Dia dos Pais
Faz muito tempo. Estávamos na década de 1950. Eu e
minha irmã éramos crianças, tínhamos algo como 8 e 12 anos, respectivamente. Um
dia chegou uma caixa à casa de nossa avó paterna, mansão com muitas estórias
para contar, endereçada ao meu pai. Ele nos chamou e abriu a caixa em nossa
presença. Era a Coleção Infantil de Monteiro Lobato, 17 tomos bem encadernados
e contendo caprichadas ilustrações feitas a bico de pena. A edição era do longínquo ano de 1942. Lembro-me
perfeitamente daquele momento, intuí que tratava-se de algo muito
significativo. E realmente foi. Não demorou muito e começamos, eu e minha irmã,
a mergulhar na leitura daquelas páginas que eram pura magia. Foi a minha
introdução ao mundo das letras, da literatura. Os personagens habitavam o Sítio
do Pica Pau Amarelo, de propriedade da Dona Benta, a matriarca, e de lá partiam
em viagens através dos meios de transporte convencionais ou aspirando o pó de
pirlimpimpim, inventado por Emília, uma irrequieta boneca de pano falante que
lá habitava O pó tinha o poder de transportar fisicamente as pessoas inclusive
para o passado, assim como a famosa Máquina do Tempo idealizada pelo escritor
H.G. Wells, em livro de mesmo nome. Particularmente “História do Mundo para
Crianças” e “Os Doze Trabalhos de Hércules” me fascinaram. Quando, muitos e
muitos anos depois, visitei, primeiramente a Grécia, e muitos outros anos após,
o Egito, as lembranças daqueles textos lidos na minha tenra infância afloraram
à minha mente. Na Grécia, a Cultura, os Deuses, Semideuses, os Super-Heróis, a Mitologia,
as construções - em particular, o Parthenon – e todo aquele clima da
Antiguidade Clássica. No Egito, ao contemplar as pirâmides, a Esfinge, os túmulos
milenares contendo múmias de Faraós, sarcófagos, as relíquias no Museu do Cairo
e tantas outras preciosidades.
Meu pai continuou estimulando a minha sede
literária. Poucos anos após presenteou-me com uma coletânea de livros de Júlio
Verne, leitura quase obrigatória para os meninos a partir de sua
pré-adolescência. E novos clássicos da literatura universal me foram
apresentados em uma nova coletânea: David Copperfield, Robinson Crusoé, A Ilha
do Tesouro, Os Três Mosqueteiros etc. Uma festa. Meu pai, embora não tivesse
completado o ensino superior, possuía apreciável cultura, um amor ao vernáculo,
um dicionário sempre à mão. Mas os
estímulos culturais não se limitaram somente à literatura. Foi ele quem me
apresentou, desde tenra idade, o mundo musical, especialmente os clássicos da
música norte-americana. Era fã dos grandes filmes musicais, das big-bands,
notadamente Glenn Miller, Harry James, Benny Goodman, Tommy Dorsey... e dos
grandes vocalistas – Bing Crosby, Ella Fitzgerald, Billy Eckstine..., que ele
escutava, já nos longínquos anos da década de 1940, de programas de rádio
transmitidos diretamente de Nova Iorque, cidade que ele amava só pelas
referências que tinha, pois só veio a conhece-la na década de 1980. Frank
Sinatra fui eu quem “apresentou” a ele. Lembro-me do dia em que me presenteou
com o vinil, na época chamado Long-Play,
“Torna a Sorrento”, uma coletânea de grandes sucessos do cantor em sua fase na
gravadora Columbia. Eu, então um adolescente de 13 anos, ouvia encantado
aquelas canções compostas (salvo a faixa título e uma outra, “Luna Rossa”,
ambas napolitanas, uma homenagem do cantor à sua origem italiana) pela fina
flor do cancioneiro norte-americano, e cantadas por aquele que tinha como
alcunha ser o “The Voice”. Porém havia lugar na atenção do meu pai também para
artistas nacionais, dentre outros: Gonzagão, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Ary
Barroso, Moreira da Silva e, sobretudo, Elias Regina.
Mas vou contar agora um acontecimento singelo do
cuidado e da atenção com que ele, e também a minha mãe, dispensavam aos seus
filhos, então apenas dois. Os dois outros vieram alguns anos mais tarde.
Naquela época picolés eram vendidos por ambulantes empurrando suas carrocinhas
amarelas com o logotipo Kibon. Alguns ambulantes não se valiam da tradicional
carrocinha, carregavam seus picolés em uma caixa sustentada por tirantes presos
aos seus ombros. Os picolés eram o Chicabon,
de chocolate, o Jajá de coco e o Tombon de limão. Fora do tamanho padrão,
menorzinho, foi lançado o Tombonete, voltado para as crianças (quem, dentre os
que viveram aquela época, se lembrará dele?). Morávamos em apartamento no
segundo andar de um sobrado, de cuja varanda eu e minha irmã a cada dia nos
despedíamos dos meus pais que saiam para mais uma jornada de trabalho.
Ficávamos um pouco tristes naqueles momentos da separação. Eis que um dia, de
forma totalmente inesperada, um daqueles ambulantes com uma caixa de picolés
pendentes dos ombros, da calçada olhou aquelas crianças e, sorridente, lhes
avisou que seus pais haviam passado por eles na rua e pagaram dois Tombonetes
para serem entregues a elas. Como pode um gesto tão simples marcar para sempre
a mim e a minha irmã?
Já faz vinte anos que o nosso pai nos deixou. Ao
aposentar-se, após uma longa e sempre digna carreira no Serviço Público, vivia
exclusivamente para os filhos, os netos e os amigos dos filhos. A casa sempre
cheia, pessoas entrando e saindo, minha mãe providenciando para que a mesa
acolhesse a todos. Tristeza pela sua partida? Sim, mas sem drama, havia chegado
a sua hora. Fomos nos preparando para aceitar essa hora. O que guardamos dele
são estórias que não cansamos de recordar, sem sofrimento algum. Seus
ensinamentos, suas brincadeiras, seu amor por nós. Este é o seu legado, e ele
nos acompanhará para sempre.
Um dia chegou a minha vez. Uma criança, um bebê, era
algo absolutamente distante, salvo quando o seu choro me incomodava em
ambientes fechados. Isso até aquele momento mágico em que a enfermeira do
hospital me trouxe nos braços, diretamente da sala de parto, aquela que me
colocaria na condição de pai, com todas as suas implicações e imensas
responsabilidades. Fiquei deslumbrado diante da criaturinha ruiva que viria
transformar a minha vida. Só se aprende a ser pai, sendo, toda a leitura prévia se revela insuficiente para lidar com
essa condição. Cerca de um ano e meio depois a experiência de encantamento se
repetiu: novamente uma enfermeira me trouxe nos braços um novo bebê, desta vez
um menino.
A cada ano, no segundo domingo de agosto, celebra-se
o Dia dos Pais. Neste ano de 2019 será no dia 11. Olho para trás e me pergunto:
Terei sido um bom pai? Como meus filhos vivenciam as lembranças de nossas relações?
Refaria alguma coisa se a vida nos concedesse uma segunda chance? Uma longa
estrada. Percorro o passado e incontáveis lembranças assomam à minha mente. O
que eles rememoram? Houve arestas, certamente, momentos em que fui
excessivamente duro, criar filhos é missão bastante difícil, conflito de
gerações. Eu e minha esposa, apesar de frequentes viagens a que éramos
obrigados a fazer por circunstâncias profissionais, sempre procuramos estar
muito presentes na vida deles. Nós os levávamos a toda parte. Praias, cinemas,
shows, restaurantes. Brincávamos com eles, riamos muito. Faze-los felizes era a
nossa maior recompensa. Particularmente memoráveis eram as festas, os passeios
e as viagens recreativas. Começaram a nos acompanhar em nossas viagens internacionais
ainda quando crianças, e não nos cansamos de recordar nossas experiências
conjuntas.
Ficaria muito feliz se pudéssemos à minha simples
vontade fazer visitas presenciais ao passado para usufruir momentos sublimes vivenciados
com meus filhos. Na Máquina do Tempo, de Wells, ou por meio do inocente pó de
pirlimpimpim da Emília. Não se trata de saudosismo, de nostalgia, de se estar
“parado no tempo”, um preconceito tão comumente aplicado a referências do
passado quando visto sob uma ótica meramente cronológica. O grande escritor
José Saramago nos oferece em seu livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (uma
narrativa sob uma perspectiva bastante pessoal do autor) um singular exemplo do
desejo de perpetuação de cenas do passado. Saramago escreve que certos momentos
na vida deveriam “ficar fixados, protegidos do tempo, não apenas consignados
neste evangelho, ou em pintura, ou modernamente em foto, filme ou vídeo, o que
interessava mesmo era que o próprio que os viveu, ou tenha feito viver pudesse
permanecer para todo o sempre à vista dos seus vindouros...” E elege um momento
descrito na vida de Jesus, ainda uma criança, como o seu preferido para tal
fim.
Quanto a mim,
confesso que não saberia eleger um momento especial na vida de meus filhos para
perpetuação. Mas, que coisa maravilhosa seria, por exemplo, reencontrar os meus
queridos filhos quando crianças, saborear ao vivo os tantos momentos mágicos de
nossa passada convivência. Hoje são adultos, casados e felizes, vivendo suas
vidas, têm sua profissão, mas eu minha esposa damos graças de tê-los sempre
perto de nós, constituindo uma família ampliada com genro e nora e,
extraordinariamente, fomos presenteados com dois netinhos maravilhosos através
dos quais, de certa forma, testemunhando o seu desenvolvimento, prestando
ajuda, realizamos a fantasia de reencontrar nossos filhos ainda crianças.
Lembro-me de uma frase que uma amiga disse ao saber
que minha esposa estava grávida pela primeira vez: “Ter filho é programa para a
vida toda”. Pura verdade. Continuo sendo pai, amo os meus filhos, me gratificam
cada vez que se dirigem a mim falando “pai”, e serei pai até o último dia de
minha vida. E agora, aprendendo a ser avô.
Feliz Dia dos Pais!
01 de agosto de 2019
Meu Caro, sua descrição carinhosa e sincera dos bons momentos ao longo de sua vida com a família, retrata muito bem a importância de ter sido bem formado e poder compartilhar o amor que lhe foi transmitido em sua infância e adolescência por seus Pais.
ResponderExcluirSeus filhos ficarão emocionados ao ler isto e seus netos no futuro também.
Feliz dia dos Pais para todos nós.
Obrigado pelas suas palavras.Temos concepções muito semelhantes sobre criação e educação dos filhos.Você e Celia também são de um cuidado e um carinho enorme com a familia.
ResponderExcluirObrigado pelas suas palavras.Temos concepções muito semelhantes sobre criação e educação dos filhos.Você e Celia também são de um cuidado e um carinho enorme com a familia.
ResponderExcluirQue doces lembranças querido Zé Antônio! Será lindo se num dia da vida de seus netinhos eles puderem ler esse poema de amor e gratidão. Parabéns pelo dia de amanhã!
ResponderExcluirObrigado, minha querida amiga. Você, sempre atenciosa e sensível. Meus filhos e meus netos são o meu tesouro, a felicidade deles é hoje o meu maior desejo.
ResponderExcluirMais uma vez, um excelente texto, do não menos excelente escritor/intelectual José Antonio de carvalho e Silva.
ResponderExcluirClaro, didático e, muito bem colocado.
Parabéns ao Escritor/Blogger.