que os parâmetros de longevidade variam
extraordinariamente através das diversas regiões do planeta. E há de
questionar-se com que qualidade de vida se chegaria aos 140 anos de vida. O
prolongamento da vida média tem sido acompanhado de doenças degenerativas que
normalmente acometem os mais idosos, como o Mal de Alzheimer, a Demência Senil,
o Mal de Parkinson e tantas outras diretamente associadas ao enfraquecimento da
estrutura óssea e muscular. E quanto à imortalidade (e aí vai implícito uma
imortalidade em pleno gozo de boa saúde, caso contrário, qual a vantagem?), trata-se
claramente de uma quimera. Ainda que, num esforço fundamentalista em
acreditar-se na capacidade da ciência em erradicar as doenças, elas não são a
única causa mortis da humanidade.
Morre-se do desatino das guerras e da violência em geral, de acidentes, de
subnutrição, de condições meteorológicas extremas, de desastres naturais, de
acidentes e de uma infinidade de outras causas. Não, o ser humano não alcançará
a imortalidade, nem individualmente e nem em sua coletividade. E, se por
hipótese, a morte deixasse de exercer as suas funções, como o grande escritor
português José Saramago imagina em seu livro “As intermitências da morte” (do
qual fiz uma resenha postada neste blog), as consequências seriam tão terríveis
que logo os humanos clamariam pelo seu retorno.
Comecei este ensaio falando de um
prosaico acontecimento envolvendo a minha pessoa a bordo de ônibus para evocar
o que ouvi no evento Wired Festival, do qual eu participara dois dias antes daquele
episódio. Definitivamente não gostaria de sobreviver ao término de uma razoável
saúde física e mental. Sou velho? Idoso? Estou na Melhor Idade? Sei lá.
Importante é o quanto serei ainda capaz de me emocionar com o carinho dos entes
queridos, de manifestações artísticas e culturais, de viajar, de contemplar
belas paisagens, de afagar animais, de acalentar o meu paladar com as minhas
comidas preferidas e bons vinhos, e
outras coisas mais.
Dezembro/2018
(1) Algoritmo: conjunto de regras e
procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de um
problema em um número finito de etapas. Um algoritmo coleta informações de um usuário
das redes, faz correlações e oferece alternativas. É por isso que quando, por
exemplo, o usuário assiste a um vídeo no youtube, da próxima vez que ele
acessar a rede lhe serão oferecidos vídeos semelhantes àquele visto
primeiramente. O algoritmo é “inteligente”.
(2) Genoma: é um código genético,
que possui toda a informação hereditária de um ser, e é codificada no DNA. É o
conjunto de todos os diferentes
genes que se encontram em cada núcleo de uma determinada espécie. O
termo foi criado em 1920, por Hans Winkler, um professor da Universidade
de Hamburgo. O genoma humano dispõe das informações básicas e necessárias para
o desenvolvimento físico de um ser humano, e é formado pela sequência de 23
pares de cromossomos.O genoma é
a soma de genes que define como vai se desenvolver e funcionar um ser vivo. O
genoma é transmitido de geração em geração e determina a espécie do ser vivo,
no genoma encontram-se gravadas características hereditárias encarregadas de
dirigir o desenvolvimento biológico de cada indivíduo. As doenças hereditárias
também estão escritas no genoma. Todos os seres vivos, desde os maiores, como o
elefante, até os minúsculos, como as bactérias, têm genoma. https://www.significados.com.br/genoma/ Visita em 03/12/2018
Muito oportuno e providencial o seu texto, meu amigo. E muito bem citado o livro "Intermitências da Morte", do Saramago. De fato, a estrutura ontológica do ser-para-a-morte traz consigo o caráter irremíssivel da finitude, do já-não-mais-aí-estar. Com isso, descerra diversas manifestações ônticas, concretas, de pronunciamento da angústia. Noutro dia desses li em algum lugar que há pessoas financeiramente abastadas que ingerem dezenas de cápsulas de medicamentos e suplementos alimentares todos os dias, em jejum, pelas manhãs. Isto, com o objetivo de "prevenir doenças e viver bem durante o maior tempo possível". Parecem não pensar que as próprias cápsulas que ingerem podem vir a sobrecarregar, e com isso, acelerar o processo de degradação e consequente colapso de órgãos vitais como fígado e rins. Enfim, de minha parte considero que viver até os 140 anos seria mais uma distopia, do que propriamente uma utopia. Grande abraço.
ResponderExcluirPerfeito, amigo. Sou plenamente favorável aos avanços da medicina, mas, como em todos os campos da atividade humana, há que se ter bom senso, equilíbrio.Cuidado com o célebre enfeitiçamento pela técnica.Chega um ponto em que simplesmente... morre-se.
ResponderExcluirAmigo, lembrei-me também de Heidegger, ao saborear seu reflexivo e informativo texto. Se vivesse hoje, ele certamente ficaria surpreso com o caminho tomado pela técnica. Concordo com a ideia do bom uso dos recursos e avanços tecnológicos e isso envolve olhar a vida com a certeza da finitude. Maravilha de texto!
ResponderExcluirExcelente texto abordando temas muito complexos. Os avanços da ciência e da tecnologia trazem inegáveis benefícios às pessoas. Entretanto, esses benefícios serão colhidos por uma pequena fração da humanidade em função dos elevados custos envolvidos. E presume-se que o prolongamento da vida a partir de uma determinada idade trará um impacto relevante para a manutenção da saúde em níveis razoáveis. Como exemplo, quantos poderão pagar planos de saúde compatíveis? Os governos darão suporte financeiro para os necessitados? Não quero e não conseguirei viver até os 140 anos de idade.
ResponderExcluirMe veio a mente várias questões lendo seu texto.
ResponderExcluirUma delas é: a necessidade do ego humano se perpetuar. Disso decorre nosso interesse em saber sobre vida depois da morte, sobre
tecnologias de prolongamento da vida e etc.
Pensei também que essa medicina descrita será para os que tiverem um poder econômico. Será que esse abismo, que já existe na humanidade, não será intensificado? Aqueles que continuarão a morrer, precocemente, de fome e miséria e aqueles que com pirulas viverão ate 140 anos?
Enquanto se pensa em viver mais existem estudos que mostram a precariedade da qualidade de vida, mesmo em países desenvolvidos. Altos índices de angústia, depressão e ansiedade.
Por isso, penso que o melhor é viver. Viver cada momento, seja do jeito que for. Aprendendo com cada sentimento. Acolhendo ternamente a vida vivida, vamos nos e-ternizando...
Um grande abraço, amigo.
ResponderExcluirApreciei muito os seus comentários, amiga. Super pertinentes. Abraços.
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