Vaga para senhor de fino trato
Assim eram
publicados nos jornais da época, os anos da década de 1960, os anúncios
buscando inquilinos para aluguel de vaga em quartos de apartamentos. Atendendo
a um desses anúncios eu e dois inseparáveis amigos, Pacci (*) e Gilberto,
batemos à porta de um apartamento em Botafogo, Rio de Janeiro. Corria o ano de 1967, éramos três
recém-formados, com idades entre 22 e 23 anos, matriculados em um curso de
mestrado em área tecnológica localizado na Praia Vermelha. O proprietário, Sr.
Walter, lá vivia com esposa e um filho de aproximadamente 2 anos de idade.
Rechonchudinho, era o orgulho do jovem casal de pais, que intencionava
inscrevê-lo no concurso “Bebê Johnson”. Seria bastante improvável que três
rapazes desconhecidos viessem a ser aceitos como inquilinos naquele lar,
afinal, buscava-se “um senhor de fino trato”. Porém, após uma não longa
conversa com o Sr. Walter, ele simpatizou conosco, disse que tinha algo
espírita que lhe dizia que podia confiar em nós. Creio que isso seria
absolutamente impensável nos dias de hoje. Compramos um beliche, uma cama de
solteiro, um pequeno armário e nos acomodamos em um dos quartos do apartamento.
Essa era a
segunda ocasião em que eu alugava uma vaga no Rio de Janeiro por conta de
estudar na Praia Vermelha. Na primeira, eu tinha 17 anos e ingressara, assim
como o Pacci e o Gilberto, em uma prestigiosa entidade de ensino superior da então
denominada Universidade do Brasil (futuramente Universidade Federal do Rio de
Janeiro, em sua nova localização, na ilha do Fundão). O ano era 1963. A
faculdade ficava no ecológico bairro da Praia Vermelha, muito próxima ao sopé
do Morro da Urca, de onde partiam os antigos bondinhos para o Pão de Açúcar. A
jornada de Niterói, onde morávamos, até chegar a ela era demorada, demandava
três conduções: um “trolley bus” (ônibus elétrico) para se chegar à estação das
barcas de Niterói, a barca para a travessia da Baía de Guanabara e, finalmente,
outro “trolley bus” à Praia Vermelha. Não raro podia durar duas horas.
Seguiam-se oito horas passadas em salas de aula e laboratórios, intermediadas
por duas horas de almoço. Acrescentando-se as duas horas gastas no regresso às
nossas residências, chegávamos a um comprometimento de 14 horas de nosso dia
útil. Era demais. Confabulamos e concluímos que o melhor seria “cruzarmos a
Baía”, ou seja, alugarmos um pouso próximo à Faculdade. Decidimos então, eu e o
Pacci, alugarmos a tal vaga para senhor de fino trato, daquela feita em um
apartamento na Praia de Botafogo. Fiquei lá por dois meses, e a surreal estória
daquele período foi narrada na minha crônica “Nos tempos de dona Ermelinda”,
postada aqui neste blog.
Os anos da
década de 1960 foram caracterizadas por um verdadeiro terremoto político e
social. Marxismo, Stalinismo, Maoísmo, Trotskismo. Fidel Castro e Che Guevara.
Crise dos mísseis em Cuba, em 1962, quase trazendo o confronto final EUA x
URSS. Assassinato do presidente John Kennedy. Ditaduras militares.
Contracultura, músicas de protesto, hippies, sexo, drogas e Rock and Roll.
Misticismo. Woodstock, Jimmy Hendrix e Janis Joplin. Beatles e Rolling Stones.
Fellini, Antonioni, Visconti, Bergman, Goddard, papo cabeça. Existencialismo,
Feminismo, pílula e minissaia. Sartre,
Simone de Beauvoir, Albert Camus, Bertrand Russel, Aldous Huxley, Herbert
Marcuse. Guerra do Vietnam. Em 1968
ocorreriam os assassinatos de Robert Kennedy e de Martin Luther King, a revolta
dos estudantes em Paris e a passeata dos 100 mil no Brasil contra a ditadura
militar. Aquele ano ficaria ainda marcado pela edição do Ato Institucional No.
5.
As discussões
no ambiente universitário entre os esquerdistas e direitistas (uma
categorização que até hoje me parece por demais simplista: ou se é comunista ou
fascista, não se admite qualquer posicionamento diferente, nem mesmo a social
democracia) eram fervorosas, apaixonadas, embora dificilmente causassem ruptura
entre os grupos. O rompimento de relações não era absolutamente uma
consequência natural de divergências políticas. O fundamental era participar,
se posicionar. Quem não o fizesse seria automaticamente rotulado de “alienado”.
Discutia-se presencialmente, não havia as redes sociais viralizando
informações, no cara a cara era bem mais difícil passar fake news, e as divergências não impediam uma rodada conjunta de
cerveja, batida de limão e outros drinques nos botequins da vida.
Voltemos a
1967 e ao quarto alugado no apartamento do Sr. Walter. Amigos inseparáveis
desde o primeiro ano do curso ginasial, eu e meus amigos tínhamos muita coisa
em comum, mas em um ponto divergíamos completamente. Gilberto era teólogo,
profundamente católico, conhecedor da Bíblia e de textos sagrados. Estudava
religião e importava livros de autores católicos consagrados, como Henri de
Lubac, Teillard de Chardin, Jacques Maritain e outros. Já o Pacci era marxista,
debruçava-se sobre textos de Marx, Lenin, Proudhon e congêneres. Quanto a mim,
na falta de um enquadramento mais preciso, me consideravam “existencialista”,
sem de fato sabermos o que isso exatamente significava. O fato é que eu não me
alinhava nem com a religiosidade de um e nem com o marxismo de outro. Me
considerava um livre pensador que ia da leitura de grandes romancistas e
contistas – Kafka, Edgard Allan Poe, Herman Hesse etc. - a autores como
Bertrand Russel, Aldous Huxley, Erick Fromm, alguma coisa de Freud e de Sartre
e muitos outros textos.
Curiosamente, a improvisada aplicação do termo
existencialista a mim revelou-se ter um fundamente, à medida em que, em minha
guinada tardia para a psicologia, pós graduei-me como especialista clínico, na abordagem
existencialista. Li e estudei autores
dessa corrente filosófica, especialmente Sartre, anotando muitas de suas
máximas, como a afirmação de que o homem está condenado a ser livre, e dentro
dessa liberdade fazer suas escolhas. E ser responsável por elas. E que a
existência precede a essência, essência essa que vamos construindo ao nos
descobrirmos lançados no mundo. Muito longe do que o termo pode sugerir aos
leigos, existencialismo nada tem de uma doutrina hedonista. Bem ao contrário, é
uma filosofia de profundo comprometimento. Para defender o existencialismo de
críticas que então lhe eram dirigidas Sartre pronunciou, em 29/10/45, uma
conferência da qual resultou um opúsculo intitulado “O Existencialismo é um
Humanismo”.
Ressalte-se
que todo aquele nosso envolvimento em assuntos extracurriculares não impedia
que nos dedicássemos com afinco às disciplinas do curso. Tenho gratas
recordações das inúmeras noites em que, recolhidos ao nosso quarto, debatíamos
as coisas da vida, cada um de seu ponto de vista. A conversa às vezes se
estendia até tarde, ao ponto de certa feita o nosso senhorio ter se interessado
em saber sobre o que tanto conversávamos. Não o fez em tom de admoestação,
apenas demonstrou curiosidade, não transpareceu que ficasse incomodado com
aquilo. Enfim, éramos três pessoas com perfis bastante diferenciados no tocante
à pontos de vista filosóficos. Mas nunca brigávamos, havia grande afinidade
entre nós.
Vida que
segue, cada um tomou seu destino, todos sem ter completado um mestrado ao qual
o coordenador não nos parecia empregar a dedicação necessária. Enveredei pelo
mundo empresarial, meus amigos pelo acadêmico, cumprindo brilhantes carreiras.
Eu e Gilberto, de uma forma de outra, sempre mantivemos uma forte vinculação
com Niterói, mesmo nos períodos em que exercemos nossas atividades
profissionais em outras cidades. E por isso continuamos mantendo um relacionamento
muito próximo. Já o Pacci, mudou-se definitivamente para outro estado, durante
muitos anos mantivemos contato por carta, depois por e-mail, quando essa
ferramenta se nos ofereceu, e nas esparsas vezes em que ele retornou à sua
cidade natal. Nesses contatos não aparecia o tema político. Por fim, perdemos o
contato. Desconheço seu atual posicionamento. Quanto ao Gilberto, há muito sofreu
uma radical transformação. De um religioso católico transformou-se em um
marxista convicto e dedicado a profundos estudos filosóficos e com História de
um modo geral. Por um longo tempo, além de incansavelmente nos divertirmos às
gargalhadas com recordações dos velhos tempos, mantivemos intermináveis
conversas sobre política, filosofia e ciência. Ele, marxista, e eu...
existencialista – vamos deixar assim.
(*) todos os
personagens são reais, mas os nomes são fictícios.
Fevereiro/2020
Zé...adorei..suas crônicas são gostosas de ler, e comp te conheço bem fico na expectativa das pérolas que virão...e vieram kkk..muito bom..precisamos de muitas leituras assim para caminhar neste mundo vazio💗
ResponderExcluirZé, sempre lhe achei um senhor de fino trato, afinal de contas, quem é admirador do Frank Sinatra, aí me incluo, só pode ser de "fino Trato".
ResponderExcluirOs anos 60 foram muito conturbados, mas talvez ainda sentiremos saudades desta época ao compararmos com os terremotos atuais que estão por vir. Podem ser demais para um coração existencialista.
Forte Abraço.
Caríssimo amigo José Antonio.
ResponderExcluirApreciei imensamente seu conto ou crônica, elaborados da forma como só você, muito habilmente sabe fazer.
Voltei no tempo, revi meus tempos de universitário, tudo, graças à sua narrativa, ao mesmo tempo erudita mas, de fácil e agradabilíssima leitura.
Parabéns, continue sempre brilhando.
Até à próxima, que, tenho certeza, virá, e lerei com imensa satisfação.
Grande abraço.
O comentário acima, que muito me envaidece, me foi transmitido via e-mail pelo meu mui prezado amigo Jonas Gleizer, e aqui postado com a sua devida autorização.
ResponderExcluirMaravilha de relato. Uma verdadeira máquina do tempo, que nos transporta para época tão rica e efervescente, qdo as amizades persistiam mesmo com posições não necessariamente coincidentes. Parabéns.
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