terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Conversa com o Vírus

 

Conversa com o Vírus

 

Finalmente adormeceu, a madrugada de uma noite tormentosa já era chegada. Um sono intranquilo, agitando-se na cama. E começou uma sensação de uma leve ardência, uma sensação de formigamento percorria seu corpo. Opressão no peito. Despertou. Silêncio e escuridão em seu quarto. Salvo por um ponto luminoso postado sobre uma prateleira de sua estante, onde repousava uma vasta coletânea de livros sobre os mais diversos assuntos. Esfregou os olhos, concentrou sua atenção naquele ponto luminoso. Era algo em forma de uma grande semente de mamona, de cujos espinhos emanavam filamentos de luz. Estremeceu. Decerto era um pesadelo, um delírio, andava lendo demais sobre aquilo. E aquilo era o Vírus, o vírus que assolava a humanidade.

Transtornado, pergunta: - “Quem é você, sinistro ser que penetra a minha alcova durante a madrugada e me causa arrepios?” – “Sou o Vírus, responde, a semente.” – “Que vírus, o coronavírus?” – “Pode ser.” – “Como assim? Ou é ou não é”, contesta. - “Vocês, humanos, têm muitas certezas, as coisas têm que ser sempre muito definidas.” – “De onde você veio, para penetrar em minha alcova, e estar aí postado, enchendo-me de terror?” – “Vim do infinito, do eterno, faço parte da ordem natural das coisas.” - “Mas, quem é você?” – repetiu, angustiado, o homem sobre sua cama. – “Novamente, a necessidade humana de classificação. Não sou, estou sendo. No momento, um vírus; na Peste Bubônica da Idade Média, uma bactéria. Naquilo que vocês chamam de Gripe Espanhola, novamente um vírus. De quando em quando decido fazer uma visita ao seu mundo para mostrar a fragilidade e a soberba da raça humana.”

Ele delirava, com certeza delirava. Aquele diálogo não podia estar existindo. Procurou acalmar-se. Do ponto luminoso continuou a voz - “Veja. No momento em que eu estou assolando todos os recantos do planeta, não existe um consenso em relação ao que fazer para proteger-se de mim. Os seus mais ilustres cientistas divergem da maneira mais absoluta em sua orientação à população.” - Prosseguiu: “As pessoas, salvo em pouquíssimas sociedades, reagem de maneira desordenada, em total indisciplina, politizam uma questão que deveria ter uma abordagem puramente técnica. E os políticos são meus aliados. Isso facilita muito o meu trabalho de infectar.”

“Mas, já temos conhecimentos de sua forma de atuação, temos remédios, logo teremos vacinas. Você será exterminado”. – “Quanta tolice. Eu já disse: não sou, estou sendo. É puro pensamento ilusório julgar que uma vez infectada, a pessoa estará automaticamente imune para sempre. Posso transmutar-me, a vacina, ainda que funcione contra uma das minhas formas, de nada valerá contra uma futura mutação. E tem mais, prosseguiu a voz que vinha do brilho que emanava dos espinhos da semente de mamona, que tal essa torrente de sandices que vocês espalham sobre as vacinas? Elas fariam parte de um plano diabólico, vão causar alterações genéticas, vão possibilitar o total controle sobre aqueles que a tomarem. Vocês adoram teorias da conspiração, nelas o homem, mesmo que da forma mais perversa, é o arquiteto, e está no controle. Não é nada disso, eu estou por aí, não estou a serviço de vocês, pobres humanos.”

E a voz prosseguiu: “Eu decidirei quando darei um tempo para vocês, em algum momento vou me cansar e colocar-me numa retaguarda a espera de um novo momento de ataque, até mesmo para promover controle populacional. Foi sempre assim, desde as pragas bíblicas. Vocês não aprendem, não sou o único responsável pelos genocídios. Não se esqueçam das duas grandes guerras mundiais, e das incontáveis outras guerras travadas ao longo de séculos, milênios, da violência cotidiana, da miséria, coisas sobre as quais eu não tive e nem tenho qualquer participação. A vocês foi dado o livre arbítrio, podem usá-lo para o bem ou para o mal, e devem arcar com as consequências. Mesmo diante de uma catástrofe não provocada pelo exercício de uma escolha humana, o livre arbítrio será exercido na lida de seus efeitos. “

Aquele discurso fazia sentido. O homem prestara atenção em cada uma daquelas palavras. Perguntou: “Como você acha que estamos lidando com esta pandemia?” – “Já respondi. De forma atabalhoada, desconexa, vitimista. Confundem tudo, se tornam presa fácil para mim, especialmente quando desprezam os conselhos mais básicos, como evitar aglomerações e o uso de máscaras. Não é que um psiquiatra aparece falando que as pessoas usando máscaras estão formando uma sociedade esotérica, e que escondem seus rostos por vergonha? Pois eu lhe digo, humilde mortal, até porque a sua voz não será ouvida: o uso da máscara é, sim, muito importante para a prevenção, mesmo para aqueles que já receberam a minha visita. Atuarei, preferencialmente, sobre os descuidados, os que me subestimam.”

Continuou: “Vocês estão confusos, relacionam uma vastíssima lista de sintomas que podem denunciar a contaminação. Acabará que qualquer sinal emitido pelo corpo, e que passaria completamente despercebido numa situação normal, os levará a ingerir uma batelada de fármacos ou mesmo a uma ida a um hospital. Eu atuarei sobre cada um de vocês de uma forma que eu decidirei, mais branda para uns, mais contundente para outros, fatal para outros mais. Preocupação exagerada de nada adiantará, levará vocês à depressão, à elevados níveis de estresse, à paranoia.”

O homem já ouvira o suficiente. Armando-se de coragem, perguntou: “E quanto a mim, você vai me contaminar?” – “Não sei, gosto de ser imprevisível para mim mesmo”, foi a resposta final do Vírus. O homem levantou-se, acendeu a luz, e já não havia qualquer sinal da semente de mamona e de sua luminescência sobre a sua estante de livros.

José Antonio C. Silva

14/12/2020

10 comentários:

  1. Amigo, ao ler seu texto fiz uma associação do vírus com a figura da morte que, vez ou outra, vem nos alertar sobre nossa vulnerabilidade e arrogância. O diálogo de seu texto é brilhante. Faz uma análise da interação do homem com a pandemia numa esfera global e individual. Desta forma nos deixa uma pergunta muito importante: O que somos nós diante do terror? Excelente texto!

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  2. Mais um ótimo texto, com o qual nos brinda o excelente Autor José Antonio de Carvalho e Silva, abordando, com a qualidade que lhe é peculiar, esse atualíssimo tema. Parabéns, J A. Continue nos presenteando com seus ótimos textos.

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  3. Muito legal essa abordagem de transformar o vírus em um ser pensante com poderes de fazer justiça às mazelas e atrocidades do ser humano, destacando nossa soberba que mascara a insegurança e a fragilidade. A gente até torce pra ele, pois, afinal, tem um merecido propósito! Adorei!!

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  4. Muito bom José Antônio, você descreve bem as atrocidades vividas ao longo de várias catástrofes, guerras e pandemias passadas, mostrando as diversas reações das pessoas, indo da indiferença, negações e hipocondricidades de alguns ingerindo fármacos além da conta. O vírus debocha da soberba de muitos, dizendo que poderá voltar de forma muito pior a qualquer momento, lembrando que os políticos são seus aliados nesta luta paranoica em que se transformou esta pandemia. Parabéns, excelente texto!


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  5. Excelente!! Retrato de “nossa época” atual... 2020 é exatamente assim! 👏👏👏👏👏👏👏👏

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  6. O comentário abaixo me foi enviado por e-mail pelo meu fraternal amigo José Glauco R.Tostes, Professor, Doutor em Química, Filósofo, e aqui é reproduzido com a sua devida autorização.
    *Personagem nº 1
    Refiro-me à sua recente crônica “CONVERSA COM O VÍRUS”, que você há pouco me enviou. Mais particularmente ao SEGUNDO parágrafo da crônica. Ali seu personagem humano encarna o ponto de vista filosófico-científico das FRONTEIRAS BEM DEFINIDAS, e das correspondentes CERTEZAS, na trajetória mais que bimilenar da RAZÃO OCIDENTAL. O ponto de vista da dupla PARMÊNIDES-ARISTÓTELES, cerca de 2500 anos atrás. O ponto de vista do PRINCÍPIO DA NÃO CONTRADIÇÃO [PNC]: “ou é ou não é”, diz o humano. É o ponto de vista do que se denomina de “filosofia ANALÍTICA” (análise – separação, fronteiras bem definidas).
    *Personagem nº 2
    Já o seu personagem “vírus” encarna o ponto de vista filosófico-científico do DERRETIMENTO RADICAL DE FRONTEIRAS BEM DEFINIDAS, com as correspondentes INCERTEZAS, na trajetória da RO [quando este ponto de vista esteve ativo nos últimos 2.500 anos]. É o ponto de vista de HERÁCLITO, cerca de 2500 anos atrás. É o ponto de vista do PRINCÍPIO DA INTERPENETRAÇÃO DOS OPOSTOS [PIO], na formulação de Engels (mais para o fim do séc. XIX). É o vírus, como que respondendo à afirmação acima, no parágrafo anterior, em negrito, do humano: “Não sou, estou sendo”. Se isso facilita vocês, esse é aproximadamente o ponto de vista BUDISTA: aqui toda e qualquer separação ou FRONTEIRA nítida entre o que quer que seja são encaradas como “maia” (ilusão, falsidade), atrapalhando o caminho de cada um na direção do sublime êxtase budista da “fusão com o todo”, o sunyata. Não existiriam linhas ou superfícies, “materiais” e “imateriais”, separando precisamente as coisas. Uma analogia geométrica simples, comparando-se duas figuras, ajuda aqui. Figura (a): imagine um círculo contendo uma região branca e outra preta, separadas por uma clara linha ou fronteira divisória. Aqui é como se tivéssemos dois líquidos imiscíveis, um preto e um branco. Essa figura é uma representação simbólica do personagem nº 1, isto é, do ponto de vista da “filosofia ANALÍTICA”. Figura (b): imagine agora o mesmo círculo com uma parte branca e outra preta e ENTRE elas um degradê acinzentado e contínuo vai desde o quase negro até um quase branco. Na figura (b) lá se vai a FRONTEIRA nítida de (a), devido a uma interpenetração entre, digamos, dois líquidos parcialmente miscíveis, um preto e um branco. Na fig. (b) temos uma representação simbólica do personagem nº 2, isto é, do ponto de vista da “filosofia DIALÉTICA” ou “SINTÉTICA”.

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  7. Poeticamente vc retrata o momento Sinistro como se referiu Ju, este diálogo nos faz refletir, só nos resta *cuidar*🙏🏽👏👏👏👏👏👏

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  8. Caro, Zé! Você retratou o mundo em que vivemos hoje, diante do COVID. Medo, angústia, insegurança e incertezas estão regendo a vida de muitos de nós. A mente humana está confusa e perdida. Ela não sabe conviver com o inexplicável e com o que não domina. Ao dar luz , voz e forma a esse inimigo invisível e desconhecido e elaborar explicações plausíveis , você dá um chão para a mente humana. A partir daí, faz reflexões importantes sobre o comportamento humano . Somos arrogantes, onipotentes mas, a situação mostrou como somos vulneráveis . Somos individualistas e egoístas mas, a vitória sobre esse inimigo depende da coletividade. Será que aprenderemos com o que vivemos hoje, e que já aconteceu de forma semelhante no passado . O futuro dirá. Parabéns pelo texto.

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  9. Excelente Registro Histórico do que passamos!
    AAS.: Athos

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