domingo, 27 de dezembro de 2020

Não há beleza sem o pensamento da beleza

 

“Não há beleza sem o pensamento da beleza”

 

Esta é a frase final do texto escrito por Christophe Clavé (*)  encontrado no link abaixo (acesso em 22/12/2020), em língua italiana, assim como em sua tradução para a língua portuguesa.

https://libplus.it/non-ce-liberta-senza-necessita-non-ce-bellezza-senza-il-pensiero-della-bellezza/?fbclid=IwAR1xQuQHGZxBAIjf4mzGdIRrARBkbtr3aj4trB_7gWSr7zj2DuudqaXa3Lo

por Christophe Clavé.

O Efeito Flynn - batizado em homenagem ao cientista que estudou esse fenômeno - afirma que o quociente de inteligência médio (QI) da população mundial está aumentando constantemente. Isso pelo menos desde o segundo pós-guerra até o final dos anos 90. Desde então, o QI vem diminuindo. É a inversão do Efeito Flynn.
A tese ainda é debatida e muitos estudos estão em andamento há anos sem conseguir acalmar o debate. Parece que o nível de inteligência medido pelos testes diminui nos países mais desenvolvidos. Pode haver muitas causas para esse fenômeno.
Um deles pode ser o empobrecimento da linguagem. Na verdade, muitos estudos mostram a diminuição do conhecimento lexical e o empobrecimento da linguagem. Não se trata apenas da redução do vocabulário utilizado, mas também das sutilezas linguísticas que nos permitem elaborar e formular um pensamento complexo. O desaparecimento gradual dos tempos (subjuntivo, imperfeito, formas compostas do futuro, particípio passado) dá origem a um pensamento quase sempre no presente, limitado ao momento, incapaz de projeções no tempo. A simplificação dos tutoriais, o desaparecimento da capitalização e da pontuação são exemplos de golpes mortais na precisão e variedade de expressão. Apenas um exemplo: eliminar a agora obsoleta palavra "Signorina" [no original em língua italiana. Senhorita, em português] não significa apenas abrir mão da estética de uma palavra, mas também promovendo involuntariamente a ideia de que não existem fases intermediárias entre uma menina e uma mulher. Menos palavras e menos verbos conjugados significam menos capacidade de expressar emoções e menos capacidade de processar um pensamento (o grifo é meu). Muitos estudos têm mostrado como parte da violência nas esferas pública e privada decorre diretamente da incapacidade de descrever as emoções em palavras. Sem palavras para construir um argumento, o pensamento complexo torna-se impossível. Quanto mais pobre a linguagem, mais o pensamento desaparece. A história está cheia de exemplos e muitos livros - de Georges Orwell em 1984 a Ray Bradbury em Fahrenheit 451 - contam como todos os regimes totalitários sempre atrapalharam o pensamento, por meio de uma redução no número e no significado das palavras. Se não houver pensamentos, não há pensamentos críticos. E não há pensamento sem palavras. Como construir um pensamento hipotético-dedutivo sem o condicional? Como pensar o futuro sem uma conjugação com o futuro? Como é possível captar uma temporalidade, uma sucessão de elementos no tempo, passado ou futuro, e sua duração relativa, sem uma linguagem que distinga o que poderia ter sido, o que foi, o que é, o que poderia ser, e o que será depois do que pode ter acontecido, realmente aconteceu? Quero me dirigir a pais e professores: fazemos nossos filhos, nossos alunos falar, ler e escrever. Ensinar e praticar o idioma em suas mais diversas formas. Mesmo que pareça complicado. Principalmente se for complicado. Porque nesse esforço existe liberdade.
Não há liberdade sem necessidade.
Não há beleza sem o pensamento da beleza.

(*) Christophe Clavé.  Diplomado em Ciências pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris. Detentor de um MBA, coach (treinador) profissional, passou 25 anos em empresas, como Diretor de RH e como Diretor Geral. Foi ainda encarregado do curso de Estratégia e Políticas de Empresas na Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris durante 5 anos. Atualmente é Presidente de uma sociedade de investimentos e treinador de dirigentes. Autor do livro "Les Voies de la Stratégie" – “Caminhos da Estratégia”.

 Meus comentários:

Tenho escrito exaustivamente, e continuarei escrevendo, sobre a superficialidade dos contatos e os desentendimentos entre as pessoas no mundo atual, sejam presencias ou virtuais, e a decisiva influência da internet, poderoso e extremamente útil meio de informação (não sendo de forma alguma um substituto para o livro) e comunicação entre as pessoas, mas cujo uso abusivo acaba por em muito contribuir para aquele fenômeno.   Aquele que deveria escutar a fala do outro como que constrói em sua mente um discurso que não reflete aquilo que está realmente sendo dito, mas, sim, o que ele espera que o outro fale, valendo-se de uma espécie de um algoritmo em seu cérebro. Um exemplo: alguém expressa a sua revolta quanto ao ostensivo descumprimento, por parte da população, da recomendação do distanciamento social para medida de redução do risco de contágio pelo COVID-19. E lamenta a indisciplina de nosso povo: “Nós não somos japoneses.” Ao o outro prontamente retruca: “Ainda bem que não somos japoneses!”, ampliando um desejo expressado tão somente quanto a uma específica característica dos japoneses. Trata-se de alguém que, por essa reação, denota sua desaprovação à regra do distanciamento social, um direito seu, naturalmente, mas manifestado por uma distorção da fala de seu interlocutor, escutada como um desejo de que, para todos os efeitos, fossemos japoneses.

 E a comunicação fica ainda mais prejudicada quando se considera a menor capacidade, da parte de quem fala, de expressar emoções e de processar um pensamento, o que deixa lacunas nas conversações, ensejando àquele que escuta preencher essas lacunas com significados que ele próprio cria. Como resultado, desentendimentos, incompreensão, agressões. O texto do Professor Clavé é perfeito nessa abordagem quando relaciona o empobrecimento da linguagem com a dificuldade na comunicação, e coloca em discussão esse fenômeno como possível causa para a redução do quociente de inteligência médio da população mundial (QI) observado nos últimos 20 anos, em contraposição à constante elevação constatada desde o pós guerra em 1945. Não se trata, como já escrevi em outros textos, de que as pessoas devam ter uma erudição vernacular de um Machado de Assis, de um Carlos Drummond de Andrade, ou, ainda, a precisão de um Millôr Fernandes, mas, sim, que falem ou escrevam com um mínimo de consistência, para se fazer entender corretamente pelo interlocutor, admitido ainda que este não tenha conceitos pré-estabelecidos por um algoritmo sobre aquele que fala.

Não há beleza sem o pensamento da beleza. E, na contenção da Novilíngua, imaginada por George Orwell em seu “1984”, e nos exageros do politicamente correto, não há espaço para obras artísticas, especialmente aquelas expressas na forma dos grandes romances, da poesia, dos enredos de peças teatrais e de filmes, nas letras de grandes canções. À arte restará ser engajada, à serviço do sistema político dominante.

Tudo o que dissemos até o momento pressupõe que os desentendimentos sejam apenas fruto de um empobrecimento da linguagem e, consequentemente do pensamento, e, não, fruto de uma deliberada intenção de uma, ou de ambas as partes, de vencer o debate a qualquer custo, mesmo sem ter qualquer razão, o que, infelizmente, parece ser muito frequente nos polarizados debates dos tempos atuais. Estamos falando da Dialética Erística, do filósofo Schopenhauer, que a define justamente como a arte de discutir, e mais especificamente, de discutir de modo a ter razão, seja por meios lícitos ou ilícitos. Schopenhauer aponta que é possível ter razão objetiva em relação ao assunto em si e, ainda assim, aos olhos dos observadores, e aos próprios, não ter razão. O livro do qual retiramos os conceitos intitula-se “38 estratégias para vencer qualquer debate – A arte de ter razão” (FARO EDITORIAL, 2014). Nesse livro, o filósofo descreve cada uma das 38 estratégias, dentre as quais, como exemplo, citamos: Use as premissas de seu oponente contra ele; Mude as palavras do oponente para confundi-lo; Faça seu oponente concordar de forma indireta; Provoque o oponente; Confunda e assuste o oponente com palavras complicadas e por aí segue, até chegar à estratégia final: Como último recurso, parta para o ataque pessoal.

Importante assinalar que o propósito da exposição das estratégias não é o de fornecer aos mal intencionados ferramentas para vencer os debates sem ter qualquer razão, mas, sim, de alertar a todos sobre esses truques e subterfúgios dialéticos.

 

José Antonio C. Silva

 26/12/2020

3 comentários:

  1. Amigo, você nos apresenta aqui outra crônica de importantíssima reflexão. Muito bom!

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  2. Puras verdades! Será que a total dispersão das pessoas e a má fluidez dos diálogos são consequências dessas ausências? Sempre associei a deficiência da linguagem e do entendimento à síndrome da pressa, mas, após ler seu texto, penso que o seu argumento é mais consistente. Excelente!!

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  3. Excelente apreciação do texto de Christophe Clavé.
    Mais uma vez, José Antonio, com sua rara maestria, nos proporciona um texto excelente, em que aborda um assunto de grande importância, porém, relegado a um plano inferior.
    Parabéns, José Antonio, continue nos brindando, com seus primorosos textos.

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