Está me ouvindo?
Muitas coisas o incomodavam
tremendamente no admirável mundo virtual. A agressividade com que temas
políticos eram debatidos: “Você tem que entender que...”, uma expressão típica
daquele que quer convencer à força o seu interlocutor de sua verdade no
tema política, ou daquele que, a despeito da enorme incerteza reinante sobre
como proteger-se ou como tratar-se do vírus COVID-19, uma vez contraído, formou
sua própria certeza. Não há certezas com relação ao vírus. Agora surge
uma nova mutação, a variante Delta, aterrorizando o mundo. Será ela sucedida
pela variante Épsilon e de outras nomeadas segundo o alfabeto grego? Dentre os enormes
disparates que circulam nas redes sociais encontram-se: a crença de que Bill
Gates colocou um microchip na vacina que poderá controlar o cérebro de quem se
vacinar; a afirmação de que a aplicação da vacina irá causar um desequilíbrio
na conjugação planetária, e no próprio universo; o vírus, a despeito dos
altíssimos registros de infectados e de mortes por eles causadas (mesmo que
imprecisos, não podem simplesmente ser descartados como inteiramente forjados),
é mera invenção de espertalhões etc. São as famigeradas fake news, que podem
divulgar mentiras sabe-se lá com que intenção. Um exemplo muito recente é a
mensagem que alerta:
“Hoje a Globo estava falando sobre o
Whatsapp Gold e é verdade. Existe um vídeo que será lançado amanhã no Whatsapp
e se chama Gambarelli. Não abra!!. O vírus vai para o seu telefone, sua conta
bancaria será zerada e seu telefone bloqueado para sempre! Avisem os seus
contatos, amigos e colegas!! Se você receber uma mensagem para atualizar o
Whatsapp Gold * Não abra! Eles acabaram de anunciar que o vírus é sério. Envie
para todos.” Absolutamente
fake, qual será o objetivo do imbecil que concebeu esse “alerta” alarmista?
Bem antes do surgimento da internet Martin Heidegger, um dos filósofos
mais marcantes do Século XX, já se posicionara como um contundente crítico à
subjugação do homem pela técnica, mas apresentava uma singela solução para
lidar com ela: “Podemos dizer ‘Sim` à inevitável utilização dos objetos
técnicos e podemos dizer ‘Não`, impedindo que nos absorvam e, desse modo,
verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa própria natureza” (1). Ele estudara bastante o que Heidegger
escrevera sobre a questão da técnica. Igualmente conhecia a opinião de outros importantes
pensadores da nova era, como o filósofo e escritor italiano Umberto Eco (2),
severo crítico da internet no tocante a dar voz a todo tipo de opinião
desqualificada. O escritor indiano Salman Rushdie foi categórico ao afirmar que
“A maldição da descrença começou com a internet” (3). Ele sabia que a questão
não era a internet em si, mas o ser humano por trás de sua criação, tão
frequentemente fazendo uso abusivo ou absolutamente perverso de uma ferramenta
excepcionalmente útil, mas que, assim como outras conquistas tecnológicas da
humanidade, pode também apresentar uma faceta bastante cruel ou, simplesmente,
tola. Isso o entristecia, pois as redes seriam uma alternativa à mídia
tradicional, sensacionalista, e que há muito abandonara o seu papel
investigativo.
Mas o que passou a atormentá-lo ao
extremo foi a proliferação das tentativas de golpes. Aproveitando-se do
estresse causado pelo vírus e pelo uso cada vez mais abusivo dos meios
virtuais, até mesmo pelas restrições aos contatos presenciais, bandidos
desenvolvem e aperfeiçoam métodos para capturar suas vítimas, através do
celular – chamadas de voz, via WhatsApp e SMS, e-mail – e do computador. Também
o velho telefone fixo serve para as tentativas de golpe. A antiga ligação
avisando sobre ter um ente querido em cativeiro e solicitando resgate para a
soltura por incrível que pareça continua fazendo vítimas. Bastante atual é a
clonagem de um número do celular juntamente com a captura da foto e dos
contatos de seu dono. A partir daí, o bandido dispara mensagens a contatos que
ele identifica como próximos, criando um enredo de um imprevisto de necessidade
financeira e solicitando uma transferência de emergência para uma determinada
conta. Ele sabia de muitos casos de pessoas que haviam sido vítimas desses
golpes. Por WhatsApp, por SMS e por e-mail recebia falsos alertas da urgente
necessidade de ativar a Chave Pix de Bancos com os quais ele sequer tinha
conta; falsos comunicados de seu Banco solicitando confirmação sobre uma
indevida utilização de seu cartão de crédito, ou transferência de sua conta, e
fornecendo um número telefônico para um bloqueio, caso a operação não seja
reconhecida. O número é falso e, mesmo que verdadeiro, o correntista deve ligar
para a sua agência pelo número que tem agendado e, por outro telefone, pois
aquele pelo qual recebeu a ligação está grampeado. Trata-se de uma categoria de
golpe denominada phishing (4), ele aprendera o significado do termo.
Decidiu mudar de Banco, aquele com o qual sempre mantivera excelente
relacionamento, mas se fazia necessário apagar todos os rastros possíveis.
Desinstalou o App de seu antigo Banco e não instalou o aplicativo para o novo.
Suas relações bancárias a partir de então seriam tão somente presenciais.
Em meio a tanta imundície, surge mais
um golpe, que particularmente o deixava indignado. O telefone toca, diversas vezes
ao dia, de diversos números, ele atende, e escuta a pergunta: “Está me
ouvindo?” – a voz é bem clara e a vítima, ao responder “Sim”, terá essa
concordância gravada e utilizada para fechar operações fraudulentas em seu
nome. Parece inverossímil essa possibilidade, mas com uma justiça que não
costuma fazer Justiça para os inocentes, tudo é possível. Houve dias em que ele
recebeu três, quatro vezes, essa infame tentativa de golpe. Tinha vontade de
xingar, de responder com palavrões do mais baixo calão, mas sabia que de nada
adiantaria. Pensou em não mais atender números não identificados em sua agenda,
mas com isso deixaria de receber importantes ligações de confirmação de
consultas e de exames médicos, do andamento de tratativas com prestadores de
serviços etc.
Leu, com atenção, o texto sobre a existência
de uma bizarra categoria de pessoas no Japão. “Denominada johatsu,
ou os "evaporados", milhares de cidadãos japoneses buscam
ajuda de empresas clandestinas para desaparecer do mapa e deixar suas identidades
para trás. Estes, saem de circulação para buscar refúgio no anonimato. O governo
japonês não disponibiliza números oficiais sobre os johatsu,
porém, estima-se que entre 100.000 a 185.000 japoneses recorram ao método
anualmente. Essa fuga é de certa forma muito fácil no país, já que as leis
de privacidade japonesa dão aos cidadãos liberdade para manter seus
dados em segredo. Apenas em casos onde houve crime é que a polícia do país
investiga os movimentos. Pessoas desaparecidas podem sacar dinheiro em caixas
eletrônicos e não serem descobertas, assim como membros da família não podem
acessar vídeos de câmeras de segurança, para tentar descobrir o paradeiro ou o
dia e a hora em que seu ente fugiu. Aos familiares fica a dúvida se foi um caso
voluntário ou não, assim como o sentimento de abandono.” (5)
Mas isso era “coisa de japonês”, não seria
praticável para ele, que a cada dia se sentia mais esmagado pelo cotidiano de
violência e burrice disseminadas pelos instrumentos da internet. Decidiu que
sua sobrevivência psíquica dependia de uma desconexão máxima possível dos
diabólicos instrumentos da informática. O ideal seria uma desconexão completa,
principalmente do telefone celular e até mesmo do computador. Ficaria tão
somente com o cada vez mais obsoleto telefone fixo. E assim preparou-se para se
tornar um johatsu na medida do possível. Começou por mudança de
operadora e de número de seu telefone fixo, ao qual acoplou um identificador de
chamadas. Manteve a televisão, mas o seu uso de há muito estava restrito, por
sua decisão. Nada de noticiários. Chegou a vez do computador. Efetuou drástica
redução em suas funções. Ficaria apenas com os aplicativos Word e Excell. Facebook?
Deletar. Pesquisar no Google, nem pensar, o algoritmo estava atento às suas
pesquisas e traçando seus costumes, seus hábitos, seu perfil, o próprio “Big
Brother is watching you”, descrito por George Orwell em seu premonitório
“1984”. Seu uso ficaria restrito ao acesso a sites rigorosamente obrigatórios,
como o da SRF – Secretaria da Receita Federal, por exigência do Grande Irmão. Youtube?
Uma pena, mas também deletar esse bisbilhoteiro. Considerou cancelar também o e-mail, mas
decidiu correr o risco de mantê-lo em quarentena, a despeito de ele também ter
se constituído em um poderoso canal de ameaças virtuais, de disseminação de
burrice e de promessas mirabolantes. No passado, ele e colegas de trabalho se
divertiram muito particularmente com um e-mail que prometia: “enlarge your penis
up to 5 inches [12,7 cm!!!]”, através de um determinado procedimento. Para minimizar o risco de rastreamento também
mudou de servidor e de endereço de e-mail.
E chegou o momento supremo de livrar-se do
celular, aquele aparelhinho incialmente concebido para transmitir apenas a voz,
um telefone ambulante, e agora transformado em poderosa droga entorpecente.
Decidiu que deveria revestir o ato de alguma solenidade. Como que a desafiar os
ladrões obcecados em roubar celulares dos transeuntes, saiu para dar uma longa
caminhada ao longo da qual fez diversas ligações, assim como recebeu e emitiu
mensagens pelo mais viciante dos aplicativos, o WhatsApp, este com a agravante
de estar, mais e mais, se transformando num meio robótico e como única opção
para comunicação com empresas. E então, ao chegar à borda de um canal de águas
putrefactas, despediu-se do aparelhinho e lançou-o naquela cloaca,
certificando-se de sua completa e irreversível submersão. Teve um fim merecido,
respirou aliviado.
Retornou à sua residência. Sentou-se diante da
TV e assistia um programa cultural quando o telefone tocou. Levantou-se e
atendeu. “Está me ouvindo?”, perguntava aquela voz que tanto o atormentava, enquanto
o Bina registra a proveniência da ligação: do seu celular, aquele mergulhado na
podridão profunda, mas o numero havia sido clonado antes daquele mergulho
final.
Na última vez em que foi visto por um
conhecido, ele rondava o Consulado Japonês.
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(1) HEIDEGGER. Serenidade. Lisboa:
Instituto Piaget, 1959
(2) VEJA, 01/07/2015, pag. 15
(3) O GLOBO, 01/05/2021
(4) Phishing é um termo originado do inglês
(fishing) que em computação se trata de um tipo de roubo de identidade
online. Essa ação fraudulenta é caracterizada por tentativas de adquirir
ilicitamente dados pessoais de outra pessoa, sejam senhas, dados financeiros,
dados bancários, números de cartões de crédito ou simplesmente dados pessoais.
O Brasil foi líder mundial em golpes de phishing em 2020.
(5) https://exame.com/mundo/as-empresas-que-evaporam-pessoas-no-japao-entenda/ Acesso em 04/07/2021
José Antonio C. Silva
07/08/2021
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito oportuna sua crônica. O personagem encarna um desespero tão presente em nossos dias. Martin Heidegger realmente parecia prever nosso mundo atual. Sua escrita tem rítmo. É bem articulada em ideias e nos faz mergulhar no sentimento do personagem. E o humor irônico de seu texto é perfeito. Muito bom
ResponderExcluirBelo texto meu amigo José Antônio ! Você me fez lembrar de uma palestra que assisti sobre tecnologia da informação , realidade virtual e sobre uma possível inteligência artificial há mais de 30 anos onde o palestrante intuia um futuro não muito distante onde não conseguiríamos distinguir entre uma informação real e uma informação falsa e manipulada. Hoje temos tudo isso nos mais diversos canais, vídeos, áudios, textos e tudo mais que a internet possa servir de instrumento de disseminação. Ficar incógnito hoje é uma tarefa quase impossível, embora o sofrimento descrito no texto seja uma realidade para todos nós !... José Antônio ?!? Está me ouvindo ?!?!
ResponderExcluirSensacional e atualíssimo texto do excelente escritor e cronista José Antônio de Carvalho e Silva que, de maneira brilhante,desnuda o maniqueísmo que permeia a tecnologia digital,com seus benefícios e malefícios, estes, causados por indivíduos e ou grupos inteiramente sem caráter.
ResponderExcluirParabéns e aplausos, ao brilhante amigo, autor da excelente crônica.
Excelente conteúdo que trata do fascinante mundo tecnológico que estamos imersos. Salienta, também, o quanto é aberto, arriscado e vulnerável. Como sempre, conseguiu abarcar tudo isso de forma objetiva, com um toque de acidez (que é a sua marca), o que torna tudo muito mais espontâneo e bem-humorado!
ResponderExcluirmuito bom texto. Infelizmente vivo em estado de alerta constante, sempre com medo de ser vitima de algum golpe.
ResponderExcluirMuito oportuno o texto, particularmente no tocante à citação do filósofo Heidegger sobre como lidar com a técnica: "Podemos dizer `Sim´ à inevitável utilização dos objetos técnicos e podemos dizer ´Não', impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e, por fim, esgotem a nossa própria natureza."
ResponderExcluirBelíssimo texto, José Antonio. O problema é que vivemos em um país em que, a cada invenção que surge para facilitar a nossa vida, os desonestos se aproveitam para transforma-la em uma oportunidade de obter ganhos ilícitos. Triste país esse nosso.
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