domingo, 28 de fevereiro de 2021

O Livre Arbítrio e o Destino

Ano 1967, em um dia qualquer após 12 de agosto, data de minha admissão na unidade químico-farmacêutica de uma prestigiosa multinacional operando em diversos ramos industriais, e situada na cidade de Rezende/RJ. Eu me encontrava a bordo de um ônibus saído do Rio de Janeiro com destino àquela cidade. A meu lado estava o meu chefe, responsável direto pela minha contratação. Era o Gerente da Produção Farmacêutica, um engenheiro corpulento, tipo socado, um tanto ríspido no trato, ia sempre direto ao ponto. Eu, um jovem de 22 anos de idade, sensível, com preocupações existenciais, muito chegado à literatura. E foi justamente este amor aos livros que, além da relação profissional, de confiança mútua, construiu uma relação de amizade entre nós. Acontece que aquele homem, que intimidava as pessoas, conhecido pela alcunha de Paçoca, pelo seu tipo físico e pelo trato, era também um amante da literatura e dos grandes clássicos. Foi dele que ouvi pela primeira vez menção ao livro “Almas Mortas”, do genial escritor russo Nikolai Gogol, obra que eu viria a degustar poucos anos mais tarde. Naquela conversa falei do que eu considerava a grande questão existencial: Destino x Livre Arbítrio. Ele, com muita tranquilidade me respondeu que conciliava as duas coisas. Há eventos que em determinados e imprevisíveis momentos nos acometem. É o Destino. Mas, entre esses eventos somos capazes de conduzir as nossas vidas, através do exercício do Livre Arbítrio. Jamais esqueci aquela fala,

  Recuemos ao ano de 1967. A carta, da PETROBRAS, e que ainda tenho em mãos, datada de 06 de dezembro de 1966, chegou, levada diretamente por um portador à residência dos meus pais, com quem eu residia, em Niterói. Eu não estava lá, no momento da entrega, cheguei mais tarde e fui recebido com imensa alegria por eles. E o que dizia a carta? Que eu, “entre 1.212 candidatos, havia sido aprovado e classificado para ingresso naquela empresa como ‘técnico estagiário’, durante o período de Pós-Graduação em Engenharia de Processamento, a iniciar-se em fevereiro próximo vindouro.”

 Era a glória. Eu mal completara a minha graduação em Química Industrial pela prestigiosa Escola Nacional de Química da Universidade do Brasil, então sediada na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, e já tinha em mãos o mais cobiçado emprego que um profissional desejaria ter, numa época em que a industrialização do Brasil ainda era um tanto incipiente. O processo classificatório fora bastante duro. Embora facultado a qualquer profissional de nível superior da Química, o que o concurso visava era muito primordialmente aqueles com base em Engenharia Química. Eu, Químico Industrial (não confundir com Técnico Químico, um profissional de nível médio), tivera dois anos de disciplinas compartilhadas com os Engenheiros Químicos. A partir daí se deveria optar por um dos dois cursos, e a convergência entre ambos se daria em apenas algumas disciplinas. Eu não gostava de engenharia, daí a minha opção.

  O concurso constou de uma prova de conhecimentos técnicos, com uma duração de 4 horas. Houve um intervalo para almoço, ao qual seguiu-se uma bateria de testes psicotécnicos. Mas não parou por aí. Após selecionados, deveriam todos ainda submeter-se a consultas individuais com dois diferentes profissionais: um Psiquiatra e um Oftalmologista. Atendi às duas consultas. Com o oftalmologista, num teste para diferenciação de cores, ficou constatado que eu era daltônico (*), condição que eu mesmo desconhecia. Perguntei ao médico se isso poderia ser um problema, ao que ele respondeu que poderia ser eliminatório. Estranhamente não dei muita importância ao fato. Antes mesmo da emissão dos laudos, iniciou-se o curso de Pós Graduação, com carga horária de 8 horas por dia, durante um ano. Era uma turma de cerca de 30 alunos. Começaram as aulas, eu já vendo o direcionamento das matérias para a área da engenharia, e um desconforto ao me imaginar trabalhando em uma refinaria, quando, cerca de duas semanas após, fomos, eu e um outro colega de turma, chamados à Secretaria do curso, onde nos informaram que seríamos desligados, ambos por problemas oftalmológicos. Eu por ser portador de daltonismo, o colega por outra razão qualquer. Perguntei qual o problema em ser daltônico, ao que me foi respondido que, em uma situação de emergência na refinaria, eu poderia não saber identificar as tubulações, diferenciadas por cores, e por onde corriam líquidos e gases, a serem abertas ou fechadas. A explicação não me convenceu muito (**). Ao candidatar-me ao emprego na PETROBRAS eu exercera o meu Livre Arbítrio. Ao desligar-me, a empresa exerceu o seu, que recaiu sobre mim como um golpe do Destino.

 O fato é que eu, no íntimo, já me sentira imensamente gratificado por ter sido aprovado em um concurso tão rigoroso, ao qual concorreram profissionais de todo o país. Provara a mim mesmo, e aos colegas de turma, que eu aprendera o que fora ensinado, que eu era bom. Fui muito cumprimentado. Realmente, trabalhar em uma unidade industrial do que quer que fosse não me seduzia, ainda mais em uma refinaria, minha vontade mesmo era aprofundar os estudos teóricos em alguma pós graduação. E essa oportunidade logo me foi oferecida com a montagem de uma nova pós graduação, tecnológica, no Instituto de Química, também sediado na Praia Vermelha. Junto com três diletos amigos nos inscrevemos e começamos a frequentar as aulas, com muita alegria. Mas, ao longo de alguns meses fomos percebendo que aquele curso não se consolidaria. O responsável por sua implantação estava tendo grandes dificuldades na obtenção de fundos do exterior, indispensáveis para a cobertura dos gastos. Foi então que através de um tio foi marcada uma entrevista com o Superintendente daquela fábrica mencionada no início deste texto. A não consolidação do curso foi um golpe do Destino, ao qual respondi, no uso do meu Livre Arbítrio, com o meu desligamento e com a aceitação da entrevista na fábrica. O Destino me aprontara duas peças, mas, como pregava Sartre, o importante não é o que fazem conosco, mas aquilo que fazemos com o que fazem conosco.

Tomei o ônibus e para lá segui. A entrevista com o Superintendente foi curta, logo me encaminhou para entrevistas com alguns gerentes, dentre os quais o Paçoca, a mais curta de todas. Mais tarde, perguntei a ele o porquê, ao que me respondeu que viu logo que eu era um cara sério, e que iria se revoltar contra a cambada. Por cambada ele se referia a um grupo que tramava contra o Superintendente, começando por tramar contra ele próprio, Paçoca, Gerente da Produção Farmacêutica, um profissional dedicado e muto competente. Terminadas as entrevistas, o Superintendente decidiu pela minha contratação. Foi então que, por Livre Arbítrio de ambas as partes, da minha e da empresa, no dia 12 de agosto de 1967, comecei formalmente a trabalhar na fábrica, na função de Analista de Processo.

  Lá fui ficando, e retornando quase todos os finais de semana à casa dos meus pais, em Niterói. Não havia a Ponte, era uma jornada de quase 4 horas. Um belo dia, no início do ano de 1969, surgiram na fábrica para cumprimento de um estágio precedente ao quinto e ultimo ano do seu curso de Engenharia Química, dois estudantes vindos de Belo Horizonte, um homem e uma mulher, aquela que viria a ser minha esposa e mãe dos meus filhos. O nosso enamoramento, posterior casamento e os dois engravidamentos dela, dos quais nasceram nossa amada filha e nosso amado filho, foram fruto de nosso Livre Arbítrio.

 Hoje, olhando para os meus dois netinhos, fico rememorando todos esses fatos. A decisão de ter filhos foi fruto do Livre Arbítrio da minha filha e de seu marido, mas, nem ela nem seus amados filhos existiriam, assim como não existiria meu filho, se a sequência de eventos acima, compostos por intervenções do Destino e pelo exercício do Livre Arbítrio tivesse sido diferente.

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(*) Diferentemente do que muitos pensam, daltonismo, ou discromatopsia, não é necessariamente uma incapacidade de distinguir entre o verde e o vermelho. Existem daltônicos e daltônicos. No meu caso, por exemplo, geralmente não tenho dificuldade em distinguir quando as cores são bem marcantes. O problema surge nos entretons. Tanto no referido exame com o oftalmologista, como nas inúmeras vezes em que fui submetido a exame de vista no DETRAN, por conta da Carteira de Habilitação, me é apresentado um livro onde, em cada página, aparece uma diferente composição de bolinhas em nuances de cores. Um não portador de discromatopsia enxergará um número formado por uma sequência de bolinhas de tonalidades muito próximas. Eu consigo enxergar os números em algumas páginas, em outras, não. Nos exames do DETRAN já declaro que sou daltônico, ao que o oftalmologista acende sinais de trânsito, cujas lâmpadas emitem, de posições variáveis, luminosidade nas cores verde, vermelho e amarelo, e que são identificadas por mim, e assim sou sempre aprovado. Ademais, a Física nos ensina que a cor não é uma característica dos objetos, depende da luz que os ilumina. Um objeto associado a uma determinada cor pode ser visto como de uma cor completamente diferente dependendo da luz que o ilumina. (**) Justificativa completamente despropositada, sem levar em consideração o disposto acima. De qualquer forma, vale recorrer ao jargão popular “Deus escreve certo por linhas tortas”. Minha filha, meus netinhos, meu filho, existem, dentre uma série de outras circunstancias, porque sou daltônico!!! 
José Antonio C. Silva 27/02/2021

17 comentários:

  1. Amigo, obrigada pelo belíssimo e sensível texto.

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  2. Amigo, obrigada pelo belíssimo e sensível texto.

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  3. Meu Caro, parabéns pela bela trajetória de vida, com inegável sucesso em concursos e na escolha das diversas empresas em que trabalhou. Sei que além da Petrobrás, também esteve em grandes multinacionais e corporações brasileiras.
    Sobre seu texto não posso deixar de mencionar Sartre, um de seus filósofos preferidos, mencionando que a compreensão do livre-arbítrio transmite uma visão de liberdade, que significa, agir como se quer, se não há escolhas não há liberdade, ela não pode ser abstrata e muito menos transcendente, pois se dá em nível consciente, no mundo e não separado dele.
    Quanto ao destino, não é preciso filosofar nem concluir que lhe sorriu de forma simples e direta, quando entre os dois estudantes vindos de Belo Horizonte, estava sua futura esposa,
    sua companheira de toda a vida, com que teve 2 belos filhos, a felicidade de 2 belos netinhos e a certeza de um destino tranquilo, escrevendo suas crônicas que serão lembradas pela família e pelos amigos.
    Forte abraço.

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  5. Emocionante pensar que minha existência, do Cristiano e dos meus filhos estão ligadas ao de fato de você ter daltonismo.

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  6. Que texto bacana,feliz por ter conhecido essa família linda e especial. PARABÉNS!!

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  7. Parabéns! Ótimo texto e interessante trajetória de vida!

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    1. Um grande abraço meu amigo
      Lembrança dos bons tempos em Resende

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    2. Se não fosse o profissional que poderia ganhar a vida como escritor... de temas profundos! Seu texto levou-me à célebre observação: Se a filha do faraó do Egito não tivesse exercido seu livre arbítrio, salvando aquele bebê das águas do Rio Nilo, por certo que não existiria a civilização judaico-cristã!

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  8. Que dizer? Parabéns pela caminhada , está valendo ,por cada acerto e possível desacerto.

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  9. O destino sorriu para quem exerceu o livre arbítrio de se preparar bem!
    Mas agora vejo que tive o feliz destino de ter um tio tão bacana por influência do paçoca!

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  10. Lindo texto pai, muito emocionante!!

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  11. Olá, Jose Antônio, adorei ler o seu texto! Eu não te conheço, apenas nos falamos uma vez ao telefone e a sua orientação me deu muita segurança na escolha do profissional que eu estava procurando. Obrigada!
    Mas quero dizer que este tema é fantástico, nós vivemos numa rede onde Livre-arbítrio é o leme. Conheci a Edna através do meu Livre-arbítrio em retornar a Alter-do-Chão
    e estou lendo esse texto maravilhoso por causa dessa escolha.
    Voltou à minha memória um desejo antigo de fazer um curso de redação pra aprender a escrever, que inveja eu senti da sua forma de contar uma história! A escrita flui, sem excessos, gostaria de ler um livro seu, que não seja técnico. Um livro de crônicas. Já publicou algum?
    Edna, agradeço o compartilhamento, amiga!

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  12. A história de vocês não podia deixar de ser incrível! Fui privilegiada também pelo destino que, aliado ao pensamento positivo, me conduziu até um grupo de pessoas experientes, no primeiro dia de aula do doutorado, e houve o livre-arbítrio quando aceitei o convite de me juntar ao grupo para um trabalho. Pois bem, quem estava ao meu lado era sua encantadora e generosa esposa, e hoje desfruto da amizade de toda família. Muito linda sua história, e a relação com o destino e o livre-arbítrio é perfeita!

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  13. Zé,sua crônica além focar no interessante tema, "destino e livre arbítrio",que já se fez presente em nossas conversas, mais de uma vez, me cativou pela forma simples e clara com que as idéias foram abordadas. Relacioná-las com suas próprias experiências de vida veio, ainda mais´, enriquecer sua crônica, ao associar fatos, realidade, com as idéias,teoria . Parabéns por nos proporcionar momentos de reflexão .

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  14. Fiz um comentário longo sobre seu texto. De fácil compreensão. Uma verdadeira aula de Livre Arbítrio, para os iniciados da espirituLidade. Gosto quando passamos conhecimento para as pessoas que estão de alguma forma querendo um aprendizado sobre o assunto. Um amigo do meu neto de 14 anos está querendo saber mais sobre espiritismo.

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  15. Sua narração irá me ajudar muito. Agradeço participar das suas publicação. Abs

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