O Vírus e o Corvo de Allan Poe
Foi uma vez: eu
refletia, à meia-noite erma e sombria
a ler doutrinas
de outro tempo em curiosíssimos manuais,
e, exausto, quase
adormecido, ouvi de súbito um ruído,
tal qual se
houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
“É alguém –
fiquei a murmura – que bate à porta, devagar,
sim, é só isso e nada mais.”
Assim começa o fantástico, sob todos os aspectos, poema “O
Corvo” (The Raven, no original), de Edgar Allan Poe (1).
Não era um “alguém”, era a sinistra figura de um Corvo, conforme
se descobrirá na sequência do poema, e que viria a ser descrito como um ser do mal, uma ave
infernal, e que, pela janela, adentra o quarto e pousa, hierático, sobre uma
escultura, um busto da deusa Minerva. A cada questionamento, o Corvo repete
sempre: “Nunca mais” (“Nevermore”). Em total desespero, o sofrido personagem
implora à sinistra ave: “Volta de novo `a tempestade, aos negros antros
infernais”, ao que o Corvo responde mais uma vez, em definitivo: “Nunca mais”.
E
lá ficou! Hirto, sóbrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
Sobre
o alto busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal,
em sonhos dorme,
e à luz da
lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
Nela, que ondula
sobre a alfombra, está minha alma, e, presa à sombra
não há de erguer-se, ai! Nunca mais!
Lembrei-me dessa obra imortal, referência para poetas e
escritores em tantos idiomas, quando somos assolados pela segunda onda do
COVID-19, A Peste, em referência que faço ao livro de mesmo nome e escrito por
Albert Camus, já citado por mim em diversas crônicas. É como se na calada de
uma noite tormentosa a peste, na forma de uma semente de mamona, entrasse em
nosso lar e, tal qual o Corvo de Allan Poe, decidisse lá permanecer para sempre,
nos confundindo, nos adoecendo, nos enlouquecendo.
Exausto, é como eu me
sinto, tal qual o sofrido personagem do poema, diante dessa pandemia que parece
não ter fim. As estatísticas sobre o número de contaminados e o de óbitos não
são confiáveis. Cada um acredita no que quer, as redes disseminam teorias da
conspiração e o pensamento ilusório – uma realidade projetada sobre um desejo,
por menos verossímil que seja. Além das
indefectíveis fake news. Absolutamente cansado de ler tantas contradições
propaladas por especialistas das mais diversas áreas, doutrinando sobre o
vírus, os cuidados preventivos a serem tomados – assepsia, isolamento social,
ingestão de fármacos de toda sorte, etc. - e sobre como tratar a doença, caso contraída.
Mas, uma vez curada, aquela pessoa que contraíra a doença não estaria imunizada,
pois o vírus é mutante, afirmam alguns. Duvida-se da eficiência dos testes. E
agora temos a especulação em torno de uma vacina mágica, que finalmente nos
livraria desse horrível mal.
Voltamos a um grau de isolamento social cujo rigor ainda não
está bem definido pelas autoridades competentes. As pessoas se cansam de se
sentirem privadas de sua livre circulação, dos encontros com os amigos, das
viagens, dos passeios, dos bares e restaurantes, das casas de espetáculo, dos
centros desportivos, das academias, enfim, de todos os lugares onde marcavam
presença. Confinadas em seus lares, apelam para o mundo virtual, dependentes da
tela de seu celular, de seu computador, de sua televisão. A ansiedade permeia,
à medida em que somos informados que o contaminado mais recente não é mais o
amigo de um amigo, mas, sim, um filho, um irmão, um outro parente, um vizinho ou
um amigo próximo. E nesse confinamento crescem o estresse, a ansiedade, a
depressão, a estática na comunicação perturbando a real escuta do outro, os
desentendimentos. O desenvolvimento de nossas crianças é prejudicado pelo
fechamento das escolas. E tudo isso envolto num ambiente de extrema polarização
política, alimentado pela mídia tradicional e pelas redes sociais.
Sinto que na verdade estamos perdidos, sem uma orientação
segura sobre como proceder. O isolamento social foi relaxado, aqui e em muitos
países europeus, e como resultado temos a segunda onda. Tanto lá como cá a
abertura foi feita de forma descontrolada, agora há uma nova orientação para um
outro fechamento. Novamente recordo o livro de Camus. O escritor ambienta sua
narrativa na cidade de Orã, na Argélia.
Em
determinado momento, da mesma maneira com que o ciclo de mortes pela doença,
transmitida por ratos se iniciara, e rapidamente avançara, os óbitos
decresceram e praticamente cessaram, a ponto de a prefeitura, no dia 25 de
janeiro (ano?) considerá-la erradicada. Logo a população começou as
ruidosas comemorações. As portas da cidade se abriram. As famílias, então
separadas, começavam a se reunir.
Camus concluiu esse desesperado livro lembrando que o bacilo
da peste não morre e não desaparece. Avisou-nos que o bacilo da peste fica
“dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas”. Ainda, advertiu que a peste
“espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papeis, nos
lenços”. E quando volta, “para nossa desgraça, manda os ratos morrerem numa
cidade feliz”. Trocando-se ratos e bacilos por outros vírus e pragas tem-se o
quadro aflitivo que eu e o leitor vivemos. E, com maior intensidade, os mais
fragilizados física e/ou emocionalmente. A leitura do livro é muito dura, mas
como tudo o que Camus escreveu é cheia de nuances e merecedora de profunda
reflexão. É uma alegoria da condição humana.
É um alerta que nada valerá para a nossa população. Ruidosas
e despreocupadas comemorações ocorreram aos primeiros sinais de arrefecimento
do contágio. As máscaras caiam, estávamos livres do vírus para sempre. A
segunda onda chegou (haverá uma terceira, uma quarta?), invadiu as casas,
contaminou nossos entes queridos, causa enormes danos à economia dos países.
2020 entrará para a História como um ano sinistro. Ele já começou claudicante
para os habitantes da cidade do Rio de Janeiro e alguns municípios limítrofes
devido à poluição da água que chegava às nossas torneiras. Era uma contaminação
com a geosmina, uma substância química produzida por bactérias cujo crescimento
foi favorecido pelo aumento da concentração de matéria orgânica devido à
poluição por dejetos domésticos, industriais etc. despejados diretamente nas
bacias de captação de água a ser tratada e distribuída à população. Mas a
geosmina não era nada em comparação ao vírus que já rondava, sorrateiro, tal
qual o Corvo de Allan Poe, e começou a assombrar as nossas vidas no início do
mês de março. Quando irá embora, definitivamente? Nunca mais? Esperamos que
não!!!
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(1)
Na tradução de Milton Amado (2), contida, entre
outras dez traduções – por mestres como Machado de Assis e Fernando Pessoa,
para a língua portuguesa, e Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé, para a
língua francesa - no livro “O Corvo” e suas traduções (Ivo Barroso, 2000,
Editora Nova Aguiar S/A), e também no link (2). O autor considera a tradução de
Milton Amado a melhor dentre todas apresentadas. Também presente está, é claro,
o original escrito na língua inglesa da magistral obra de Allan Poe. Mesmo para
quem não domina a língua inglesa, recomendo apreciar a interpretação (legendada)
e a ambientação do poema por Vincent Price (3), famoso por sua atuação em
tantos filmes de terror. Nessa performance, se poderá apreciar “a consistência,
o ritmo, a melodia, do original, obtidos por meio de uma conjugação especialíssima
de aliterações e assonâncias, rimas e repetições homófonas, que dão ao texto
uma cadência e um ‘clima’ sonoro do qual decorre o encantamento do verso”
(conforme Ivo Barroso).
(2)
https://www.netmundi.org/home/2017/o-corvo-de-edgar-allan-poe-milton-amado/
Acesso em 28/11/2020
(3)
https://www.youtube.com/watch?v=TcN84WZMzD4
Acesso em 28/20/2020
José Antonio C. Silva
01/12/2020
Amigo,seu diálogo com a obra de Allan Poe nesta crônica é muito pertinente. O vírus é o próprio corvo que nos espreita e nos enche de angústias.Muito bom!!!
ResponderExcluirMuito boa a analogia! E faz muito sentido com o "nunca mais" do poema. Estamos tão atônitos com os acontecimentos, que não exprimimos exatamente o nosso sentimento - aquilo que o seu texto conseguiu reproduzir com sabedoria!
ResponderExcluirMais uma crônica de altíssimo nível!! Parabens, José Antônio!!👏👏👏👏👏👏👏👏 que a inspiração continue assim em alta e nao se vá “never more”! (Ao contrário do vírus, q já podia ir embora ne...)
ResponderExcluirSua lembrança sobre o magistral poema "the Raven" e sua alusão a obra de Albert Camus, no momento em que estamos sendo assolados por esta terrível pandemia, é bastante realista nestes tempos estranhos que estamos vivendo, sendo muito bem descrito pelo nobre amigo.
ResponderExcluirSó me faz refletir sobre mais uma "peste" que estamos assistindo, a pandemia política que nos assola há mais tempo que o surgimento do Covid, impedindo o crescimento de nosso país, mostrando mazelas que aparentemente não existe vacina capaz de imunizar-nos contra este terrível mal político que nos assola.
A vacina contra o Covid já é uma realidade, será aplicada ainda este mês na Inglaterra e nos EUA, esperamos todos que algum dia chegue aqui.
Continue inspirado e nos premiando com suas crônicas.
Parabéns.