A TOCA, de Franz Kafka
“Estou com medo, traumatizada mesmo, de sair na rua”, diz moradora.
“Com medo, moradores se impõem um toque de recolher.” As pessoas se entrincheiram em prédios cercados por grades de metal e munidos de sistemas eletrônicos de segurança. (do cotidiano de nossa cidade).
“Com medo, moradores se impõem um toque de recolher.” As pessoas se entrincheiram em prédios cercados por grades de metal e munidos de sistemas eletrônicos de segurança. (do cotidiano de nossa cidade).
O animal ― um texugo? Uma toupeira? Kafka não especifica ― sentindo-se ameaçado, construiu a sua toca, uma obra
astuciosa, ramificada em um verdadeiro labirinto de caminhos subterrâneos com a
finalidade de proteger o seu construtor.
A ligação da toca com o exterior se
faz por meio de muitos orifícios estreitos, tubos de ventilação, com a
finalidade de permitir a entrada do ar em seu interior. Apenas uma entrada dá
acesso ao sistema de caminhos subterrâneos. As demais entradas são falsas, para
ludibriar intrusos. Mas essa entrada verdadeira é um ponto de vulnerabilidade
da toca, um caminho por onde inimigos poderiam ter acesso ao labirinto e atacar
o animal entocado.
Para corrigir esse calcanhar de
Aquiles em seu sistema defensivo, o animal disfarça essa entrada cobrindo-a com
uma camada de musgo e plantas e constrói para despistar uma entrada falsa, a
cerca de mil passos da verdadeira, e que não conduz a parte alguma. Para
certificar-se da eficiência do disfarce, o animal de tempos em tempos sai de
sua toca para o exterior e procura buscar alguma eventual falha em seu sistema.
Contudo, o medo de que essas suas saídas pudessem ser observadas por inimigos
que, dessa forma, identificariam a verdadeira entrada para o labirinto, o
animal vai reduzindo suas saídas, até quedar-se em definitivo em seu abrigo.
Por algum tempo ele experimenta momentos de tranquilidade, propiciada pela
constatação de que suas provisões são fartas.
Mas essa tranquilidade dura pouco,
logo ele se entrega novamente à sua paranoica preocupação com segurança ― conferência do sistema de defesa, a disposição dos
corredores e a localização das reservas de víveres. Ao imaginar fraquezas,
põe-se laboriosamente a mudar de lugar suas provisões, a alterar o traçado de alguns
corredores ou a ampliar o espaço da praça central do esconderijo. É uma faina
tão desesperada, a cavar com o focinho, que este até sangra. Mas, todo esse
trabalho não lhe traz segurança, permanece sentindo-se em risco. E já então não
teme apenas os inimigos externos à toca, pois escutou que existiriam seres que
vivem no interior da terra e que, a qualquer momento, poderiam surgir das
profundezas para ataca-lo.
Eis que ouve um ruído estranho, até
então não percebido, e que com certa regularidade volta a soar. Pensa que
talvez seja o ruído próprio da circulação do ar pelas galerias subterrâneas,
ou, porventura, produzido pela movimentação de pequenos animais, como insetos.
Mas o desconhecimento da causa do estranho ruído tem um efeito assustador sobre
o animal, que passa, inclusive, a imaginar se ele não seria o aviso da
aproximação dos seres do interior da terra.
Finalmente acaba se convencendo de
que o ruído é proveniente da escavação de um outro animal, e tenta confortar-se
imaginando que poderia ser possível um entendimento com o invasor: lhe
ofereceria comida e ele então o deixaria em paz. Desgraçadamente, no entanto,
esse outro hipotético animal nunca aparece, o que continua é o ruído misterioso,
que não aumenta nem diminui de intensidade.
Qualquer semelhança do drama vivido pelo animal kafkiano com o dos
habitantes do Rio de Janeiro de hoje não é mera coincidência.
A resenha por mim apresentada é, por sua vez, feita a partir de uma
resenha escrita por Leandro Konder, brilhante pensador social, já falecido, em
seu livro KAFKA – Vida e Obra (José Álvaro, Editor, 1968) do conto que foi um
dos últimos escritos por Kafka, talvez o último, e que permaneceu inacabado, o
que em nada sacrifica a mensagem nele transmitida. Neste brilhante livro
Konder, a partir dos contos mais significativos do grande escritor, analisa
suas relações com a família, suas ideias políticas, o drama da solidão,
o tema da alienação e outras facetas do atormentado escritor tcheco
precocemente falecido (1883-1924).
Seu texto é uma bela metáfora da situação vivida pelos cariocas. O medo nos assombra e a solução da "toca" é um aprisionamento tão real quanto psicológico. Em uma sociedade onde as leis são desconsideradas ou ludibriadas, a liberdade fica ameaçada. Só é possível o verdadeiro exercício da liberdade diante da lei. Belo texto!
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