domingo, 8 de março de 2020

Vaga para senhor de fino trato


Vaga para senhor de fino trato

Assim eram publicados nos jornais da época, os anos da década de 1960, os anúncios buscando inquilinos para aluguel de vaga em quartos de apartamentos. Atendendo a um desses anúncios eu e dois inseparáveis amigos, Pacci (*) e Gilberto, batemos à porta de um apartamento em Botafogo, Rio de Janeiro.  Corria o ano de 1967, éramos três recém-formados, com idades entre 22 e 23 anos, matriculados em um curso de mestrado em área tecnológica localizado na Praia Vermelha. O proprietário, Sr. Walter, lá vivia com esposa e um filho de aproximadamente 2 anos de idade. Rechonchudinho, era o orgulho do jovem casal de pais, que intencionava inscrevê-lo no concurso “Bebê Johnson”. Seria bastante improvável que três rapazes desconhecidos viessem a ser aceitos como inquilinos naquele lar, afinal, buscava-se “um senhor de fino trato”. Porém, após uma não longa conversa com o Sr. Walter, ele simpatizou conosco, disse que tinha algo espírita que lhe dizia que podia confiar em nós. Creio que isso seria absolutamente impensável nos dias de hoje. Compramos um beliche, uma cama de solteiro, um pequeno armário e nos acomodamos em um dos quartos do apartamento.
Essa era a segunda ocasião em que eu alugava uma vaga no Rio de Janeiro por conta de estudar na Praia Vermelha. Na primeira, eu tinha 17 anos e ingressara, assim como o Pacci e o Gilberto, em uma prestigiosa entidade de ensino superior da então denominada Universidade do Brasil (futuramente Universidade Federal do Rio de Janeiro, em sua nova localização, na ilha do Fundão). O ano era 1963. A faculdade ficava no ecológico bairro da Praia Vermelha, muito próxima ao sopé do Morro da Urca, de onde partiam os antigos bondinhos para o Pão de Açúcar. A jornada de Niterói, onde morávamos, até chegar a ela era demorada, demandava três conduções: um “trolley bus” (ônibus elétrico) para se chegar à estação das barcas de Niterói, a barca para a travessia da Baía de Guanabara e, finalmente, outro “trolley bus” à Praia Vermelha. Não raro podia durar duas horas. Seguiam-se oito horas passadas em salas de aula e laboratórios, intermediadas por duas horas de almoço. Acrescentando-se as duas horas gastas no regresso às nossas residências, chegávamos a um comprometimento de 14 horas de nosso dia útil. Era demais. Confabulamos e concluímos que o melhor seria “cruzarmos a Baía”, ou seja, alugarmos um pouso próximo à Faculdade. Decidimos então, eu e o Pacci, alugarmos a tal vaga para senhor de fino trato, daquela feita em um apartamento na Praia de Botafogo. Fiquei lá por dois meses, e a surreal estória daquele período foi narrada na minha crônica “Nos tempos de dona Ermelinda”, postada aqui neste blog.
Os anos da década de 1960 foram caracterizadas por um verdadeiro terremoto político e social. Marxismo, Stalinismo, Maoísmo, Trotskismo. Fidel Castro e Che Guevara. Crise dos mísseis em Cuba, em 1962, quase trazendo o confronto final EUA x URSS. Assassinato do presidente John Kennedy. Ditaduras militares. Contracultura, músicas de protesto, hippies, sexo, drogas e Rock and Roll. Misticismo. Woodstock, Jimmy Hendrix e Janis Joplin. Beatles e Rolling Stones. Fellini, Antonioni, Visconti, Bergman, Goddard, papo cabeça. Existencialismo, Feminismo, pílula e minissaia.  Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Bertrand Russel, Aldous Huxley, Herbert Marcuse.  Guerra do Vietnam. Em 1968 ocorreriam os assassinatos de Robert Kennedy e de Martin Luther King, a revolta dos estudantes em Paris e a passeata dos 100 mil no Brasil contra a ditadura militar. Aquele ano ficaria ainda marcado pela edição do Ato Institucional No. 5.
As discussões no ambiente universitário entre os esquerdistas e direitistas (uma categorização que até hoje me parece por demais simplista: ou se é comunista ou fascista, não se admite qualquer posicionamento diferente, nem mesmo a social democracia) eram fervorosas, apaixonadas, embora dificilmente causassem ruptura entre os grupos. O rompimento de relações não era absolutamente uma consequência natural de divergências políticas. O fundamental era participar, se posicionar. Quem não o fizesse seria automaticamente rotulado de “alienado”. Discutia-se presencialmente, não havia as redes sociais viralizando informações, no cara a cara era bem mais difícil passar fake news, e as divergências não impediam uma rodada conjunta de cerveja, batida de limão e outros drinques nos botequins da vida.
Voltemos a 1967 e ao quarto alugado no apartamento do Sr. Walter. Amigos inseparáveis desde o primeiro ano do curso ginasial, eu e meus amigos tínhamos muita coisa em comum, mas em um ponto divergíamos completamente. Gilberto era teólogo, profundamente católico, conhecedor da Bíblia e de textos sagrados. Estudava religião e importava livros de autores católicos consagrados, como Henri de Lubac, Teillard de Chardin, Jacques Maritain e outros. Já o Pacci era marxista, debruçava-se sobre textos de Marx, Lenin, Proudhon e congêneres. Quanto a mim, na falta de um enquadramento mais preciso, me consideravam “existencialista”, sem de fato sabermos o que isso exatamente significava. O fato é que eu não me alinhava nem com a religiosidade de um e nem com o marxismo de outro. Me considerava um livre pensador que ia da leitura de grandes romancistas e contistas – Kafka, Edgard Allan Poe, Herman Hesse etc. - a autores como Bertrand Russel, Aldous Huxley, Erick Fromm, alguma coisa de Freud e de Sartre e muitos outros textos.
 Curiosamente, a improvisada aplicação do termo existencialista a mim revelou-se ter um fundamente, à medida em que, em minha guinada tardia para a psicologia, pós graduei-me como especialista clínico, na abordagem existencialista.  Li e estudei autores dessa corrente filosófica, especialmente Sartre, anotando muitas de suas máximas, como a afirmação de que o homem está condenado a ser livre, e dentro dessa liberdade fazer suas escolhas. E ser responsável por elas. E que a existência precede a essência, essência essa que vamos construindo ao nos descobrirmos lançados no mundo. Muito longe do que o termo pode sugerir aos leigos, existencialismo nada tem de uma doutrina hedonista. Bem ao contrário, é uma filosofia de profundo comprometimento. Para defender o existencialismo de críticas que então lhe eram dirigidas Sartre pronunciou, em 29/10/45, uma conferência da qual resultou um opúsculo intitulado “O Existencialismo é um Humanismo”.
Ressalte-se que todo aquele nosso envolvimento em assuntos extracurriculares não impedia que nos dedicássemos com afinco às disciplinas do curso. Tenho gratas recordações das inúmeras noites em que, recolhidos ao nosso quarto, debatíamos as coisas da vida, cada um de seu ponto de vista. A conversa às vezes se estendia até tarde, ao ponto de certa feita o nosso senhorio ter se interessado em saber sobre o que tanto conversávamos. Não o fez em tom de admoestação, apenas demonstrou curiosidade, não transpareceu que ficasse incomodado com aquilo. Enfim, éramos três pessoas com perfis bastante diferenciados no tocante à pontos de vista filosóficos. Mas nunca brigávamos, havia grande afinidade entre nós.
Vida que segue, cada um tomou seu destino, todos sem ter completado um mestrado ao qual o coordenador não nos parecia empregar a dedicação necessária. Enveredei pelo mundo empresarial, meus amigos pelo acadêmico, cumprindo brilhantes carreiras. Eu e Gilberto, de uma forma de outra, sempre mantivemos uma forte vinculação com Niterói, mesmo nos períodos em que exercemos nossas atividades profissionais em outras cidades. E por isso continuamos mantendo um relacionamento muito próximo. Já o Pacci, mudou-se definitivamente para outro estado, durante muitos anos mantivemos contato por carta, depois por e-mail, quando essa ferramenta se nos ofereceu, e nas esparsas vezes em que ele retornou à sua cidade natal. Nesses contatos não aparecia o tema político. Por fim, perdemos o contato. Desconheço seu atual posicionamento. Quanto ao Gilberto, há muito sofreu uma radical transformação. De um religioso católico transformou-se em um marxista convicto e dedicado a profundos estudos filosóficos e com História de um modo geral. Por um longo tempo, além de incansavelmente nos divertirmos às gargalhadas com recordações dos velhos tempos, mantivemos intermináveis conversas sobre política, filosofia e ciência. Ele, marxista, e eu... existencialista – vamos deixar assim.
(*) todos os personagens são reais, mas os nomes são fictícios.
Fevereiro/2020

5 comentários:

  1. Zé...adorei..suas crônicas são gostosas de ler, e comp te conheço bem fico na expectativa das pérolas que virão...e vieram kkk..muito bom..precisamos de muitas leituras assim para caminhar neste mundo vazio💗

    ResponderExcluir
  2. Zé, sempre lhe achei um senhor de fino trato, afinal de contas, quem é admirador do Frank Sinatra, aí me incluo, só pode ser de "fino Trato".
    Os anos 60 foram muito conturbados, mas talvez ainda sentiremos saudades desta época ao compararmos com os terremotos atuais que estão por vir. Podem ser demais para um coração existencialista.
    Forte Abraço.

    ResponderExcluir
  3. Caríssimo amigo José Antonio.

    Apreciei imensamente seu conto ou crônica, elaborados da forma como só você, muito habilmente sabe fazer.

    Voltei no tempo, revi meus tempos de universitário, tudo, graças à sua narrativa, ao mesmo tempo erudita mas, de fácil e agradabilíssima leitura.

    Parabéns, continue sempre brilhando.

    Até à próxima, que, tenho certeza, virá, e lerei com imensa satisfação.

    Grande abraço.

    ResponderExcluir
  4. O comentário acima, que muito me envaidece, me foi transmitido via e-mail pelo meu mui prezado amigo Jonas Gleizer, e aqui postado com a sua devida autorização.

    ResponderExcluir
  5. Maravilha de relato. Uma verdadeira máquina do tempo, que nos transporta para época tão rica e efervescente, qdo as amizades persistiam mesmo com posições não necessariamente coincidentes. Parabéns.

    ResponderExcluir