terça-feira, 1 de dezembro de 2020

O Virus e o Corvo de Allan Poe

 

O Vírus e o Corvo de Allan Poe

 

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria

a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,

e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,

tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.

“É alguém – fiquei a murmura – que bate à porta, devagar,    

                                                                              sim, é só isso e nada mais.”

 

Assim começa o fantástico, sob todos os aspectos, poema “O Corvo” (The Raven, no original), de Edgar Allan Poe (1).


Não era um “alguém”, era a sinistra figura de um Corvo, conforme se descobrirá na sequência do poema, e que viria  a ser descrito como um ser do mal, uma ave infernal, e que, pela janela, adentra o quarto e pousa, hierático, sobre uma escultura, um busto da deusa Minerva. A cada questionamento, o Corvo repete sempre: “Nunca mais” (“Nevermore”). Em total desespero, o sofrido personagem implora à sinistra ave: “Volta de novo `a tempestade, aos negros antros infernais”, ao que o Corvo responde mais uma vez, em definitivo: “Nunca mais”.

 

                                              E lá ficou! Hirto, sóbrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,

                                              Sobre o alto busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.

   No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos dorme,

                               e à luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.

                               Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma, e, presa à sombra

                                            não há de erguer-se, ai! Nunca mais!

 

Lembrei-me dessa obra imortal, referência para poetas e escritores em tantos idiomas, quando somos assolados pela segunda onda do COVID-19, A Peste, em referência que faço ao livro de mesmo nome e escrito por Albert Camus, já citado por mim em diversas crônicas. É como se na calada de uma noite tormentosa a peste, na forma de uma semente de mamona, entrasse em nosso lar e, tal qual o Corvo de Allan Poe, decidisse lá permanecer para sempre, nos confundindo, nos adoecendo, nos enlouquecendo.

 

 Exausto, é como eu me sinto, tal qual o sofrido personagem do poema, diante dessa pandemia que parece não ter fim. As estatísticas sobre o número de contaminados e o de óbitos não são confiáveis. Cada um acredita no que quer, as redes disseminam teorias da conspiração e o pensamento ilusório – uma realidade projetada sobre um desejo, por menos verossímil que seja.  Além das indefectíveis fake news. Absolutamente cansado de ler tantas contradições propaladas por especialistas das mais diversas áreas, doutrinando sobre o vírus, os cuidados preventivos a serem tomados – assepsia, isolamento social, ingestão de fármacos de toda sorte, etc. - e sobre como tratar a doença, caso contraída. Mas, uma vez curada, aquela pessoa que contraíra a doença não estaria imunizada, pois o vírus é mutante, afirmam alguns. Duvida-se da eficiência dos testes. E agora temos a especulação em torno de uma vacina mágica, que finalmente nos livraria desse horrível mal.

 

Voltamos a um grau de isolamento social cujo rigor ainda não está bem definido pelas autoridades competentes. As pessoas se cansam de se sentirem privadas de sua livre circulação, dos encontros com os amigos, das viagens, dos passeios, dos bares e restaurantes, das casas de espetáculo, dos centros desportivos, das academias, enfim, de todos os lugares onde marcavam presença. Confinadas em seus lares, apelam para o mundo virtual, dependentes da tela de seu celular, de seu computador, de sua televisão. A ansiedade permeia, à medida em que somos informados que o contaminado mais recente não é mais o amigo de um amigo, mas, sim, um filho, um irmão, um outro parente, um vizinho ou um amigo próximo. E nesse confinamento crescem o estresse, a ansiedade, a depressão, a estática na comunicação perturbando a real escuta do outro, os desentendimentos. O desenvolvimento de nossas crianças é prejudicado pelo fechamento das escolas. E tudo isso envolto num ambiente de extrema polarização política, alimentado pela mídia tradicional e pelas redes sociais.

 

Sinto que na verdade estamos perdidos, sem uma orientação segura sobre como proceder. O isolamento social foi relaxado, aqui e em muitos países europeus, e como resultado temos a segunda onda. Tanto lá como cá a abertura foi feita de forma descontrolada, agora há uma nova orientação para um outro fechamento. Novamente recordo o livro de Camus. O escritor ambienta sua narrativa na cidade de Orã, na Argélia.

Em determinado momento, da mesma maneira com que o ciclo de mortes pela doença, transmitida por ratos se iniciara, e rapidamente avançara, os óbitos decresceram e praticamente cessaram, a ponto de a prefeitura, no dia 25 de janeiro (ano?) considerá-la erradicada.  Logo a população começou as ruidosas comemorações. As portas da cidade se abriram. As famílias, então separadas, começavam a se reunir.

 

Camus concluiu esse desesperado livro lembrando que o bacilo da peste não morre e não desaparece. Avisou-nos que o bacilo da peste fica “dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas”. Ainda, advertiu que a peste “espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papeis, nos lenços”. E quando volta, “para nossa desgraça, manda os ratos morrerem numa cidade feliz”. Trocando-se ratos e bacilos por outros vírus e pragas tem-se o quadro aflitivo que eu e o leitor vivemos. E, com maior intensidade, os mais fragilizados física e/ou emocionalmente. A leitura do livro é muito dura, mas como tudo o que Camus escreveu é cheia de nuances e merecedora de profunda reflexão. É uma alegoria da condição humana.

 

É um alerta que nada valerá para a nossa população. Ruidosas e despreocupadas comemorações ocorreram aos primeiros sinais de arrefecimento do contágio. As máscaras caiam, estávamos livres do vírus para sempre. A segunda onda chegou (haverá uma terceira, uma quarta?), invadiu as casas, contaminou nossos entes queridos, causa enormes danos à economia dos países. 2020 entrará para a História como um ano sinistro. Ele já começou claudicante para os habitantes da cidade do Rio de Janeiro e alguns municípios limítrofes devido à poluição da água que chegava às nossas torneiras. Era uma contaminação com a geosmina, uma substância química produzida por bactérias cujo crescimento foi favorecido pelo aumento da concentração de matéria orgânica devido à poluição por dejetos domésticos, industriais etc. despejados diretamente nas bacias de captação de água a ser tratada e distribuída à população. Mas a geosmina não era nada em comparação ao vírus que já rondava, sorrateiro, tal qual o Corvo de Allan Poe, e começou a assombrar as nossas vidas no início do mês de março. Quando irá embora, definitivamente? Nunca mais? Esperamos que não!!!

 

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(1)    Na tradução de Milton Amado (2), contida, entre outras dez traduções – por mestres como Machado de Assis e Fernando Pessoa, para a língua portuguesa, e Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé, para a língua francesa - no livro “O Corvo” e suas traduções (Ivo Barroso, 2000, Editora Nova Aguiar S/A), e também no link (2). O autor considera a tradução de Milton Amado a melhor dentre todas apresentadas. Também presente está, é claro, o original escrito na língua inglesa da magistral obra de Allan Poe. Mesmo para quem não domina a língua inglesa, recomendo apreciar a interpretação (legendada) e a ambientação do poema por Vincent Price (3), famoso por sua atuação em tantos filmes de terror. Nessa performance, se poderá apreciar “a consistência, o ritmo, a melodia, do original, obtidos por meio de uma conjugação especialíssima de aliterações e assonâncias, rimas e repetições homófonas, que dão ao texto uma cadência e um ‘clima’ sonoro do qual decorre o encantamento do verso” (conforme Ivo Barroso).

(2)    https://www.netmundi.org/home/2017/o-corvo-de-edgar-allan-poe-milton-amado/ Acesso em 28/11/2020

(3)    https://www.youtube.com/watch?v=TcN84WZMzD4 Acesso em 28/20/2020

 

José Antonio C. Silva

01/12/2020

4 comentários:

  1. Amigo,seu diálogo com a obra de Allan Poe nesta crônica é muito pertinente. O vírus é o próprio corvo que nos espreita e nos enche de angústias.Muito bom!!!

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  2. Muito boa a analogia! E faz muito sentido com o "nunca mais" do poema. Estamos tão atônitos com os acontecimentos, que não exprimimos exatamente o nosso sentimento - aquilo que o seu texto conseguiu reproduzir com sabedoria!

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  3. Mais uma crônica de altíssimo nível!! Parabens, José Antônio!!👏👏👏👏👏👏👏👏 que a inspiração continue assim em alta e nao se vá “never more”! (Ao contrário do vírus, q já podia ir embora ne...)

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  4. Sua lembrança sobre o magistral poema "the Raven" e sua alusão a obra de Albert Camus, no momento em que estamos sendo assolados por esta terrível pandemia, é bastante realista nestes tempos estranhos que estamos vivendo, sendo muito bem descrito pelo nobre amigo.
    Só me faz refletir sobre mais uma "peste" que estamos assistindo, a pandemia política que nos assola há mais tempo que o surgimento do Covid, impedindo o crescimento de nosso país, mostrando mazelas que aparentemente não existe vacina capaz de imunizar-nos contra este terrível mal político que nos assola.
    A vacina contra o Covid já é uma realidade, será aplicada ainda este mês na Inglaterra e nos EUA, esperamos todos que algum dia chegue aqui.
    Continue inspirado e nos premiando com suas crônicas.
    Parabéns.

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