segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Dia dos Pais


Dia dos Pais

Faz muito tempo. Estávamos na década de 1950. Eu e minha irmã éramos crianças, tínhamos algo como 8 e 12 anos, respectivamente. Um dia chegou uma caixa à casa de nossa avó paterna, mansão com muitas estórias para contar, endereçada ao meu pai. Ele nos chamou e abriu a caixa em nossa presença. Era a Coleção Infantil de Monteiro Lobato, 17 tomos bem encadernados e contendo caprichadas ilustrações feitas a bico de pena.  A edição era do longínquo ano de 1942. Lembro-me perfeitamente daquele momento, intuí que tratava-se de algo muito significativo. E realmente foi. Não demorou muito e começamos, eu e minha irmã, a mergulhar na leitura daquelas páginas que eram pura magia. Foi a minha introdução ao mundo das letras, da literatura. Os personagens habitavam o Sítio do Pica Pau Amarelo, de propriedade da Dona Benta, a matriarca, e de lá partiam em viagens através dos meios de transporte convencionais ou aspirando o pó de pirlimpimpim, inventado por Emília, uma irrequieta boneca de pano falante que lá habitava O pó tinha o poder de transportar fisicamente as pessoas inclusive para o passado, assim como a famosa Máquina do Tempo idealizada pelo escritor H.G. Wells, em livro de mesmo nome. Particularmente “História do Mundo para Crianças” e “Os Doze Trabalhos de Hércules” me fascinaram. Quando, muitos e muitos anos depois, visitei, primeiramente a Grécia, e muitos outros anos após, o Egito, as lembranças daqueles textos lidos na minha tenra infância afloraram à minha mente. Na Grécia, a Cultura, os Deuses, Semideuses, os Super-Heróis, a Mitologia, as construções - em particular, o Parthenon – e todo aquele clima da Antiguidade Clássica. No Egito, ao contemplar as pirâmides, a Esfinge, os túmulos milenares contendo múmias de Faraós, sarcófagos, as relíquias no Museu do Cairo e tantas outras preciosidades.

Meu pai continuou estimulando a minha sede literária. Poucos anos após presenteou-me com uma coletânea de livros de Júlio Verne, leitura quase obrigatória para os meninos a partir de sua pré-adolescência. E novos clássicos da literatura universal me foram apresentados em uma nova coletânea: David Copperfield, Robinson Crusoé, A Ilha do Tesouro, Os Três Mosqueteiros etc. Uma festa. Meu pai, embora não tivesse completado o ensino superior, possuía apreciável cultura, um amor ao vernáculo, um dicionário sempre à mão.  Mas os estímulos culturais não se limitaram somente à literatura. Foi ele quem me apresentou, desde tenra idade, o mundo musical, especialmente os clássicos da música norte-americana. Era fã dos grandes filmes musicais, das big-bands, notadamente Glenn Miller, Harry James, Benny Goodman, Tommy Dorsey... e dos grandes vocalistas – Bing Crosby, Ella Fitzgerald, Billy Eckstine..., que ele escutava, já nos longínquos anos da década de 1940, de programas de rádio transmitidos diretamente de Nova Iorque, cidade que ele amava só pelas referências que tinha, pois só veio a conhece-la na década de 1980.   Frank Sinatra fui eu quem “apresentou” a ele. Lembro-me do dia em que me presenteou com o vinil, na época chamado Long-Play, “Torna a Sorrento”, uma coletânea de grandes sucessos do cantor em sua fase na gravadora Columbia. Eu, então um adolescente de 13 anos, ouvia encantado aquelas canções compostas (salvo a faixa título e uma outra, “Luna Rossa”, ambas napolitanas, uma homenagem do cantor à sua origem italiana) pela fina flor do cancioneiro norte-americano, e cantadas por aquele que tinha como alcunha ser o “The Voice”. Porém havia lugar na atenção do meu pai também para artistas nacionais, dentre outros: Gonzagão, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Ary Barroso, Moreira da Silva e, sobretudo, Elias Regina.

Mas vou contar agora um acontecimento singelo do cuidado e da atenção com que ele, e também a minha mãe, dispensavam aos seus filhos, então apenas dois. Os dois outros vieram alguns anos mais tarde. Naquela época picolés eram vendidos por ambulantes empurrando suas carrocinhas amarelas com o logotipo Kibon. Alguns ambulantes não se valiam da tradicional carrocinha, carregavam seus picolés em uma caixa sustentada por tirantes presos aos seus ombros.  Os picolés eram o Chicabon, de chocolate, o Jajá de coco e o Tombon de limão. Fora do tamanho padrão, menorzinho, foi lançado o Tombonete, voltado para as crianças (quem, dentre os que viveram aquela época, se lembrará dele?). Morávamos em apartamento no segundo andar de um sobrado, de cuja varanda eu e minha irmã a cada dia nos despedíamos dos meus pais que saiam para mais uma jornada de trabalho. Ficávamos um pouco tristes naqueles momentos da separação. Eis que um dia, de forma totalmente inesperada, um daqueles ambulantes com uma caixa de picolés pendentes dos ombros, da calçada olhou aquelas crianças e, sorridente, lhes avisou que seus pais haviam passado por eles na rua e pagaram dois Tombonetes para serem entregues a elas. Como pode um gesto tão simples marcar para sempre a mim e a minha irmã?

Já faz vinte anos que o nosso pai nos deixou. Ao aposentar-se, após uma longa e sempre digna carreira no Serviço Público, vivia exclusivamente para os filhos, os netos e os amigos dos filhos. A casa sempre cheia, pessoas entrando e saindo, minha mãe providenciando para que a mesa acolhesse a todos. Tristeza pela sua partida? Sim, mas sem drama, havia chegado a sua hora. Fomos nos preparando para aceitar essa hora. O que guardamos dele são estórias que não cansamos de recordar, sem sofrimento algum. Seus ensinamentos, suas brincadeiras, seu amor por nós. Este é o seu legado, e ele nos acompanhará para sempre.

Um dia chegou a minha vez. Uma criança, um bebê, era algo absolutamente distante, salvo quando o seu choro me incomodava em ambientes fechados. Isso até aquele momento mágico em que a enfermeira do hospital me trouxe nos braços, diretamente da sala de parto, aquela que me colocaria na condição de pai, com todas as suas implicações e imensas responsabilidades. Fiquei deslumbrado diante da criaturinha ruiva que viria transformar a minha vida. Só se aprende a ser pai, sendo, toda a leitura prévia se revela insuficiente para lidar com essa condição. Cerca de um ano e meio depois a experiência de encantamento se repetiu: novamente uma enfermeira me trouxe nos braços um novo bebê, desta vez um menino.

A cada ano, no segundo domingo de agosto, celebra-se o Dia dos Pais. Neste ano de 2019 será no dia 11. Olho para trás e me pergunto: Terei sido um bom pai? Como meus filhos vivenciam as lembranças de nossas relações? Refaria alguma coisa se a vida nos concedesse uma segunda chance? Uma longa estrada. Percorro o passado e incontáveis lembranças assomam à minha mente. O que eles rememoram? Houve arestas, certamente, momentos em que fui excessivamente duro, criar filhos é missão bastante difícil, conflito de gerações. Eu e minha esposa, apesar de frequentes viagens a que éramos obrigados a fazer por circunstâncias profissionais, sempre procuramos estar muito presentes na vida deles. Nós os levávamos a toda parte. Praias, cinemas, shows, restaurantes. Brincávamos com eles, riamos muito. Faze-los felizes era a nossa maior recompensa. Particularmente memoráveis eram as festas, os passeios e as viagens recreativas. Começaram a nos acompanhar em nossas viagens internacionais ainda quando crianças, e não nos cansamos de recordar nossas experiências conjuntas.

Ficaria muito feliz se pudéssemos à minha simples vontade fazer visitas presenciais ao passado para usufruir momentos sublimes vivenciados com meus filhos. Na Máquina do Tempo, de Wells, ou por meio do inocente pó de pirlimpimpim da Emília. Não se trata de saudosismo, de nostalgia, de se estar “parado no tempo”, um preconceito tão comumente aplicado a referências do passado quando visto sob uma ótica meramente cronológica. O grande escritor José Saramago nos oferece em seu livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (uma narrativa sob uma perspectiva bastante pessoal do autor) um singular exemplo do desejo de perpetuação de cenas do passado. Saramago escreve que certos momentos na vida deveriam “ficar fixados, protegidos do tempo, não apenas consignados neste evangelho, ou em pintura, ou modernamente em foto, filme ou vídeo, o que interessava mesmo era que o próprio que os viveu, ou tenha feito viver pudesse permanecer para todo o sempre à vista dos seus vindouros...” E elege um momento descrito na vida de Jesus, ainda uma criança, como o seu preferido para tal fim.

 Quanto a mim, confesso que não saberia eleger um momento especial na vida de meus filhos para perpetuação. Mas, que coisa maravilhosa seria, por exemplo, reencontrar os meus queridos filhos quando crianças, saborear ao vivo os tantos momentos mágicos de nossa passada convivência. Hoje são adultos, casados e felizes, vivendo suas vidas, têm sua profissão, mas eu minha esposa damos graças de tê-los sempre perto de nós, constituindo uma família ampliada com genro e nora e, extraordinariamente, fomos presenteados com dois netinhos maravilhosos através dos quais, de certa forma, testemunhando o seu desenvolvimento, prestando ajuda, realizamos a fantasia de reencontrar nossos filhos ainda crianças.

Lembro-me de uma frase que uma amiga disse ao saber que minha esposa estava grávida pela primeira vez: “Ter filho é programa para a vida toda”. Pura verdade. Continuo sendo pai, amo os meus filhos, me gratificam cada vez que se dirigem a mim falando “pai”, e serei pai até o último dia de minha vida. E agora, aprendendo a ser avô.

Feliz Dia dos Pais!
01 de agosto de 2019

6 comentários:

  1. Meu Caro, sua descrição carinhosa e sincera dos bons momentos ao longo de sua vida com a família, retrata muito bem a importância de ter sido bem formado e poder compartilhar o amor que lhe foi transmitido em sua infância e adolescência por seus Pais.
    Seus filhos ficarão emocionados ao ler isto e seus netos no futuro também.
    Feliz dia dos Pais para todos nós.

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  2. Obrigado pelas suas palavras.Temos concepções muito semelhantes sobre criação e educação dos filhos.Você e Celia também são de um cuidado e um carinho enorme com a familia.

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  3. Obrigado pelas suas palavras.Temos concepções muito semelhantes sobre criação e educação dos filhos.Você e Celia também são de um cuidado e um carinho enorme com a familia.

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  4. Que doces lembranças querido Zé Antônio! Será lindo se num dia da vida de seus netinhos eles puderem ler esse poema de amor e gratidão. Parabéns pelo dia de amanhã!

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  5. Obrigado, minha querida amiga. Você, sempre atenciosa e sensível. Meus filhos e meus netos são o meu tesouro, a felicidade deles é hoje o meu maior desejo.

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  6. Mais uma vez, um excelente texto, do não menos excelente escritor/intelectual José Antonio de carvalho e Silva.
    Claro, didático e, muito bem colocado.
    Parabéns ao Escritor/Blogger.

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