“Não há beleza sem o
pensamento da beleza”
Esta é a frase final do texto
escrito por Christophe Clavé (*) encontrado no link abaixo (acesso em 22/12/2020),
em língua italiana, assim como em sua tradução para a língua portuguesa.
por Christophe Clavé.
O Efeito Flynn - batizado em homenagem ao cientista que
estudou esse fenômeno - afirma que o quociente de inteligência médio (QI) da
população mundial está aumentando constantemente. Isso pelo menos desde o
segundo pós-guerra até o final dos anos 90. Desde então, o QI vem
diminuindo. É a inversão do Efeito Flynn.
A tese ainda é debatida e muitos estudos estão em andamento há anos sem
conseguir acalmar o debate. Parece que o nível de inteligência medido
pelos testes diminui nos países mais desenvolvidos. Pode haver muitas
causas para esse fenômeno.
Um deles pode ser o empobrecimento da linguagem. Na verdade, muitos
estudos mostram a diminuição do conhecimento lexical e o empobrecimento da
linguagem. Não se trata apenas da redução do vocabulário utilizado, mas
também das sutilezas linguísticas que nos permitem elaborar e formular um
pensamento complexo. O desaparecimento gradual dos tempos (subjuntivo,
imperfeito, formas compostas do futuro, particípio passado) dá origem a um
pensamento quase sempre no presente, limitado ao momento, incapaz de projeções
no tempo. A simplificação dos tutoriais, o desaparecimento da
capitalização e da pontuação são exemplos de golpes mortais na precisão e
variedade de expressão. Apenas um exemplo: eliminar a agora obsoleta
palavra "Signorina" [no original em língua italiana. Senhorita, em
português] não significa apenas abrir mão da estética de uma palavra, mas
também promovendo involuntariamente a ideia de que não existem fases
intermediárias entre uma menina e uma mulher. Menos palavras e menos
verbos conjugados significam menos capacidade de
expressar emoções e menos capacidade de processar um pensamento (o grifo é
meu). Muitos estudos têm mostrado como parte da violência nas esferas
pública e privada decorre diretamente da incapacidade de descrever as emoções
em palavras. Sem palavras para construir um argumento, o pensamento
complexo torna-se impossível. Quanto mais pobre a linguagem, mais o
pensamento desaparece. A história está cheia de exemplos e muitos livros -
de Georges Orwell em 1984 a Ray Bradbury em Fahrenheit 451 - contam como todos
os regimes totalitários sempre atrapalharam o pensamento, por meio de uma
redução no número e no significado das palavras. Se não houver
pensamentos, não há pensamentos críticos. E não há pensamento sem
palavras. Como construir um pensamento hipotético-dedutivo sem o
condicional? Como pensar o futuro sem uma conjugação com o
futuro? Como é possível captar uma temporalidade, uma sucessão de
elementos no tempo, passado ou futuro, e sua duração relativa, sem uma
linguagem que distinga o que poderia ter sido, o que foi, o que é, o que poderia
ser, e o que será depois do que pode ter acontecido, realmente
aconteceu? Quero me dirigir a pais e professores: fazemos nossos filhos,
nossos alunos falar, ler e escrever. Ensinar e praticar o idioma em suas
mais diversas formas. Mesmo que pareça complicado. Principalmente se
for complicado. Porque nesse esforço existe liberdade.
Não há liberdade sem necessidade.
Não há beleza sem o pensamento da beleza.
(*) Christophe Clavé. Diplomado em Ciências pelo Instituto de
Estudos Políticos de Paris. Detentor de um MBA, coach (treinador)
profissional, passou 25 anos em empresas, como Diretor de RH e como Diretor
Geral. Foi ainda encarregado do curso de Estratégia e Políticas de Empresas na
Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris durante 5 anos. Atualmente é
Presidente de uma sociedade de investimentos e treinador de dirigentes. Autor
do livro "Les Voies de la Stratégie" – “Caminhos da Estratégia”.
Tenho escrito
exaustivamente, e continuarei escrevendo, sobre a superficialidade dos contatos
e os desentendimentos entre as pessoas no mundo atual, sejam presencias ou
virtuais, e a decisiva influência da internet, poderoso e extremamente útil
meio de informação (não sendo de forma alguma um substituto para o livro) e
comunicação entre as pessoas, mas cujo uso abusivo acaba por em muito
contribuir para aquele fenômeno. Aquele que deveria escutar a fala do outro
como que constrói em sua mente um discurso que não reflete aquilo que está
realmente sendo dito, mas, sim, o que ele espera que o outro fale, valendo-se
de uma espécie de um algoritmo em seu cérebro. Um exemplo: alguém expressa a
sua revolta quanto ao ostensivo descumprimento, por parte da população, da recomendação
do distanciamento social para medida de redução do risco de contágio pelo COVID-19.
E lamenta a indisciplina de nosso povo: “Nós não somos japoneses.” Ao o outro
prontamente retruca: “Ainda bem que não somos japoneses!”, ampliando um desejo expressado
tão somente quanto a uma específica característica dos japoneses. Trata-se de
alguém que, por essa reação, denota sua desaprovação à regra do distanciamento
social, um direito seu, naturalmente, mas manifestado por uma distorção da fala
de seu interlocutor, escutada como um desejo de que, para todos os efeitos,
fossemos japoneses.
E a comunicação fica ainda mais prejudicada
quando se considera a menor capacidade, da parte de quem fala, de expressar
emoções e de processar um pensamento, o que deixa lacunas nas conversações, ensejando
àquele que escuta preencher essas lacunas com significados que ele próprio
cria. Como resultado, desentendimentos, incompreensão, agressões. O texto do Professor
Clavé é perfeito nessa abordagem quando relaciona o empobrecimento da linguagem
com a dificuldade na comunicação, e coloca em discussão esse fenômeno como
possível causa para a redução do quociente de inteligência médio da população
mundial (QI) observado nos últimos 20 anos, em contraposição à constante
elevação constatada desde o pós guerra em 1945. Não se trata, como já escrevi
em outros textos, de que as pessoas devam ter uma erudição vernacular de um
Machado de Assis, de um Carlos Drummond de Andrade, ou, ainda, a precisão de um
Millôr Fernandes, mas, sim, que falem ou escrevam com um mínimo de
consistência, para se fazer entender corretamente pelo interlocutor, admitido ainda
que este não tenha conceitos pré-estabelecidos por um algoritmo sobre aquele que
fala.
Não há beleza
sem o pensamento da beleza. E, na contenção da Novilíngua, imaginada por George
Orwell em seu “1984”, e nos exageros do politicamente correto, não há espaço
para obras artísticas, especialmente aquelas expressas na forma dos grandes
romances, da poesia, dos enredos de peças teatrais e de filmes, nas letras de
grandes canções. À arte restará ser engajada, à serviço do sistema político
dominante.
Tudo o que
dissemos até o momento pressupõe que os desentendimentos sejam apenas fruto de
um empobrecimento da linguagem e, consequentemente do pensamento, e, não, fruto
de uma deliberada intenção de uma, ou de ambas as partes, de vencer o debate a
qualquer custo, mesmo sem ter qualquer razão, o que, infelizmente, parece ser muito
frequente nos polarizados debates dos tempos atuais. Estamos falando da
Dialética Erística, do filósofo Schopenhauer, que a define justamente como a
arte de discutir, e mais especificamente, de discutir de modo a ter razão, seja
por meios lícitos ou ilícitos. Schopenhauer aponta que é possível ter razão objetiva
em relação ao assunto em si e, ainda assim, aos olhos dos observadores, e aos
próprios, não ter razão. O livro do qual retiramos os conceitos intitula-se “38
estratégias para vencer qualquer debate – A arte de ter razão” (FARO EDITORIAL,
2014). Nesse livro, o filósofo descreve cada uma das 38 estratégias, dentre as
quais, como exemplo, citamos: Use as premissas de seu oponente contra ele; Mude
as palavras do oponente para confundi-lo; Faça seu oponente concordar de forma
indireta; Provoque o oponente; Confunda e assuste o oponente com palavras
complicadas e por aí segue, até chegar à estratégia final: Como último recurso,
parta para o ataque pessoal.
Importante
assinalar que o propósito da exposição das estratégias não é o de fornecer aos
mal intencionados ferramentas para vencer os debates sem ter qualquer razão,
mas, sim, de alertar a todos sobre esses truques e subterfúgios dialéticos.
José Antonio
C. Silva
26/12/2020
Amigo, você nos apresenta aqui outra crônica de importantíssima reflexão. Muito bom!
ResponderExcluirPuras verdades! Será que a total dispersão das pessoas e a má fluidez dos diálogos são consequências dessas ausências? Sempre associei a deficiência da linguagem e do entendimento à síndrome da pressa, mas, após ler seu texto, penso que o seu argumento é mais consistente. Excelente!!
ResponderExcluirExcelente apreciação do texto de Christophe Clavé.
ResponderExcluirMais uma vez, José Antonio, com sua rara maestria, nos proporciona um texto excelente, em que aborda um assunto de grande importância, porém, relegado a um plano inferior.
Parabéns, José Antonio, continue nos brindando, com seus primorosos textos.