sábado, 7 de agosto de 2021

Está me ouvindo?

 

Está me ouvindo?

 

Muitas coisas o incomodavam tremendamente no admirável mundo virtual. A agressividade com que temas políticos eram debatidos: “Você tem que entender que...”, uma expressão típica daquele que quer convencer à força o seu interlocutor de sua verdade no tema política, ou daquele que, a despeito da enorme incerteza reinante sobre como proteger-se ou como tratar-se do vírus COVID-19, uma vez contraído, formou sua própria certeza. Não há certezas com relação ao vírus. Agora surge uma nova mutação, a variante Delta, aterrorizando o mundo. Será ela sucedida pela variante Épsilon e de outras nomeadas segundo o alfabeto grego? Dentre os enormes disparates que circulam nas redes sociais encontram-se: a crença de que Bill Gates colocou um microchip na vacina que poderá controlar o cérebro de quem se vacinar; a afirmação de que a aplicação da vacina irá causar um desequilíbrio na conjugação planetária, e no próprio universo; o vírus, a despeito dos altíssimos registros de infectados e de mortes por eles causadas (mesmo que imprecisos, não podem simplesmente ser descartados como inteiramente forjados), é mera invenção de espertalhões etc. São as famigeradas fake news, que podem divulgar mentiras sabe-se lá com que intenção. Um exemplo muito recente é a mensagem que alerta:

“Hoje a Globo estava falando sobre o Whatsapp Gold e é verdade. Existe um vídeo que será lançado amanhã no Whatsapp e se chama Gambarelli. Não abra!!. O vírus vai para o seu telefone, sua conta bancaria será zerada e seu telefone bloqueado para sempre! Avisem os seus contatos, amigos e colegas!! Se você receber uma mensagem para atualizar o Whatsapp Gold * Não abra! Eles acabaram de anunciar que o vírus é sério. Envie para todos.” Absolutamente fake, qual será o objetivo do imbecil que concebeu esse “alerta” alarmista?

  Bem antes do surgimento da internet Martin Heidegger, um dos filósofos mais marcantes do Século XX, já se posicionara como um contundente crítico à subjugação do homem pela técnica, mas apresentava uma singela solução para lidar com ela: “Podemos dizer ‘Sim` à inevitável utilização dos objetos técnicos e podemos dizer ‘Não`, impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa própria natureza” (1).  Ele estudara bastante o que Heidegger escrevera sobre a questão da técnica. Igualmente conhecia a opinião de outros importantes pensadores da nova era, como o filósofo e escritor italiano Umberto Eco (2), severo crítico da internet no tocante a dar voz a todo tipo de opinião desqualificada. O escritor indiano Salman Rushdie foi categórico ao afirmar que “A maldição da descrença começou com a internet” (3). Ele sabia que a questão não era a internet em si, mas o ser humano por trás de sua criação, tão frequentemente fazendo uso abusivo ou absolutamente perverso de uma ferramenta excepcionalmente útil, mas que, assim como outras conquistas tecnológicas da humanidade, pode também apresentar uma faceta bastante cruel ou, simplesmente, tola. Isso o entristecia, pois as redes seriam uma alternativa à mídia tradicional, sensacionalista, e que há muito abandonara o seu papel investigativo.

Mas o que passou a atormentá-lo ao extremo foi a proliferação das tentativas de golpes. Aproveitando-se do estresse causado pelo vírus e pelo uso cada vez mais abusivo dos meios virtuais, até mesmo pelas restrições aos contatos presenciais, bandidos desenvolvem e aperfeiçoam métodos para capturar suas vítimas, através do celular – chamadas de voz, via WhatsApp e SMS, e-mail – e do computador. Também o velho telefone fixo serve para as tentativas de golpe. A antiga ligação avisando sobre ter um ente querido em cativeiro e solicitando resgate para a soltura por incrível que pareça continua fazendo vítimas. Bastante atual é a clonagem de um número do celular juntamente com a captura da foto e dos contatos de seu dono. A partir daí, o bandido dispara mensagens a contatos que ele identifica como próximos, criando um enredo de um imprevisto de necessidade financeira e solicitando uma transferência de emergência para uma determinada conta. Ele sabia de muitos casos de pessoas que haviam sido vítimas desses golpes. Por WhatsApp, por SMS e por e-mail recebia falsos alertas da urgente necessidade de ativar a Chave Pix de Bancos com os quais ele sequer tinha conta; falsos comunicados de seu Banco solicitando confirmação sobre uma indevida utilização de seu cartão de crédito, ou transferência de sua conta, e fornecendo um número telefônico para um bloqueio, caso a operação não seja reconhecida. O número é falso e, mesmo que verdadeiro, o correntista deve ligar para a sua agência pelo número que tem agendado e, por outro telefone, pois aquele pelo qual recebeu a ligação está grampeado. Trata-se de uma categoria de golpe denominada phishing (4), ele aprendera o significado do termo. Decidiu mudar de Banco, aquele com o qual sempre mantivera excelente relacionamento, mas se fazia necessário apagar todos os rastros possíveis. Desinstalou o App de seu antigo Banco e não instalou o aplicativo para o novo. Suas relações bancárias a partir de então seriam tão somente presenciais.

Em meio a tanta imundície, surge mais um golpe, que particularmente o deixava indignado. O telefone toca, diversas vezes ao dia, de diversos números, ele atende, e escuta a pergunta: “Está me ouvindo?” – a voz é bem clara e a vítima, ao responder “Sim”, terá essa concordância gravada e utilizada para fechar operações fraudulentas em seu nome. Parece inverossímil essa possibilidade, mas com uma justiça que não costuma fazer Justiça para os inocentes, tudo é possível. Houve dias em que ele recebeu três, quatro vezes, essa infame tentativa de golpe. Tinha vontade de xingar, de responder com palavrões do mais baixo calão, mas sabia que de nada adiantaria. Pensou em não mais atender números não identificados em sua agenda, mas com isso deixaria de receber importantes ligações de confirmação de consultas e de exames médicos, do andamento de tratativas com prestadores de serviços etc.

Leu, com atenção, o texto sobre a existência de uma bizarra categoria de pessoas no Japão. “Denominada johatsu, ou os "evaporados", milhares de cidadãos japoneses buscam ajuda de empresas clandestinas para desaparecer do mapa e deixar suas identidades para trás. Estes, saem de circulação para buscar refúgio no anonimato. O governo japonês não disponibiliza números oficiais sobre os johatsu, porém, estima-se que entre 100.000 a 185.000 japoneses recorram ao método anualmente. Essa fuga é de certa forma muito fácil no país, já que as leis de privacidade japonesa dão aos cidadãos liberdade para manter seus dados em segredo. Apenas em casos onde houve crime é que a polícia do país investiga os movimentos. Pessoas desaparecidas podem sacar dinheiro em caixas eletrônicos e não serem descobertas, assim como membros da família não podem acessar vídeos de câmeras de segurança, para tentar descobrir o paradeiro ou o dia e a hora em que seu ente fugiu. Aos familiares fica a dúvida se foi um caso voluntário ou não, assim como o sentimento de abandono.” (5)

Mas isso era “coisa de japonês”, não seria praticável para ele, que a cada dia se sentia mais esmagado pelo cotidiano de violência e burrice disseminadas pelos instrumentos da internet. Decidiu que sua sobrevivência psíquica dependia de uma desconexão máxima possível dos diabólicos instrumentos da informática. O ideal seria uma desconexão completa, principalmente do telefone celular e até mesmo do computador. Ficaria tão somente com o cada vez mais obsoleto telefone fixo. E assim preparou-se para se tornar um johatsu na medida do possível. Começou por mudança de operadora e de número de seu telefone fixo, ao qual acoplou um identificador de chamadas. Manteve a televisão, mas o seu uso de há muito estava restrito, por sua decisão. Nada de noticiários. Chegou a vez do computador. Efetuou drástica redução em suas funções. Ficaria apenas com os aplicativos Word e Excell. Facebook? Deletar. Pesquisar no Google, nem pensar, o algoritmo estava atento às suas pesquisas e traçando seus costumes, seus hábitos, seu perfil, o próprio “Big Brother is watching you”, descrito por George Orwell em seu premonitório “1984”. Seu uso ficaria restrito ao acesso a sites rigorosamente obrigatórios, como o da SRF – Secretaria da Receita Federal, por exigência do Grande Irmão. Youtube? Uma pena, mas também deletar esse bisbilhoteiro.  Considerou cancelar também o e-mail, mas decidiu correr o risco de mantê-lo em quarentena, a despeito de ele também ter se constituído em um poderoso canal de ameaças virtuais, de disseminação de burrice e de promessas mirabolantes. No passado, ele e colegas de trabalho se divertiram muito particularmente com um e-mail que prometia: “enlarge your penis up to 5 inches [12,7 cm!!!]”, através de um determinado procedimento.  Para minimizar o risco de rastreamento também mudou de servidor e de endereço de e-mail.

E chegou o momento supremo de livrar-se do celular, aquele aparelhinho incialmente concebido para transmitir apenas a voz, um telefone ambulante, e agora transformado em poderosa droga entorpecente. Decidiu que deveria revestir o ato de alguma solenidade. Como que a desafiar os ladrões obcecados em roubar celulares dos transeuntes, saiu para dar uma longa caminhada ao longo da qual fez diversas ligações, assim como recebeu e emitiu mensagens pelo mais viciante dos aplicativos, o WhatsApp, este com a agravante de estar, mais e mais, se transformando num meio robótico e como única opção para comunicação com empresas. E então, ao chegar à borda de um canal de águas putrefactas, despediu-se do aparelhinho e lançou-o naquela cloaca, certificando-se de sua completa e irreversível submersão. Teve um fim merecido, respirou aliviado.

Retornou à sua residência. Sentou-se diante da TV e assistia um programa cultural quando o telefone tocou. Levantou-se e atendeu. “Está me ouvindo?”, perguntava aquela voz que tanto o atormentava, enquanto o Bina registra a proveniência da ligação: do seu celular, aquele mergulhado na podridão profunda, mas o numero havia sido clonado antes daquele mergulho final.

Na última vez em que foi visto por um conhecido, ele rondava o Consulado Japonês.

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(1)   HEIDEGGER. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1959

(2)   VEJA, 01/07/2015, pag. 15

(3)   O GLOBO, 01/05/2021

(4)   Phishing é um termo originado do inglês (fishing) que em computação se trata de um tipo de roubo de identidade online. Essa ação fraudulenta é caracterizada por tentativas de adquirir ilicitamente dados pessoais de outra pessoa, sejam senhas, dados financeiros, dados bancários, números de cartões de crédito ou simplesmente dados pessoais. O Brasil foi líder mundial em golpes de phishing em 2020.

(5)   https://exame.com/mundo/as-empresas-que-evaporam-pessoas-no-japao-entenda/ Acesso em 04/07/2021

José Antonio C. Silva

07/08/2021

8 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Muito oportuna sua crônica. O personagem encarna um desespero tão presente em nossos dias. Martin Heidegger realmente parecia prever nosso mundo atual. Sua escrita tem rítmo. É bem articulada em ideias e nos faz mergulhar no sentimento do personagem. E o humor irônico de seu texto é perfeito. Muito bom

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  3. Belo texto meu amigo José Antônio ! Você me fez lembrar de uma palestra que assisti sobre tecnologia da informação , realidade virtual e sobre uma possível inteligência artificial há mais de 30 anos onde o palestrante intuia um futuro não muito distante onde não conseguiríamos distinguir entre uma informação real e uma informação falsa e manipulada. Hoje temos tudo isso nos mais diversos canais, vídeos, áudios, textos e tudo mais que a internet possa servir de instrumento de disseminação. Ficar incógnito hoje é uma tarefa quase impossível, embora o sofrimento descrito no texto seja uma realidade para todos nós !... José Antônio ?!? Está me ouvindo ?!?!

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  4. Sensacional e atualíssimo texto do excelente escritor e cronista José Antônio de Carvalho e Silva que, de maneira brilhante,desnuda o maniqueísmo que permeia a tecnologia digital,com seus benefícios e malefícios, estes, causados por indivíduos e ou grupos inteiramente sem caráter.
    Parabéns e aplausos, ao brilhante amigo, autor da excelente crônica.

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  5. Excelente conteúdo que trata do fascinante mundo tecnológico que estamos imersos. Salienta, também, o quanto é aberto, arriscado e vulnerável. Como sempre, conseguiu abarcar tudo isso de forma objetiva, com um toque de acidez (que é a sua marca), o que torna tudo muito mais espontâneo e bem-humorado!

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  6. muito bom texto. Infelizmente vivo em estado de alerta constante, sempre com medo de ser vitima de algum golpe.

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  7. Muito oportuno o texto, particularmente no tocante à citação do filósofo Heidegger sobre como lidar com a técnica: "Podemos dizer `Sim´ à inevitável utilização dos objetos técnicos e podemos dizer ´Não', impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa própria natureza."

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  8. Belíssimo texto, José Antonio. O problema é que vivemos em um país em que, a cada invenção que surge para facilitar a nossa vida, os desonestos se aproveitam para transforma-la em uma oportunidade de obter ganhos ilícitos. Triste país esse nosso.

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